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Parece evidente que a escolha de palavras pode influenciar, de maneira decisiva, a formação da opinião pública. A linguagem é uma ferramenta na disputa pelo controle da narrativa. Um exemplo claro é a variedade de rótulos dados à controversa Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 03/2021, que reforça as imunidades de deputados e senadores, atualmente em tramitação no Congresso Nacional: “PEC da Blindagem”, “PEC das Prerrogativas”, “PEC da Bandidagem” etc.
Nenhuma dessas denominações é neutra: termos técnicos tendem a descrever a PEC como necessária e legítima; termos emocionais ou pejorativos buscam gerar repulsa na sociedade.
De forma subliminar, todas carregam premissas implícitas, com o objetivo de moldar a percepção pública e favorecer determinados interesses. Nomes que evocam moralidade ou ilegalidade também funcionam como gatilhos emocionais, enquanto termos institucionais e técnicos buscam ativar a racionalidade.
Defender ou criticar uma PEC não é, portanto, apenas uma questão de análise técnica, mas de capacidade de moldar o discurso dominante, de forma a influenciar decisões políticas e comportamentos eleitorais. Por tudo isso, parece menos importante analisar o conteúdo da PEC do que apresentá-la de forma que a sociedade a perceba como legítima, necessária ou abusiva.
Cada premissa determina não apenas a percepção pública, mas também o tipo de argumentação que será utilizado nos debates, o perfil do eleitor mobilizado e a forma como a grande mídia tratará o tema. Políticos, jornalistas e grupos de interesse escolhem as palavras de maneira a ativar preconceitos, crenças e valores preexistentes, como veremos a seguir.
“PEC da Blindagem”: a narrativa defensiva
À primeira vista, o termo “PEC da Blindagem” carrega uma conotação negativa. Ele sugere proteção indevida contra críticas ou fiscalização, implicando que a proposta tem como objetivo proteger parlamentares e favorecer interesses privados ou corporativos, acima do interesse público.
A premissa dessa narrativa é a desconfiança: quem cria leis para se proteger está necessariamente mal-intencionado. O rótulo funciona como um gatilho que evoca imagens de um grupo privilegiado se escondendo atrás de uma barreira legal.
Quando a mesma PEC recebe rótulos radicalmente diferentes, o debate se polariza em torno de percepções e emoções, não de fatos e argumentos
A motivação por trás do uso desse termo, portanto, é dupla: mobilizar a opinião pública contra a proposta e enquadrar moralmente seus defensores como interessados na impunidade.
Por outro lado, embora a palavra “blindagem” seja usada por críticos para sugerir impunidade, ela também pode ser reinterpretada favoravelmente, como uma "armadura institucional" contra ataques judiciais desmedidos, ou como um “escudo vital” que garanta a independência do Congresso e a sobrevivência da democracia representativa.
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“PEC das Prerrogativas”: a narrativa técnica
O rótulo “PEC das Prerrogativas” apresenta uma narrativa institucional, com ênfase em direitos e deveres. A palavra “prerrogativa” é neutra, sugerindo que a PEC busca simplesmente restabelecer o equilíbrio entre os Poderes, protegendo a independência do Legislativo em Relação ao Judiciário.
Neste caso, a premissa é a de um sistema no qual um Judiciário hipertrofiado criou desequilíbrios entre os Poderes, que a PEC tenta corrigir limitando prisões arbitrárias, medidas cautelares excessivas e ações penais.
O objetivo sugerido é salvaguardar a democracia de um "supremo" que age como superpoder. A PEC seria uma medida necessária para preservar garantias previstas na Constituição e garantir que parlamentares exerçam seu mandato sem o temor de retaliações por discordâncias ideológicas
A motivação de quem usa essa terminologia é descrever a proposta como racional, equilibrada e necessária, evitando a percepção de favorecimento indevido dos parlamentares.
“PEC da Bandidagem”: a narrativa moralizante
Já o rótulo “PEC da Bandidagem” é carregado de forte conotação moral, que não apenas sugere proteção indevida, mas vai além, imputando uma associação direta entre a proposta e a criminalidade. A premissa implícita aqui é que qualquer tentativa de limitar o alcance de órgãos de fiscalização ou restringir sanções por parte do Judiciário é, por definição, uma ação que só beneficia criminosos.
O objetivo desse rótulo é provocar indignação moral e mobilizar setores da sociedade que valorizam a moralidade. Mas ele reduz um debate jurídico complexo a uma narrativa de “certo” e “errado”, deixando pouco espaço para nuances. A motivação é uma clivagem emocional que impossibilita qualquer defesa racional de uma PEC associada a condutas ilegais.
Essa variedade de nomes e narrativas também revela um fenômeno maior: a dificuldade da sociedade em lidar com questões complexas sem a mediação de símbolos linguísticos simplificadores. Nomes carregados emocionalmente ajudam a reduzir a complexidade dos problemas, permitindo que o debate seja entendido em termos binários, de certo ou errado, amigo ou inimigo.
O problema é que, quando a mesma PEC recebe rótulos radicalmente diferentes, o debate se polariza em torno de percepções e emoções, não de fatos e argumentos.
Entender essas estratégias de rotulagem é essencial não apenas para analisar de forma fria e desapaixonada a PEC em questão, mas também para compreender a política contemporânea, na qual o poder das palavras frequentemente determina o destino de leis, ministros, políticos e, eventualmente, governos inteiros.




