Aplicativos e redes sociais são usados para propagação de fake news.| Foto: Marcelo Andrade/Arquivo/Gazeta do Povo
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O "inquérito das Fake news", representa uma ameaça à liberdade de expressão?

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Na última quarta-feira o STF iniciou o julgamento da constitucionalidade do inquérito aberto no STF em março de 2019. No mesmo dia o Ministro Edson Fachin deu voto favorável à sua manutenção, com algumas qualificações, em resposta à ação da Rede Sustentabilidade questionando o processo, mas a decisão sobre sua legalidade foi adiada pelo ministro Dias Toffoli para a quarta-feira dia 17. Há um sério debate sobre a viabilidade do prosseguimento de um processo no qual o STF figura ao mesmo tempo como vítima e acusação, e sobre o papel do Ministério Público.

À parte dos formalismos jurídicos, no entanto, é preciso que o mérito da questão e, juntamente com ele, a sua dimensão recebam a devida atenção dos cidadãos. As práticas empregadas por apoiadores do Presidente Jair Bolsonaro através das redes sociais constituem, de fato, crimes e/ou imoralidades? Reprimir essas práticas seria um ataque à liberdade de expressão ou a proteção do debate público?

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Para entender melhor o assunto, o convidado da nossa coluna nessa semana é o Professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Lavras (UFLA), e Doutor pela Vrije Universiteit Amsterdam, Eric Fernandes de Mello Araújo. Nesse e em outros artigos nós examinaremos tanto a questão da ciência do contágio social, do ponto de vista das redes sociais online, quanto a questão das liberdades civis fundamentais e de seu equacionamento em uma sociedade democrática.

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Precisamos, como sociedade, entender que novas tecnologias criam novos problemas. E para entender os novos problemas, precisamos de olhar para o mundo com outras ferramentas. Isso se torna ainda mais importante agora, com o grande debate que veio à tona sobre a investigação sobre a existência de uma organização para criar e propagar ameaças e falsidades sobre membros da corte do STF. Afinal, a ação do STF é ilegal? O processo fere a liberdade de expressão? Para entender o que acontece, precisamos fazer uma retomada dos problemas enfrentados atualmente com o espalhamento das fake news.

É preciso educar a sociedade sobre redes sociais

Em abril de 2018 Mark Zuckerberg foi convocado pelo senado americano para prestar esclarecimentos sobre o escândalo da Cambridge Analytica. A preocupação do comitê que ouviu Zuckerberg se relacionava com a privacidade de dados e segurança dos usuários da rede social Facebook, atualmente com mais de 2,5 bilhões de usuários em abril de 2020, segundo o Statista. Durante a audição, ficou notória a falta de compreensão por parte dos senadores sobre o que é o Facebook. O senador Gary Peters, em uma das situações, questionou Zuckerberg sobre o uso dos microfones do celular na coleta de dados para obtenção de informações sobre os usuários da rede, uma lenda urbana comumente aceita por grande parte das pessoas que veem o algoritmo de propaganda constantemente mostrando produtos desejados em sua linha do tempo. Mas a falta de conhecimento tecnológico, ou de como as redes sociais funcionam não é privilégio apenas dos senadores americanos. E não é necessário procurar muito para constatar que a ignorância sobre a tecnologia tem levado muitos a subestimar (ou superestimar) o papel das redes sociais em nossa sociedade, e como elas entram no debate de liberdade de expressão que faz parte constante na agenda de debates atual.

As plataformas de redes sociais diferem nas funcionalidades que apresentam, mas têm algo em comum: perfis conectados por interesse. Assim, as pessoas buscam se conectar àquelas com as quais têm mais afinidade (ou porque não tem escapatória, como seus parentes) visando alimentar sua linha do tempo com informações que sejam de seu interesse. Isso vale para o Facebook, para o Twitter, Instagram, Whatsapp, etc. Os grupos de Whatsapp tendem a unir pessoas que façam parte de comunidades físicas e virtuais com interesses em comum, como família, igreja, trabalho ou escola, esportes, programas de TV e política. A difusão de informações nas redes sociais é um fenômeno recente, ainda sob estudo e difícil de ser avaliada da perspectiva dos benefícios e malefícios que trazem para as várias esferas da sociedade. O que se pode afirmar atualmente é que as plataformas de mídia social podem ser usadas tanto para benefício da sociedade quanto para causar dano.

