Segurança tenta impedir que fotógrafo faça imagens da fachada do Instituto de Virologia de Wuhan| Foto: EFE/EPA/ROMAN PILIPEY
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No dia 9 de setembro de 2020, os jornais brasileiros davam destaque em suas primeiras páginas a queimadas, alta no preço do arroz, o arrefecimento da pandemia de Covid-19, falavam das estripulias de Donald Trump e algumas amenidades. No dia seguinte, o noticiário parecia exatamente igual. Tudo parecia voltar ao padrão de normalidade nacional e indicava um vazio existencial para aqueles que podem ter se acostumado a escrever sobre tragédias.

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Naqueles dias de calmaria, ninguém parece ter prestado atenção em um evento hospedado pela Academia Brasileira de Ciência em consórcio com a Academia Chinesa de Ciências. Os membros das duas entidades dedicaram três horas e trinta e sete minutos de suas vidas para trocar experiências sobre a Covid-19, doença que até aquele dia 9 de setembro de 2020 já havia matado 950.781 pessoas no mundo, sendo 128.539 no Brasil.

Sob o olhar atento do embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, cientistas brasileiros e chineses trocaram impressões, contaram alguns esforços e distribuíram afagos. Nada atípico se entre eles não estivessem dois personagens centrais para compreender as origens da pandemia. Os virologistas George Gao e Shi Zhengli.

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Gao é o diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças, o CDC da China. É ele quem reporta diretamente ao Comitê Central do Partido Comunista Chinês tudo relacionado ao vírus que já matou 4,86 milhões de pessoas em todo o mundo. Gao é, possivelmente, o homem que tudo sabe. É uma espécie de dono do cofre que guarda alguns dos segredos inconfessáveis da tragédia. Respostas sobre as origens da Covid-19, detalhes de como ela se alastrou e como a China atuou nas trevas até a situação fugir de controle nos últimos dias de 2019.

Shi é outra estrela da virologia chinesa. Ela é, nada mais nada menos que, a “Mulher Morcego”. Talvez a pessoa mais importante na trágica história da pandemia que mudou o mundo. Ela comanda as pesquisas com coronavírus no Instituto de Virologia de Wuhan. Há muita gente séria no mundo científico que está convencida que o Sars-CoV-2, como foi batizado o vírus causador da Covid-19, vazou de seu laboratório.

Ambos falaram sobre seus esforços para ajudar o mundo a sair do atoleiro que eles podem ter ajudado a criar sem serem incomodados. Nem uma curiosidade científica emergiu do evento. Nem uma. Gao, por sinal, fez longos elogios ao amigo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – que coincidentemente foi anunciado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como parte de uma nova missão que vai à China buscar as origens do vírus. Puro realismo mágico.

Sob o comando de Xi Jinping, o regime chinês travestiu de “transparência” uma das mais flagrantes operações de encobrimento da história recente. Espalhou a versão que o vírus havia saltado dos morcegos para os humanos valendo-se de uma espécie intermediária. Difamou um mercado, local onde são vendidos, entre outras coisas bem esquisitas, animais silvestres que eram abatidos ali mesmo sem nenhum tipo de inspeção sanitária.

Todos os bichos vendidos vivos ou prontos para o consumo foram investigados. Outras milhares de espécies foram estudadas e quase dois anos depois dos primeiros casos, ainda não surgiu sequer uma pista da espécie que teria servido de ponte entre os morcegos e os humanos.

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O Sars-CoV-2, aliás, sequer é idêntico aos seus parentes mais próximos encontrados na natureza. A espécie de morcego que pode ter sido a fonte natural do vírus não vive por Wuhan. É endêmico de outra região e deveria estar hibernando quando do surgimento formal dos primeiros casos.

A edição mais recente da revista americana The New Yorker traz uma investigação cheia de pistas sobre o comportamento negligente da doutora Shi – a “Mulher Morcego”. Em 2018, ela e outros dois cientistas – que fizeram parte da fracassada primeira missão da OMS para explicar a origem da Covid-19 – tentaram sugar 14,2 milhões de dólares da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa, vinculada ao Pentágono, para testar e identificar riscos de coronavírus de morcegos “saltarem” para outros animais e humanos. O projeto foi recusado. O grupo mostrou que tinha todos os instrumentos para desenvolver a pesquisa, mas não tinha a menor preocupação em ter um plano para conter o possível surgimento de um novo vírus com potencial de causar uma pandemia. Um dos comentários dos avaliadores, diz a The New Yorker, ficou chocado com a irresponsabilidade da proposta.

A revista conta algumas histórias que mostram como a Mulher Morcego não é muito amiga da transparência. Descreve como ela ocultou a emergência de um coronavírus letal identificado por ela em 2016 e como alguns de seus papers são notadamente cheios de omissões e segredos sobre riscos existentes nas suas atividades de alto risco. Algumas delas foram feitas em laboratórios precários, sem os níveis de segurança exigidos.

Em 2019, a doutora Shi esteve no Brasil. Foi recepcionada com pompa e circunstância pelos seus colegas da Fiocruz. Não era para menos. Assim como os portugueses conquistaram os nativos distribuindo uns espelhos 500 anos atrás, os chineses oferecem bolsas de pesquisa e doam equipamentos para as instituições e cientistas de seu interesse. A estratégia não é aplicada com exclusividade na Fiocruz ou no Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, ela tomou dimensões tão complexas que já virou caso de polícia.

Alguns dos membros da missão da OMS vêm exatamente desse caldo de cultivo da influência estratégica da China na academia. Alguém pode afirmar que eles não atuarão com independência? Sim e não. Mas não é absurdo pensar no conflito de interesses derivado de uma relação de dependência com os chineses. E isso pode ser muito ruim.

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A OMS parece não ter aprendido com os problemas da primeira missão. Ou, simplesmente, parece que não faz questão alguma de aprender com os problemas da primeira missão.