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Detalhe do “Sermão de São Francisco aos pássaros”, afresco de Giotto na Basílica de São Francisco, em Assis, na Itália.
Detalhe do “Sermão de São Francisco aos pássaros”, afresco de Giotto na Basílica de São Francisco, em Assis, na Itália.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Nesta quinta-feira foram inauguradas as celebrações do Tempo Litúrgico da Criação (Season of Creation), um período recentemente estabelecido nos calendários litúrgicos de muitas igrejas cristãs para agradecer a Deus pela natureza criada e lembrar os homens de seus deveres para com a criação.

A ideia começou com a proclamação, em 1989, do dia 1º de setembro como um dia de oração pela criação entre os cristãos ortodoxos, pelo patriarca ecumênico Dimitrios I. A proclamação acompanhou a tradição litúrgica da ortodoxia oriental, cujo calendário oficial começa de fato em 1.º de setembro. Mas o passo fundamental para um movimento global foi dado em setembro de 2007, na terceira assembleia ecumênica europeia do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), reunida em Sibiu, na Romênia, quando foi proposta uma nova estação litúrgica de cinco semanas, conectando o dia da Criação dos ortodoxos (1.º de setembro) com a festa litúrgica de São Franciso de Assis (4 de outubro), um símbolo da comunhão com a criação de Deus para muitos cristãos.

Devo dizer que ajuntar o cristianismo oriental com o ocidental amarrando essas duas datas foi uma ideia absolutamente genial.

Em 2008 o CMI oficializou a recomendação e sete anos depois, em 2015, o papa Francisco estabeleceu o 1.º de setembro como “Dia Mundial da Oração pelo Cuidado da Criação” na Igreja Católica Romana. A decisão foi muito coerente e oportuna, uma vez que a importantíssima encíclica Laudato Si’, “Sobre o cuidado da Casa Comum”, foi publicada em maio de 2015. E daí a coisa se espalhou para outras igrejas e movimentos. Anglicanos, luteranos, metodistas, batistas e reformados de várias partes do mundo vêm adotando a nova Estação da Criação, nas cinco semanas entre 1.º de setembro e 4 de outubro.

Deus não quer salvar apenas as almas dos homens, mas todo o planeta

Como evangélico, fiquei especialmente feliz com a participação do reverendo David Bookless no lançamento oficial da Estação da Criação 2022, transmitido on-line ontem. Bookless é colíder da Rede de Cuidado da Criação da Aliança Evangélica Mundial e do Movimento Lausanne, participa de grupos de trabalho sobre o tema na Igreja da Inglaterra, e é diretor de Teologia do projeto A Rocha Internacional, uma belíssima iniciativa global de conservação e educação ambiental. A mensagem de Bookless, em alinhamento com outros participantes, foi sobre a necessidade de ouvir vozes marginalizadas da criação, especialmente os seus gemidos (com uma referência ao que diz o apóstolo Paulo na sua Carta aos Romanos) – o tema da campanha deste ano é “Escutar a voz da Criação”. Vale citar o trecho bíblico aqui:

“Porque a criação ficou sujeita à inutilidade, não por sua vontade, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que também a própria criação seja libertada do cativeiro da degeneração, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois sabemos que toda a criação geme e agoniza até agora, como se sofresse dores de parto; e não somente ela, mas também nós, que temos os primeiros frutos do Espírito, também gememos em nosso íntimo, aguardando ansiosamente nossa adoção, a redenção do nosso corpo.” (Romanos 8,20-23)

Trata-se de um dos trechos mais citados em ecoteologia, pois revela que Deus não quer salvar apenas as almas dos homens, mas todo o planeta. Partindo dessa referência sobre a criação ansiando por sua redenção final, o reverendo Bookless convidou seus ouvintes a ouvir esses gemidos do mundo e os gemidos do próprio Deus “no derretimento de glaciares, no branqueamento de corais, na queda das grandes árvores, no envenenamento dos oceanos, no assustador avanço dos desertos, e no desaparecimento de espécies uma vez familiares de suas áreas locais”, bem como no clamor das vítimas humanas desse caos global.

Talvez a essa altura alguns leitores conservadores já estejam especulando sobre como os tentáculos do progressismo globalista se meteram dentro de um jornal conservador para desviar incautos. No entanto, o problema levantado aqui não é firula progressista. Tenho certeza de que se eu houvesse citado o gemido sem voz dos milhões de bebês abortados pela atual cultura da morte ninguém pensaria em levantar objeção.

O fato, no entanto, é que o sistema abortista dos “direitos reprodutivos” é uma das mais evidentes demonstrações do estado de penúria da criação de Deus. É verdade que essa alienação vai além dos atos malignos dos homens, mas indubitavelmente os inclui, pois o ser humano também é natureza criada. Fanáticos verdes que choram pelas almas dos pinguins e se riem de fetos abortados são malucos morais, mas conservadores que se riem da extinção em massa de espécies acelerada pela ação humana têm mentes igualmente pervertidas.