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O surgimento das fake news e a dissonância cognitiva

Como seres sociais, somos influenciadores e influenciados nessa troca de informações sem precedentes permitida pelo avanço da internet e de plataformas criadas a partir dela. As redes sociais se tornam grandes aliados nesse processo, uma vez que permitem que todos tenham voz. As fake news surgem da apropriação de ferramentas originalmente direcionadas para o marketing de empresas nas mídias sociais por grupos políticos que desejam promover o seu discurso de forma mais ampla. Ao contrário do que ocorreu no Referendo sobre o Brexit em 2016, no Reino Unido, onde pessoas com determinado perfil se tornaram alvos de propaganda política para influenciar sua decisão em relação à pauta, o que se vê atualmente é o uso de fenômenos sociais conhecidos na psicologia social para fins de manutenção de base de apoio político e esfacelamento de inimigos políticos ou pessoas que contrariem a agenda da plataforma que se defende.

Isso funciona a partir de um mecanismo humano conhecido como dissonância cognitiva. Os psicólogos sociais Carol Travis e Elliot Aronson explicam esse mecanismo em seu livro “Mistakes were made (but not by me)” e o descrevem como dissonância cognitiva ou viés de confirmação. É como se nosso cérebro nos blindasse de fatos apresentados que não confirmem nossas crenças, e reforçasse nossas crenças caso fatos apresentados coincidam com o nosso pensamento. E como se utilizar das redes sociais para atacar nosso sistema cognitivo? Criam-se postagens que têm a aparência de fatos. Diz-se em um áudio enviado no Whatsapp, por exemplo, que a pessoa que vos fala é uma referência na área do assunto. Se o assunto for de interesse, como geralmente é, ganha-se os ouvidos da pessoa que recebeu o arquivo. A partir das informações propagadas, a pessoa decide se concorda ou não. Se concordar, as chances de compartilhamento com outras pessoas sem averiguação da fonte e da veracidade do que é falado é enorme.

Com o crescimento das mídias alternativas, e com o fácil acesso às redes sociais, se tornou comum que grupos de pessoas se unam no intuito de promover campanhas sobre armas, aborto, liberação da maconha, ações anticorrupção e outras visando dar notoriedade às suas causas. Dentre esses grupos, é comum que ferramentas de automatização de mensagens sejam utilizadas para difundir as informações reduzindo o custo humano da operação. Assim, cria-se um software (código) para controlar e espalhar as informações em perfis de redes sociais de forma automatizada e temporizada. Os perfis que se utilizam de automatização foram batizados como bots, ou robôs. E sim, são ferramentas simples de serem criadas. Um adolescente que se interesse por programação pode facilmente ler as instruções contidas nas páginas do Facebook ou Twitter, por exemplo, e desenvolver um bot que permita responder todos os posts que referenciem ao seu jogo preferido, ou dar suporte à uma celebridade que admire.

A dinheirização das fake news

Repare que não há mal algum em automatizar mensagens. É muito salutar reduzir o esforço humano, por exemplo, na propagação de descobertas científicas, ou na propagação de ideias que façam parte do debate público. Assim, a preocupação do comunicante fica na produção do conteúdo, enquanto a divulgação da informação é feita de modo automático. O problema desse tipo de abordagem ocorre quando o seu uso é distorcido. Fábricas de fake news geram milhões de dólares todos os anos a partir da “dinheirização” (ou monetização) das páginas que promovem notícias falsas, visando atacar pessoas públicas. Pessoas são pagas para manter páginas no Facebook com milhões de seguidores, no intuito de maximizar a propagação das notícias geradas com o simples intuito difamatório.

O estudo da Trend Micro, de 2017, levantou valores à época para a criação de seguidores falsos, e divulgação de informações a partir de outros países, como China, Rússia e Peru. O custo para criar um perfil de celebridade, por exemplo, com 300 mil seguidores em um mês, é de US$ 2.600,00. Perfis robôs passam a seguir o seu perfil, criando um volume de seguidores e a sensação de autoridade. Já os custos para estimular tantas pessoas a irem às ruas protestar é de US$200.000,00.

