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E se a “crise da religião” não for uma crise da religião?
| Foto: wgbieber/Pixabay

Há alguns meses tenho me debruçado sobre um problema bastante sério, de dar insônia a qualquer líder religioso: o grande “declínio global da religião”, segundo as análises do recentemente falecido cientista político Ron Inglehart. A evidência encontrada pelo pesquisador, a partir de 1981 e, mais radicalmente, de 2007, é massiva e contradiz a popular tese de dessecularização do mundo sustentada pelo sociólogo Peter Berger, para o qual não haveria nenhuma contradição entre modernidade e religião, e muito menos um declínio desta. Ron Inglehart descobriu que, em todos os países nos quais temos uma desregulamentação das leis e mudança dos costumes nos campos de sexo, fertilidade e família, segue-se um estonteante colapso da religião organizada, em apenas uma geração.

Pois bem; haverá tempo para retornarmos a esse tema interessantíssimo e perturbador em nossa coluna. Por ora o menciono apenas para indicar o que acredito ser o contexto mais amplo dessa grande crise da religião. A tese de Inglehart é a de que a pertença religiosa está ligada a um tipo de ética de comunidade com regras estritas de engajamento e compromisso. Uma vez que essas regras sejam alteradas ou abandonadas, a religião perde sua função como o que eu chamaria de catalisador de prossocialidade.

Mas vamos ao contexto: simultaneamente à “crise da religião”, crescem os indícios de uma crise geral da sociabilidade, em escala global, e acompanhando as novas gerações. Meu palpite é que a crise da religião é tão somente um aspecto da crise da comunidade na contemporaneidade.

Simultaneamente à “crise da religião”, crescem os indícios de uma crise geral da sociabilidade, em escala global, e acompanhando as novas gerações

A grande crise de sociabilidade

A revista The Atlantic publicou uma matéria em 27 de abril intitulada “A América está em sua era de apego-inseguro: o desconforto com a intimidade parece estar crescendo, e ninguém sabe exatamente por quê”. O título se refere à Teoria do Apego, segundo a qual haveria quatro estilos básicos de conexão social: o apego seguro, que depende dos outros e se deixa depender, com alto grau de confiança; o apego ambivalente, que deseja a conexão, mas desconfia e tem dificuldades de aproximação; o estio evitativo, que se fecha para o outro, evita a relação social e privilegia a independência; e o desorganizado, que busca desesperadamente a intimidade, mas desconfia, manipula, cria confusões e finalmente afasta as pessoas de si.

Pois bem: a psicóloga social Sara Konrath estudou os estilos de apego dos norte-americanos entre 1988 e 2011, constatando que o apego seguro caiu 15% enquanto os evitativos subiram 56% e os desorganizados, 18%. Ao revisar a pesquisa entre 2011 e 2020, descobriu que os números continuaram piorando. Mas o que Konrath descobriu foi apenas a ponta do iceberg.

Poucos dias depois da matéria na The Atlantic, foi divulgado no site do Departamento de Saúde dos EUA um alarme geral pelo cirurgião-geral dos Estados Unidos – o cabeça do sistema de saúde pública do país –, Vivek Murthy. Esse alarme geral, anunciado no site da instituição, advertiu sobre o impacto devastador da epidemia de solidão e isolamento social nos EUA. Um relatório de 82 páginas foi publicado expondo a natureza da epidemia e discutindo “os efeitos curadores da conexão social e da comunidade”. Para dar alguns números: a pobreza de conexões sociais foi associada a aumentos de 29% de doença do coração, 32% de infarto, 50% de demência em adultos, e 60% de morte prematura, além do aumento da depressão, inclusive em crianças. A atual geração de jovens tem agora o dobro de risco de sofrer de solidão do que idosos com mais de 65 anos!

Mas isso não é tudo; o relatório aponta a queda do índice de confiança generalizada no país como uma de suas principais evidências – como se sabe, a confiança entre as pessoas é um dos maiores indicadores de alto capital social e de associativismo criativo em qualquer sociedade. A confiança entre os cidadãos dos EUA está caindo, assim como o número de horas que eles gastam por mês com amigos.

Diversos outros índices estão ruins: o tempo geral de engajamento social com a família, com amigos e com outras pessoas caiu, o tamanho das famílias diminuiu, a duração dos casamentos diminuiu, a taxa de divórcios aumentou, bem como o número de pessoas vivendo sozinhas. Junto com isso, como era de esperar, caiu a frequência à igreja, de 70% em 1999 para 47% em 2020. Será possível que a “crise da religião” não seja, na verdade, da religião?

E não se trata de um problema dos ianques apenas. Um importante estudo revisando as fontes disponíveis sobre 113 países foi publicado em fevereiro de 2022 no British Medical Journal e confirmou a epidemia de solidão, em alguns casos, e queixas em quase todos os países, mas o resultado principal foi a ausência de dados confiáveis sobre a questão – no caso do Brasil não sabemos quase nada; só temos pistas. Mas os pesquisadores da saúde decidiram agir – talvez estimulados pelo relatório de Vivek Murthy – e, em julho deste ano, a prestigiosa revista Lancet publicou um editorial sobre “A solidão como questão de saúde”, anunciando um comitê para estudar seriamente o tema.

