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Reunião da comissão de juristas encarregada de redigir um novo Código Civil, em fevereiro de 2024.
Reunião da comissão de juristas encarregada de redigir um novo Código Civil, em fevereiro de 2024.| Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Três colunas sustentam o espaço de vida e crescimento religioso das igrejas: a família, a liberdade religiosa e a cultura missionária cristã. As duas primeiras vêm sofrendo cerco sistemático de operadores laicistas do direito, e a ameaça mais recente veio incrustrada no projeto do Novo Código Civil, apropriadamente descrito na Gazeta como uma “bomba ideológica”. Mas para entender por que o assunto interessa às igrejas, é preciso ganhar uma visão de conjunto sobre essas três colunas.

Se não houvesse essa cultura missionária, em primeiro lugar, é claro que não haveria expansão do cristianismo; e ainda hoje há igrejas que se tornaram praticamente fenômenos étnicos, nas quais o impulso universalista se dissolveu em parte ou completamente. Mas a linha central da tradição cristã, tanto católica quanto protestante, mantém a consciência e a cultura missionária, e isso mantém essas igrejas vivas e oxigenadas, voltadas para além de si mesmas, contemplando o mundo e as pessoas, e compartilhando o Evangelho renovadamente, de geração em geração.

Mas, além desse “tronco” da vitalidade eclesiástica, o cristianismo trabalhou para constituir duas outras “escoras” para o seu crescimento, que inadvertidamente se tornaram bênçãos para a civilização ocidental, incluindo cristãos e não cristãos. Para usar uma metáfora ambiental: esses dois elementos constituiriam uma espécie de “nicho ecológico” apropriado para o florescimento religioso.

Três colunas sustentam o espaço de vida e crescimento religioso das igrejas: a família, a liberdade religiosa e a cultura missionária cristã.

O elemento mais recente é a liberdade religiosa, que não foi, evidentemente, um princípio explícito do cristianismo, mas o resultado de uma lenta construção para a qual a contribuição cristã entrou com elementos fundamentais. O mais básico deles foi a própria noção de dignidade e direitos da pessoa humana, já a partir da Antiguidade cristã, como argumentou o filósofo norte-americano Nicholas Wolterstorff em seu magistral Justice: Rights and Wrongs, de 2010. A essa noção acrescentaram-se avanços progressivos: na Reforma Protestante, o livre exame das Escrituras e a liberdade da consciência incorporados em Lutero; a limitação do poder do Estado e as cartas constitucionais na Suíça; a extraordinária tolerância religiosa na Holanda calvinista; e, finalmente, a plena liberdade de culto proposta pelo ministro calvinista Roger Williams, fundador da primeira igreja batista na América do Norte e da colônia de Providence, fundada em 1636, futuramente nomeada Rhode Island. Providence foi o primeiro lugar no qual a plena liberdade de culto e crença foi crida e praticada como princípio político fundamental.

No século 19, recebendo, mas também suplantando a herança do protestantismo europeu, as missões evangélicas ao redor do globo não promoviam apenas a fé cristã, mas também a separação entre religiões estabelecidas e o Estado, com sua consequente laicização, e os princípios da tolerância e da liberdade de culto; ou seja, realizavam um extensivo trabalho de “terraformação”, alterando a ambiência política e jurídica na direção do pluralismo e das liberdades civis fundamentais, com destaque para a liberdade de crença e de expressão, por ser essa ambiência a mais adequada à propagação do Evangelho. Niall Ferguson, em Civilização, afirma que:

“Enquanto a Reforma foi nacionalizada na Europa, com a criação de igrejas estatais como a Igreja da Inglaterra ou a Kirk da Escócia, nos Estados Unidos sempre houve uma separação estrita entre a religião e o Estado, permitindo uma competição aberta entre várias seitas protestantes. E essa talvez seja a melhor explicação para a estranha morte da religião na Europa e seu vigor permanente nos Estados Unidos. Na religião, assim como nos negócios, os monopólios estatais são ineficientes... Em geral, a competição entre seitas em um mercado religioso livre encoraja as inovações concebidas para tornar mais gratificante a experiência do culto e da filiação à igreja. É isso o que mantém viva a religião nos Estados Unidos.”

