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Escândalo da pirataria: indignação seletiva e relativismo moral
| Foto: Reprodução Instagram

A cruzada iniciada pelo escritor e jornalista Fernando Morais contra a pirataria digital de sua biografia de Lula, tema do meu artigo da última sexta feira, está repercutindo e ganhando adeptos. Parece que só agora muita gente descobriu, escandalizada, que versões digitais de livros circulam gratuitamente na internet. Que horror!

Vamos aos fatos. Durante as duas últimas décadas, vendeu-se para a sociedade brasileira a ideia de que era moralmente justificável e até bonitinho piratear obras alheias, com a justificativa de que todos devem ter acesso à cultura e ao conhecimento. Criaram até um nome para isso: “copyleft” (em oposição a “copyright”, direito autoral), assim definido:

“Copyleft é uma forma de usar a legislação de proteção dos direitos autorais com o objetivo de retirar barreiras à utilização, difusão e modificação de uma obra criativa devido à aplicação clássica das normas de propriedade intelectual.”

Desnecessário dizer, o argumento de que o copyleft só prega a livre reprodução e distribuição sem fins lucrativos de obras alheias é desonesto e falacioso. A ausência de fins lucrativos de quem rouba não muda o fato de que o autor e a editora estão sendo roubados. Obviamente, se autores e editoras deixam de ser remunerados pelo seu trabalho em função da pirataria, é questão de tempo para autores procurarem outra fonte de renda e para editoras fecharem as portas.

(Não deixa de ser curioso, porém, que muitos dos escritores e editoras que agora estão reclamando porque a pirataria destrói o seu modelo de negócios são os mesmos que lançam e aplaudem obras lacradoras, dedicadas a sabotar o sistema capitalista, a democracia liberal e o mercado malvadão).

Como mostra uma simples busca no Google por “livros em PDF”, a pirataria é escancarada. Há dezenas de comunidades nas redes sociais que se dedicam exclusivamente ao “compartilhamento” de livros (os meus, inclusive). Mas só agora o assunto virou objeto de indignação: diversos escritores se manifestaram pedindo que as editoras e o governo façam alguma coisa. Mas, quando a pirataria era “do bem”, ninguém se manifestava. O Brasil cansa.

Relativismo moral e indignação seletiva é o que mais se vê por aí: parece que o problema não é o roubo em si, mas de quem se rouba

Sinto informar: a pirataria é apenas o sintoma de uma sociedade doente. De nada adianta pedir uma legislação mais dura contra quem pirateia livros e continuar a bater palma e achar bonito quando outros direitos à propriedade são violados por gente “do bem” – como na ocupação de terras e imóveis por “movimentos sociais”, para só citar um exemplo óbvio.

Relativismo moral e indignação seletiva é o que mais se vê por aí. Aliás, o próprio Fernando Morais é contra a pirataria da sua própria obra, mas sugeriu, em entrevista à revista “Fórum”, aspas: “Se por acaso eles querem piratear quem não depende do trabalho para viver, eles que se dediquem a piratear o Banco Itaú. Vão aos cofres do Itaú, do Bradesco, do Santander, que aí, sim, eles vão bater no lugar certo”. Ou seja, parece que o problema não é o roubo em si, mas quem se rouba.

A disseminação da pirataria só tende a crescer em uma sociedade sem valores compartilhados e sem noções claras de certo e errado; uma sociedade na qual, cada vez mais, se incentiva as pessoas a confundir vontades com direitos e a exigir direitos diferenciados conforme o grupo ao qual se pertence. Uma sociedade assim não tem a menor chance de dar certo, como demonstram os crescentes conflitos entre grupos identitários que começam a se cancelar mutuamente.

O mal feito à cabeça das pessoas foi enorme. Em relação a direitos autorais, a mentalidade que se consolidou no Brasil foi: se eu quero ler um livro que acabou de ser lançado e não tenho dinheiro para comprar, eu tenho o direito de baixar uma versão digital pirata; se eu quero assistir ao filme ou à série que todo mundo está comentando e não quero pagar a assinatura de uma empresa capitalista malvadona com o a Netflix, eu tenho o direito de acessar um site pirata ou de usar senhas alheias nos sites legais. A sociedade tem obrigação de me dar acesso a esses produtos culturais, e quem discordar de mim é reacionário, fascista e genocida.

Querem realmente resolver o problema da pirataria? Trabalhem contra essa cultura. Ensinem aos seus filhos que existem o certo e o errado, e que o certo e o errado devem ser os mesmos para todos, e que ninguém deve ter privilégios com base em sua origem ou classe social. Valorizem o estudo, o mérito, o trabalho e a dedicação individual como caminhos para o êxito e a realização pessoal.

Lutem por uma sociedade na qual o esforço e o talento sejam recompensados, não por uma sociedade na qual só existem direitos, e nenhum dever. Parem de incentivar o ressentimento e o ódio entre os brasileiros.

Ataquem o problema no ponto de partida. Lutem por uma educação básica universal de qualidade, que proporcione igualdade de oportunidades para todos, em vez de fingir acreditar que é possível resolver o problema no ponto de chegada, distribuindo diplomas e vagas em universidades com base em políticas supostamente compensatórias - cujo único resultado é gerar um exército de desempregados com diploma, que só aprenderam em sala de aula a lacrar, exigir mais direitos e apontar o dedo para os outros nas redes sociais.

Se começarem a fazer isso agora, talvez daqui a duas ou três gerações o Brasil tenha alguma chance de dar certo.

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