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A coluna de Fernando Gabeira, publicada em O Globo, deu nome e rosto a uma tragédia que muitos preferem ignorar. Alexandra Aparecida da Silva, 45 anos, tornou-se o símbolo da injustiça suprema no Brasil contemporâneo. Uma mulher simples, mãe, trabalhadora, sem armas, sem liderança política, transformada em prisioneira de um golpe que não existiu. Gabeira, com sua pena elegante e serena, fez o que o jornalismo tem a obrigação de fazer: mostrou o rosto humano por trás da máquina impessoal da repressão.
Mas Alexandra não é a única. Há centenas de outras "Alexandras" — pessoas que se tornaram rés e prisioneiras de um crime impossível: o de tentar derrubar o Estado com bandeiras, camisetas e celulares. A baderna de 8 de janeiro foi o que foi: uma rebelião desorganizada, uma sublevação de pessoas infladas por fanáticos digitais que, confortavelmente longe de Brasília, repetiam o mantra “é só ir que dá”. Uma insanidade coletiva, sim. Mas não um golpe.
O Brasil, no entanto, escolheu a palavra “golpe” como a narrativa conveniente para enterrar, de uma vez por todas, os derrotados políticos e os incômodos ideológicos. E, ao fazer isso, inventou algo inédito na história moderna: um golpe de Estado sem militares, sem armas e sem comando. Um golpe civil, simbólico, que serviu como senha para instaurar um estado de exceção disfarçado de zelo democrático.
A exceção virou normalidade. O absurdo se tornou cotidiano. E a sociedade, anestesiada, assiste sem reagir. O mesmo país que conviveu por décadas com milícias armadas, PCC, Comando Vermelho e facções infiltradas no Estado agora acredita que velhinhas de camiseta verde-amarela eram uma ameaça real à República.
A Gazeta do Povo tem feito uma campanha corajosa e solitária com uma pergunta simples e devastadora: quantas vozes o Supremo calou?
O silêncio diante dessa pergunta é cúmplice. O silêncio legitima a inversão moral que nos trouxe até aqui. Para supostamente salvar a democracia, o Brasil a matou. E agora, entre aplausos e indiferença, o cadáver começa a esfriar — e ainda há quem acredite que dá para usar um desfibrilador.
O caso de Alexandra ganhou rosto e emoção, mas há outros exemplos igualmente absurdos. Filipe Martins, ex-assessor presidencial, foi preso por uma viagem que não fez. E, mesmo que tivesse feito, não estava impedido de fazê-la.
O detalhe não importa mais. No Brasil da exceção, a presunção de inocência virou privilégio dos vencedores
O detalhe não importa mais. No Brasil da exceção, a presunção de inocência virou privilégio dos vencedores.
A deformação institucional é tamanha que já parece vantajosa para alguns. O uso político do sistema de Justiça é vendido como higienização moral. Os abusos são justificados como “pedagogia democrática”. E quem ousa questionar é tratado como cúmplice de golpistas. É o que talvez possa ser chamado de pedagogia do medo.
É verdade que as democracias não morrem apenas quando tanques tomam as ruas. Elas definham lentamente, de várias formas pseudo-institucionais: quando as vozes dissonantes são silenciadas; quando a lei vira instrumento de vingança; quando o medo substitui o debate; quando o cidadão começa a achar que é melhor não abrir a boca.
O Brasil está esquisito. E cada vez mais esquisito. Não é só o grotesco dos absurdos jurídicos, mas a indiferença com que eles são assimilados. O país se acostumou à exceção como quem se acostuma à dor crônica: sabendo que dói, mas preferindo não sentir.
A democracia, essa palavra tão repetida, virou um fetiche vazio. Fala-se dela para justificar o seu oposto. Os mesmos que clamavam contra o autoritarismo agora o praticam com entusiasmo. Os tribunais, que deveriam ser o último reduto de imparcialidade, transformaram-se em extensões de partidos. E o cidadão comum, aquele que acreditava que a lei o protegeria, teme cada vez mais o poder da caneta.
Não há democracia sem liberdade. Alexandra é apenas um rosto entre muitos — um retrato do país que acreditou ser possível salvar a democracia matando-a, na esperança de um dia ressuscitá-la.