Alguém poderia objetar a Ferguson que sua visão otimista sobre a religião nos EUA vem sendo contestada nos últimos anos, com um declínio das religiões evangélicas em geral. O fenômeno do “desigrejamento” generalizado não dá sinais de desaceleração, sugerindo que a secularização finalmente encontrou seu caminho no país dos ianques. Mas há uma explicação simples para isso, que apresentarei nos parágrafos seguintes. No seu ponto principal, Niall Ferguson está certíssimo: a expansão eclesiástica e a fermentação religiosa cristã, em sua forma evangélica, passam pela constituição de um espaço de liberdade religiosa e de um mercado religioso livre e desregulamentado.

É compreensível, portanto, que os inimigos do cristianismo e da fé evangélica, em particular, pretendam intervir diretamente no mercado religioso empregando a arma da estatização ou, no mínimo, do protecionismo. Um exemplo vergonhosamente explícito nos foi dado neste ano, com a proposta indecente de uma teóloga ecumênica e jurista carioca ao governo Lula e à cúpula do PT, de um controle estatal da doutrina religiosa, da formação de pastores e da plantação de novas igrejas. Preocupados com a multiplicação de templos, jornalistas defenderam o controle estatal de igrejas em rede nacional.

Uma estratégia mais direta é a tentativa de limitar a liberdade de expressão religiosa. A mais escandalosa manifestação dessa vontade de censura foi a publicação, nas mídias sociais do governo do estado da Bahia, de peças informativas tratando o proselitismo religioso cristão como discurso de ódio e racismo religioso, gerando comoção geral. Essa figura, do “racismo religioso”, a despeito de inexistir em nossos códigos legais, vem sendo usada sistematicamente para coibir a crítica evangélica à religiosidade e às divindades de religiões de matriz africana, emulando uma jurisprudência “antiblasfêmia” – algo completamente contrário ao que o sistema internacional de Direitos Humanos reconhece contemporaneamente. A crítica ao sagrado do outro é um direito fundamental, e um aspecto da liberdade religiosa.

Os inimigos do cristianismo e da fé evangélica, em particular, pretendem intervir diretamente no mercado religioso empregando a arma da estatização ou, no mínimo, do protecionismo

Há poucos dias assisti a uma live gravada do teólogo e influenciador Yago Martins relatando a sua própria experiência de ser notificado pelo Ministério Público por publicar críticas a religiões não cristãs em sua conta do X (ex-Twitter). O processo lhe tomou tempo e advogados, mas acabou arquivado, uma vez que a jurisprudência do próprio STF garante a liberdade do debate teológico e da crítica religiosa, guardados os direitos da pessoa humana. Mas, como Yago pondera acertadamente, não é do Executivo – como “a eleição de Lula”, por exemplo – que vem a maior ameaça à liberdade religiosa, mas do Judiciário e, especificamente, do Ministério Público; porque vivemos hoje num ambiente cultural e social povoado de inimigos da liberdade religiosa, dispostos a torcer leis e criar jurisprudência para limitar o crescimento evangélico.

Isso não isenta o Executivo, é claro; a estratégia parece ser a de uma “pinça”, com políticas públicas de “diversidade”, com o propósito de promover religiões concorrentes através da máquina do Executivo; e o Judiciário, para criar jurisprudência e limitar a liberdade de expressão.

Mas, voltando aos pilares da expansão evangélica: muito antes da liberdade religiosa, o cristianismo levantou a segunda coluna de seu edifício: a ordenação da família, a partir do casamento monogâmico heterossexual. Segundo Kyle Harper, em From Shame to Sin, a Igreja Católica foi responsável pela “primeira revolução sexual”, que libertou mulheres e crianças do patriarcalismo predatório da Roma Antiga, consolidou as normas cristãs de fidelidade conjugal, afeto e investimento parental, e assumiu as rédeas da ordem matrimonial e conjugal.

