
Ouça este conteúdo
A estátua “A Justiça”, de Alfredo Ceschiatti, é linda. Em um bloco único de granito, ela é a representação da imparcialidade (olhos vendados) e da força da lei (espada), em perfeito equilíbrio com o projeto arquitetônico de Brasília. Ela adorna a frente do edifício do Supremo Tribunal Federal (STF), que, na imagem acima, aparece banhado por uma luz laranja, em referência ao Dia Internacional dos Direitos Humanos.
Poucos param para pensar sobre o assunto, mas a Justiça, como um dos três Poderes, não é um subproduto dos Estados modernos ou da democracia. Antes de haver repúblicas ou constituições, já existia a noção de que o poder precisava ser contido por regras, e que essas regras deveriam valer inclusive e sobretudo para quem governa.
Foi essa intuição civilizatória que limitou o absolutismo dos monarcas, que deu origem ao constitucionalismo moderno e que serviu de berço às democracias. A Justiça, portanto, não é um apêndice administrativo do Estado. Ela é um de seus alicerces. Mas seria a Justiça um superpoder?
Claro que não. Justamente por isso, quando a Justiça ultrapassa o seu papel, o dano é devastador. Minar o Judiciário não é apenas mais uma disfunção institucional do modelo de equilíbrio de poderes. É um ataque direto ao coração da democracia. Mais letal do que golpes militares clássicos, mais silencioso do que tanques nas ruas, mais eficaz do que censuras explícitas.
Quando a Justiça deixa de ser limite e passa a ser instrumento, a democracia entra em estado terminal. E aquela imagem de uma justiça cega se dilui. Sem a venda, perde a imparcialidade e a frieza do granito de Ceschiatti, restando-lhe apenas as mãos fortes e a espada.
Como resultado dessa distorção, a mesma Justiça que se apresenta como guardiã dos direitos de todos passa a escolher quem merece tê-los. Direitos passam a ser tratados não como princípios universais, mas como concessões seletivas, distribuídas segundo o humor político do momento, a identidade do réu ou a utilidade estratégica do caso.
Quando a Justiça que deveria ser cega passa a enxergar demais, começa a ver conveniências, oportunidades, amigos e inimigos.
A balança perde o equilíbrio, e a espada, que deveria conter abusos, transforma-se no próprio abuso. Aquilo que deveria proteger o cidadão passa a vigiá-lo, constrangê-lo, silenciá-lo
O Judiciário, então, já não arbitra conflitos, mas administra amizades e lealdades.
Para uma parte dos brasileiros, a Justiça se tornou uma instância redentora, responsável por “salvar” a democracia do chamado fascismo bolsonarista. Sob essa narrativa, qualquer excesso é tolerável. Qualquer distorção é justificável. Nem mesmo 129 milhões de motivos vindos de relações tortuosas, decisões controversas, atropelos processuais ou violações evidentes de garantias fundamentais parecem suficientes para gerar um gesto mínimo de autocrítica ou contrição institucional.
Do outro lado da arquibancada ideológica, a crítica deixou de ser um direito. Quem questiona vira réu em potencial, golpista, membro de alguma seita obscurantista indigna da redenção concedida pelo Judiciário. O debate público é substituído por rótulos, e o devido processo vai sendo corroído pela exceção permanente.
E, no centro do campo, onde está a maioria absoluta dos brasileiros, impera o silêncio. Um silêncio desconfortável, constrangido, mas ainda assim silêncio. Não é adesão entusiasmada, tampouco oposição militante. É a percepção difusa de que algo saiu do eixo, mas que apontar isso em voz alta pode ter custo alto demais, seja por medo de retaliação, seja por medo da “volta do fascismo”.
O mais louco disso tudo é que o cidadão comum, que passou a medir palavras para evitar problemas, muitas vezes não percebe que algo fundamental já lhe foi tirado.
A luz laranja que banha o Supremo deveria ser mais do que uma homenagem simbólica aos direitos humanos. Deveria servir como alerta. Direitos humanos não sobrevivem onde a Justiça escolhe lados.
Democracias não resistem quando o Judiciário se confunde com projeto político. E nenhuma sociedade permanece livre quando o poder encarregado de conter abusos passa a exercê-los.
A estátua esculpida por Ceschiatti segue ali, imóvel, segurando a espada. Resta saber se ela ainda representa a Justiça que fundou o Estado democrático ou se será apenas um monumento ao passado.





