Execuções durante o período do Terror, fase da Revolução Francesa: utopias consequencialistas normalmente terminam em carnificina.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
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O Instituto Locomotiva publicou recentemente um interessantíssimo estudo indicando que 66% dos brasileiros baseiam seus julgamentos morais em princípios ou regras morais, como o “não matarás”, e não a partir das consequências. A discussão fascinante do resultado por Álvaro Machado Dias e Hélio Schwartsman na Folha sobre o domínio do “kantismo” (a ética de princípios e motivos) sobre o “consequencialismo” (cálculo sobre os resultados da ação e o bem coletivo) é o ponto de partida para a sua defesa de que a violência e o populismo teriam menos legitimidade se fôssemos mais consequencialistas.

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Os autores admitem ter deixado de fora uma terceira alternativa moral – a ética da virtude, aparentemente por razões práticas e não principiológicas –, uma questão de recorte investigativo. Mas não posso deixar de observar que o recorte importa muito; Jonathan Haidt observou, em A Mente Moralista, que o kantismo e o consequencialismo são justamente as doutrinas que moldam de forma hegemônica a imaginação moral moderna, urbana e cosmopolita. Essas doutrinas focalizam a racionalidade da decisão e suas consequências, e tendem a ignorar considerações mais profundas sobre a natureza do bem, os fins morais e a formação do caráter.

Sem negar os méritos da discussão de Dias e Schwartsman, eu diria que não há como julgar a imaginação moral do Brasil contemporâneo sem considerar essa ausência. E sem compreender suas origens, também. E essa forma de avaliar a imaginação moral focalizando a natureza da escolha e secundarizando a questão do bem e da virtude moral tem relação com o tema que temos tratado há algumas semanas em nossa coluna: a fé no progresso.

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Não há como julgar a imaginação moral do Brasil contemporâneo sem considerar a ausência da ética da virtude

A ascensão da grande ideologia do progresso foi, segundo Bob Goudzwaard e Egbert Schuurman, a ascensão de uma grande religião secular; uma forma terrena de esperança, mas ainda assim uma esperança. E, segundo a ênfase especial de Schuurman, uma esperança centrada na técnica, ou seja, no controle tecnocientífico da natureza e do mundo humano.

Mas como essa crença no controle técnico pôde se tornar um imperativo cultural tão inegociável? Por um lado, ela seria desejável, como afirmação confiante do ideal de personalidade livre; mas, por outro lado, ela precisaria ser moralmente justificada. E a justificação moral do ideal tecnicista viria da mudança do locus do bem, da alma do homem para o resultado da sua ação.

Em Os Territórios da Ciência e da Religião (Ultimato, 2017), o historiador Peter Harrison mostra que o mundo clássico conhecia uma ideia limitada de progresso individual, como um movimento natural do indivíduo em direção à sabedoria e à virtude. O conhecimento e o amor eram vistos como propriedades da alma. Mas, à medida que a noção de scientia foi reificada, deixando de ser vista como uma qualidade do sábio para um empreendimento externo, público e objetivo, o progresso do saber passou a ser visto como uma coisa externa à alma: “a ideia de progresso foi realocada da esfera do indivíduo para o domínio histórico”. A ideia de um progresso da alma é, então, substituída pela ideia de um progresso coletivo e histórico.

Isso não se deu apenas por uma mudança ideológica; o advento da imprensa e os avanços da filosofia experimental realmente mudaram a relação das pessoas com o conhecimento, e “uma vez que o conhecimento é realocado a novas mídias físicas, o aperfeiçoamento e o progresso pertencerão não a mentes individuais, mas a um armazém comum de conhecimento para o qual muitas mentes contribuirão e do qual elas se valerão”. Essa mudança, de caráter técnico, foi importante para a nova visão do progresso.

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Mesmo assim, é preciso reconhecer que uma mudança na concepção de moralidade era necessária, antes que as pessoas abandonassem a antiga visão do progresso como um crescimento das qualidades da alma. Isso aconteceu com o crescimento de uma visão utilitária do saber: “bom” é o que é útil para melhorar a condição humana. Esse era o tipo de argumento aduzido por Francis Bacon (1561-1626) em sua defesa da nascente ciência experimental. E mesmo aqueles que defendiam a filosofia experimental a partir da fé, como Robert Boyle (1627-1691), o pai da química moderna, e outros membros da Royal Society, argumentavam que ela era útil para a fé e serviam ao “benefício universal”.