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Em 2017, por exemplo, estudantes iniciaram um boicote na cidade de Minnesota, EUA, a partir de uma nota fabricada ameaçando uma mulher preta no St. Olaf College. Mais tarde, informações colhidas nas investigações chegaram à conclusão que a nota foi fabricada para chamar a atenção para o clima no campus. O custo para silenciar um jornalista, para evitar que uma notícia de grande impacto ganhe proporções maiores é de US$55.000,00. Neste caso, a pessoa que ataca pode criar uma campanha de fakenews por um mês difamando o jornalista ao criar e promover notícias falsas uma vez por semana, e espalhá-las por meio da compra de 50 mil tweets, retweets e likes, ou comprando vídeos fabricados para serem divulgados no YouTube, cada um por US$2.500,00. Já uma campanha eleitoral pode chegar ao custo de US$400.000,00, o equivalente hoje a cerca de 2 milhões de reais. O custo para criação de sites para divulgação de notícias favoráveis ao candidato, e contrárias aos oponentes custaria em média US$3.000,00. Seriam necessários pelo menos cinco sites para que haja citações cruzadas e gerar a aparência de confiabilidade nos meios. O serviço de criar o conteúdo dos sites sairia por cerca de 5 mil dólares. A manutenção mensal e atualização constantes, mais 5 mil dólares mensais, totalizando cerca de 60 mil dólares por ano para manter uma plataforma como essa funcionando. Outros valores para a divulgação em mídias sociais, criação de campanhas no YouTube poderiam custar um montante total de 400 mil dólares para um ano de campanha.

O caso da cidade de Veles, na Macedônia, é um exemplo clássico de como a dinheirização das fakenews é atraente, como mostrado pela investigação feita pela OCCRP (Projeto de Divulgação do Crime e Corrupção Organizados, em tradução livre) e independentemente por vários meios de comunicação, como a CNN, a BBC e o Estadão entre outros. Criadores de perfis falsos e sites que produzem conteúdo difamatório chegam a receber mais de 2 mil dólares por dia somente com o engajamento das pessoas ao entrar no site, clicar nas propagandas e difundir o conteúdo. As páginas são registradas nos EUA, mas estão hospedadas em uma pequena cidade fora do país, em Veles. Aos que divulgam o conteúdo, pouco importa o dano. Não são cidadãos nacionais. Estão ali apenas pelo dinheiro.

Acusando o acusador

O processo iniciado em março de 2019 pelo STF visa investigar a criação de fake news em massa visando atacar e ameaçar membros da corte. Muito se tem questionado sobre a materialidade da investigação, e sobre a possibilidade de violação do direito à liberdade de expressão. É preciso considerar que a maior parte dos crimes virtuais ainda carece de legislação adequada, e não sem motivo. Os problemas que surgem a partir do que é criado na internet ocorrem numa velocidade muito maior do que a capacidade de qualquer sistema jurídico tem de acompanhar e ajustar suas práticas aos novos contextos. A busca da regulamentação da internet e outras pautas esbarram constantemente na ausência de conhecimento das tecnologias atuais e na inexequiblidade de leis que, ao serem aprovadas, já estarão desatualizadas. Dessa forma, considero que é vital para a segurança de todos que investigações em torno de organizações que busquem causar danos à qualquer cidadão brasileiro por meio do uso de redes sociais e produção em massa de desinformação ocorram. Ainda mais em se tratando de figuras públicas que concentram poder de decisão que afetam toda a população.

Em se confirmando a presença de organização para promoção de desinformação, há de se convir que a liberdade de expressão não está de forma alguma sendo violada pelo processo. Ainda mais em se tratando de atividade que gera ganho financeiro para o potencial infrator, que retroalimenta o sistema promovendo mais perfis falsos e mais notícias danosas. Os fatos que seguem nas próximas semanas nos darão uma ideia de qual caminho tomaremos; se iremos iniciar um processo de conscientização do uso das redes sociais e do espalhamento de notícias sem verificação ou se permitiremos que esse tipo de estratégia, que chamo aqui de guerra cognitiva, se torne o modus operandi no debate de ideias e na busca pela conversão ao discurso.

Por Eric Araújo, UFLA. Siga o Eric no Twitter.

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