Segundo Joseph Henrich, professor de Biologia Evolutiva Humana da Universidade Harvard, foi precisamente essa política da Igreja o que lançou as bases da cultura ocidental moderna. Como expressei nessa coluna, anteriormente: “foram os mil anos do ‘Programa Católico de Casamento e Família’ na Europa que demoliram seu sistema de clãs e criaram uma sociedade de famílias de alto rendimento, nas quais os homens deixaram de ver uns aos outros pela ótica do clã e da consanguinidade para se verem de modo mais impessoal e ao mesmo tempo mais solidário, como concidadãos”. Sem diminuir a importância da Reforma e da ética protestante do trabalho, Henrich observa que essa ética foi um desdobramento ou um booster shot sobre bases socioculturais constituídas pela Igreja.

É claro que isso foi muito bom para o mundo, mas vale destacar que foi muito bom para a própria igreja cristã. Há uma simbiose entre o estilo de vida familiar baseado em fidelidade, contenção sexual, afeto e investimento parental – virtudes próprias da família cristã – e a concepção de ética e espiritualidade promovida pelo cristianismo. Uma alimenta a outra, e a família garante a transmissão geracional da fé. É compreensível, portanto, que a mudança nas leis e costumes de fertilidade e família venha sendo acompanhada por uma crise da religião em escala global, como argumentou recentemente o cientista político Ron Inglehart em Religion’s Sudden Decline, de 2021, com massiva evidência estatística. Mas antes mesmo o ponto fora defendido por Mary Eberstadt em Why the West Really Lost God: a New Theory of Secularization, de 2013: “o registro sobre o Ocidente sugere que o declínio da família não é meramente uma consequência do declínio religioso, como o pensamento convencional tem entendido essa relação. É também plausível... que o declínio da família, por seu turno, ajuda a fortalecer o declínio religioso”. A crise da religião, portanto, é efeito de uma crise bem maior, da família e da sociabilidade humana.

Cultura missionária, família cristã e liberdade religiosa: aí estão três pilares da vitalidade cristã. Os três hoje estão sob ataque, embora de modos diferentes. O primeiro é alvo, internamente, de teologias que minimizam a importância do anúncio do evangelho e da defesa da fé cristã. Trata-se, claro, de um problema muito mais interno do que externo; muito mais de saúde das igrejas do que de ambiência.

O que se vê com o projeto de Novo Código Civil é a dissolução do eixo natural e comunitário da família em nome de uma sociedade baseada no interesse individual e na realização emocional. Trata-se de mais um degrau na revolução narcisista

O caso dos outros dois é diferente; historicamente eles tanto são frutos do cristianismo quanto nichos ambientais de caráter sociopolítico, que fornecem as condições ideais para a adaptabilidade e reprodutividade da fé. Mudanças nesses elementos não impedem, mas dificultam significativamente o progresso da missão cristã. Faz sentido, portanto, que eles sejam objeto de policiamento e interferência dos desafetos do cristianismo.

Nesse contexto, e independentemente das intenções pessoais dos operadores do direito, é preciso entender criticamente as interferências na jurisprudência e nos códigos legais que reduzam a liberdade religiosa, ou aumentem o controle estatal sobre a religião, e que alterem a concepção de família, de modo a afastá-la da família natural e submetê-la a um enquadramento terapêutico e individualista. Essas interferências são ameaças objetivas a todas as religiões, e especialmente à religião cristã, na medida em que desmancham o “nicho ecológico” apropriado à adesão e à prática comunitária de qualquer religião. Em outros termos, são uma terraformação laicista.

Pois bem: o Novo Código Civil interfere diretamente em um dos pilares da religião: a família. Seu texto indica redução potencial dos direitos do nascituro, enfraquecimento do poder parental diante do Estado e, principalmente, do Campo Afetivo, com a figura mal definida da “violência psíquica”, o conceito de “sociedade convivencial” em oposição à “sociedade conjugal”, abrindo espaço para poliamorismo, atribuição de autonomia à criança e ao adolescente em assuntos de identidade e sexualidade, uma concepção expressivista de “nome” civil, e a inclusão dos animais domésticos com status jurídico no “entorno sociofamiliar”. O que se vê é a dissolução do eixo natural e comunitário da família em nome de uma sociedade baseada no interesse individual e na realização emocional. Trata-se de mais um degrau na revolução narcisista.

Aqueles comprometidos com a vitalidade da fé cristã não podem permitir que esse projeto avance sem resistência. Defender a família é, para todas as religiões e especialmente para o cristianismo, um dever e uma questão existencial.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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