O problema com essa linha de argumentação é que a utilidade da ciência deixou de ser vista como um ganho pessoal e espiritual do indivíduo, e passou gradualmente a ser vista como um ganho coletivo, independentemente do caráter do cientista individual. Ela implicava que “esses dois elementos de utilidade eram separáveis, pois os resultados práticos eram atingidos coletivamente e, portanto, eram separáveis da probidade moral de qualquer indivíduo que estivesse envolvido no processo”. Era como se o conhecimento fosse aos poucos desconectado e alienado da vida espiritual do indivíduo.

À medida que a nova ideia de progresso como realização histórica coletiva avança, a caridade deixa de ser uma realidade divina experimentada como uma virtude da pessoa, e se torna uma propriedade do sistema social ou do empreendimento coletivo

Segundo Harrison, não foi apenas o saber que passou por essa externalização e alienação. Tudo começou, na verdade, com a própria ideia de religião, ou religio, que no mundo clássico e cristão significava a piedade da alma, mas foi aos poucos se tornando um sistema objetivo e externalizado, uma estrutura social, e isso levou ao surgimento da ideia de que existiram as “religiões”.

Pois bem; além da ciência e da religião, o historiador observa que uma terceira virtude passa por essa ominosa exteriorização e objetificação: a própria ideia cristã de amor é submetida ao mesmo processo. Nas Escrituras e na tradição da igreja, o ágape é uma virtude moral e intelectual. Mas, com o avanço do ideal tecnocientífico, o locus do amor muda de lugar, da alma para a utilidade pública.

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“A caridade também passa por uma importante reconfiguração. De modo muito semelhante a como mudanças no sentido de ‘religião’ são assinaladas pelo acréscimo de um artigo, podemos ver nos usos mais antigos da ideia de ‘uma caridade’ a objetificação e institucionalização do que outrora foram simplesmente uma qualidade inerente... Na medida em que a nova ciência está voltada ao alívio da condição do homem – e esse, para Bacon, é seu fim verdadeiro – ela se torna a própria concretização da atividade caridosa...”

Harrison detectou em Bacon um “pelagianismo incipiente”, em sua expectativa de que o esforço coletivo da filosofia experimental poderia reverter os efeitos do pecado e, ao lado da religião, produzir uma espécie de redenção. Esse pelagianismo se ajustaria bem a uma visão externalizada e pragmática do bem; seria, na verdade, um resultado teológico da exteriorização e objetificação da virtude. O locus da moral deixaria de ser a alma do indivíduo ou as relações, para se identificar com o cumprimento eficiente das obrigações coletivas.

Essa transformação é momentosa; à medida que a nova ideia de progresso como realização histórica coletiva avança, a caridade deixa de ser uma realidade divina experimentada como uma virtude da pessoa, e se torna uma propriedade do sistema social ou do empreendimento coletivo. O bem não está no caráter ou na moralidade, mas existe objetificado e exteriorizado, no objetivo utilitário final do processo e, de modo vicário, nos atos e esforços daqueles que contribuem para o progresso, mesmo que eles, individualmente, não sejam bons. O bem é, portanto, alienado da alma e transportado para o sistema, tornando-se uma realização técnica.

A transformação narrada por Harrison é essencial para compreendermos, posteriormente, como é possível que o cultivo do amor e do caráter cristão tenha se tornado menos importante do que o compromisso dos cristãos com o progresso civilizatório e seus instrumentos; e como é possível que movimentos ideológicos acreditem que “o amor venceu” mesmo que os vencedores não tenham nenhum amor e até defendam a revolução violenta, como o socialismo marxiano. Na religião do progresso a caridade é uma realização exteriorizada, coletiva e técnica.

Essas considerações não eliminam a importância de reflexões consequenciais sobre a vida moral, mas impõem uma importante interrogação: à medida que nos tornamos mais utilitaristas, tendemos a sujeitar a imaginação moral coletiva a julgamentos de uma elite tecnicamente orientada – afinal, o “bem” seria uma questão de cálculo científico. Isso implica em externalizar cada vez mais a virtude, transferindo-a para esses dispositivos de cálculo e implementação da bondade, necessariamente comprometendo a formação moral de indivíduos e comunidades. O bem deixa de ser uma dádiva e um ponto de partida, para se tornar um projeto utópico de mentes privilegiadas – tanto naturais quanto artificiais – dos “timoneiros” do progresso civilizatório.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]