O tempo geral de engajamento social com a família, com amigos e com outras pessoas caiu, o tamanho das famílias diminuiu, a duração dos casamentos diminuiu, a taxa de divórcios aumentou, bem como o número de pessoas vivendo sozinhas

Para não dizer que não sabemos nada sobre o Brasil: o instituto Ipsos realizou uma grande pesquisa intitulada “Percepções dos impactos da Covid-19” cobrindo 28 países, e descobriu que disputamos com a Turquia o pior resultado de todos – diante de uma média geral de 41% de queixas de solidão, o Brasil alcançou em um dos índices a marca de 52%, enquanto 46% também relataram sofrimento mental.

Uma inusitada dimensão dessa grande crise de sociabilidade é o que foi chamado por psicólogos de “apagão sexual”, discutido no ano passado em um artigo do teólogo Rodolfo Capler. Pesquisas nos EUA mostraram que a geração Z ou “iGen”, a turma entre 18 e 24 anos, faz menos sexo do que todas as anteriores. Mas não são só os jovens negando fogo. Os britânicos caíram de cinco vezes por mês em 1991 para três vezes por mês em 2012. Mais recentemente, Soazig Clifton, do University College de Londres, conduziu uma nova rodada da Pesquisa nacional de atitudes sexuais e estilos de vida (Natsal), que confirmou: os britânicos realmente fazem menos sexo do que antes. E, segundo Clifton, trata-se de uma tendência internacional.

O que estaria por trás disso? Há várias hipóteses; pornografia, hábitos de aproximação digital substituindo encontros pessoais, competição com entretenimentos em geral, aumento da seletividade por efeito de aplicativos de encontro, adolescência estendida e também cansaço puro e simples. Clifton e sua equipe descobriram que o foco na carreira e desempenho, com o cansaço resultante, estariam levando mulheres de meia-idade a transar menos.

Juntamente com o apagão sexual, parece estar em curso também um apagão nas amizades – menos encontros face a face com amigos. Os piores números são de jovens entre 15 e 24 anos: entre 2000 e 2020, o tempo deles com amigos caiu cerca de 70%, e isso antes da pandemia; e o tamanho de suas redes de amigos encolheu significativamente. A pesquisadora Jean Twenge ganhou fama recente por seus estudos sobre as gerações atuais e os adolescentes, e atribui a piora, em parte, aos smartphones e mídias sociais, a partir de 2007. Segundo ela, entre 2012 e 2018 a solidão adolescente dobrou ao mesmo tempo em que o smartphone se universalizava. Em sua opinião, não há outra explicação para um resultado tão consistente. Ela foi a “pessoa da semana” em uma matéria da revista Time em agosto deste ano, afirmando que os smartphones “destruíram a geração Z”.

Seja o que for que os celulares e mídias sociais causaram, foi com grande probabilidade a aceleração de tendências que já estavam presentes em nossas sociedades modernas, democráticas e liberais; elas consistem basicamente em uma aceleração geracional em direção ao perfil moral W.E.I.R.D., que é basicamente sentimentalista e individualista, afastando-se da psicologia moral mais conservadora ou moderada, que, segundo o psicólogo social Jonathan Haidt, tem uma direção sociocêntrica.

A fé em um mundo de indivíduos

Podemos voltar agora ao meu palpite: talvez a crise da religião não seja, fundamentalmente, a crise da religião, ou uma crise causada por falhas da religião ou da inadequação da religião ao mundo moderno. Talvez a questão seja outra: à medida que a composição de Estado de bem-estar social, entretenimento tecnológico e individualismo expressivo torna as pessoas mais autocentradas e menos sociais, a religião perde seu apelo. Sua importância diminui com a diminuição da amizade, da família e do sexo; talvez a religião seja parte de uma inteligência social que está agora sendo asfixiada.

A cultura do Self é incompatível com o cristianismo e, por isso, com a felicidade humana. A morte solitária dos modernos não é um mistério inexplicável, mas o resultado previsível do abandono da fé

Segundo penso, isso confirma meu longo argumento nessa coluna: a cultura do Self é incompatível com o cristianismo e, por isso, com a felicidade humana. A morte solitária dos modernos não é um mistério inexplicável, mas o resultado previsível do abandono da fé.

Se isso for verdade – a ver –, comunidades religiosas autênticas e cheias de vida podem se tornar, no futuro, verdadeiras ilhas de saúde mental em um mar de solidão e isolamento. Nesse caso, a crise da religião não deveria ser vista com preocupações egoístas, mas “clínicas”, e como sinais da grande tarefa que se põe diante das pessoas de fé. A pergunta mais importante não é sobre a mera sobrevivência da religião, mas sobre sua obra de catalisar comunidades, a obra do amor. Se a igreja buscar amar, em vez de apenas existir, não viverá ela para sempre?

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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