Falta a muitos conservadores uma visão sistêmica do problema: a mesma ética do individualismo expressivo, que despreza a comunidade, a família, o nascituro, o corpo e a diferença sexual, recusando limites bioéticos, é a ética do desmatamento, da exploração predatória dos recursos naturais e do hiperconsumo, que vem jogando lenha nas caldeiras da destruição humana do meio ambiente. Não há como encontrar um equilíbrio nessas coisas sem uma revolução moral que, no caso do cristianismo, seria simplesmente a busca de coerência entre vida e confissão de fé.

O sistema abortista dos “direitos reprodutivos” é uma das mais evidentes demonstrações do estado de penúria da criação de Deus

E nem é isso uma peculiaridade protestante ou alegadamente progressista. Em sua importantíssima encíclica Centesimus Annus (1991), o papa João Paulo II recorreu à expressão “ecologia humana” para traçar paralelos entre uma ética cristã da conservação ambiental e a doutrina social cristã:

“Além da destruição irracional do ambiente natural, é de recordar aqui outra ainda mais grave, qual é a do ambiente humano, a que se está ainda longe de prestar a necessária atenção. Enquanto justamente nos preocupamos, apesar de bem menos do que o necessário, em preservar o ‘habitat’ natural das diversas espécies animais ameaçadas de extinção, porque nos damos conta da particular contribuição que cada uma delas dá ao equilíbrio geral da terra, empenhamo-nos demasiado pouco em salvaguardar as condições morais de uma autêntica ‘ecologia humana’. Não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral, de que foi dotado. Neste contexto, são de mencionar os graves problemas da moderna urbanização, a necessidade de um urbanismo preocupado com a vida das pessoas, bem como a devida atenção a uma ‘ecologia social’ do trabalho. (...) A primeira e fundamental estrutura a favor da ‘ecologia humana’ é a família.” (n. 38 e 39)

O pensamento católico aqui é muito similar ao do evangelista reformado Francis Schaeffer, encontrando no pensamento ecológico, com sua profunda consciência de uma interdependência e de uma harmonia natural e sistêmica entre as criaturas, uma frutífera ressonância com a ideia cristã de ordem criacional. Deus teria estabelecido uma verdadeira ordem ecológica que inclui o próprio ser humano.

Mas vejam bem a implicação disso: a própria família seria, então, assunto de fé criacional e de cuidado ambiental. Assim como o seria a própria concepção humana, e o pontífice citará logo depois o problema do aborto, como um movimento antivida e, assim, antiecológico.

E daí chegamos ao papa Francisco, costumeiramente desprezado por conservadores, inclusive católicos, no tocante à questão da conservação ambiental. No entanto, na Laudato Si’ ele cita o conceito de “ecologia humana” de João Paulo II como ponto de partida para a sua própria concepção de “ecologia integral”, que reúne a conservação da natureza não humana e humana.

E isso me leva a um ponto que, em minha opinião, é do mais alto interesse para todos os cristãos, e ainda mais para aqueles conservadores: a estação litúrgica da criação é um tempo excepcional para todo tipo de atividade pedagógica ao redor de uma ecologia integral. No entanto, segundo tenho observado, o tempo da criação tem sido muito lembrado por cristãos de índole progressista, que o tomam para lembrar os problemas da mudança climática, do desmatamento, da extinção em massa, da dizimação de populações indígenas – todos problemas importantes e urgentes –, mas esquecendo todos os temas da ecologia humana como a proteção da família, do nascituro, da dignidade humana e do trabalho. Como se tais assuntos não fossem parte da ética cristã da natureza.

A mesma ética do individualismo expressivo, que despreza a comunidade, a família, o nascituro, o corpo e a diferença sexual, recusando limites bioéticos, é a ética do desmatamento, da exploração predatória dos recursos naturais e do hiperconsumo

Ao mesmo tempo, boa parte dos conservadores mal sabe a respeito da Estação da Criação, reputando-a como mera ferramenta globalista. Uma verdadeira tragédia. O cristão conservador descuidado com a relação entre a sociedade moderna e a natureza chega a ser tão contraditório quanto o progressista que berra dignidade humana aos quatro ventos, mas nega a existência de Deus.

Temos nos empenhado, em nossa pequena congregação evangélica local, em um esforço para celebrar a Estação da Criação tendo em vista uma ecologia realmente integral: ao longo de suas cinco semanas trataremos da função religiosa e espiritual da natureza, do cuidado das criaturas, da pessoa humana, do combate ao racismo, da luta antiaborto, da defesa da família e do casamento, da dignidade do trabalho e até mesmo da ciência natural como um serviço a Deus.

Mas não é preciso ser um líder religioso para participar desse movimento. Cada pai, mãe e irmão pode aproveitar esse tempo para ouvir os louvores e os gemidos da criação, e para unir ecologia natural e humana em uma única espiritualidade criacional.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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