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Há duas maneiras de interpretar a Guerra da Ucrânia: como uma briga entre bandidos e mocinhos ou como um conflito que estava contratado – e até mesmo anunciado – já há várias décadas.
A guerra não aconteceu no vácuo: ela é consequência do choque de interesses de duas potências – e de uma sequência de decisões erradas tomadas ao longo dos anos. A leitura de dois artigos de importância histórica, publicados em 1997 e 2014, comprova que não faltaram sinais de alerta e que a guerra poderia ter sido facilmente evitada.
Em 5 de fevereiro de 1997, George F.Kennan (1904-2005) publicou no jornal “The New York Times” o artigo “Um erro fatal”. Formulador da chamada “doutrina da contenção” e principal responsável pela arquitetura da política externa americana durante a Guerra Fria, Kennan criticava duramente a política de expansão da OTAN, adotada pelos Estados Unidos após o colapso da União Soviética.
Naquele momento, o então presidente Bill Clinton estava rasgando o compromisso, assumido no processo de reunificação da Alemanha, de não expandir a OTAN “nem uma polegada” na direção de Moscou. Clinton advogava abertamente a entrada na aliança militar de antigos membros do Pacto de Varsóvia, a extinta aliança militar soviética.
Segundo Kennan, este foi um erro fatal, que deterioraria por décadas a fio a relação entre a Rússia e o Ocidente, resultando em uma nova Guerra Fria. Com o fim do bloco comunista, argumentava o diplomata, não havia justificativa para expandir a aliança militar em direção às fronteiras russas.
Ao contrário: os Estados Unidos e seus aliados europeus deveriam se empenhar em construir um novo modelo de segurança coletiva focado na cooperação, em vez de excluir os russos da nova ordem unipolar. Até porque, no início da década de 1990, a Rússia estava tentando se democratizar: o país deveria ser tratado como um parceiro em reconstrução, não como um inimigo a hostilizar e isolar.
Expandir a OTAN só serviria para fortalecer os grupos mais nacionalistas e antiocidentais da Rússia e teria um efeito contraproducente a longo prazo, pois criaria ressentimento e desconfiança. A escalada das tensões, advertia o diplomata, levaria fatalmente a um confronto militar no futuro. Dito e feito.
Mas o alerta de Kennan foi ignorado. Em 1999, a Polônia, a Hungria e a República Tcheca ingressaram na OTAN. Em 2004, uma segunda onda de expansão da aliança militar incluiu Estônia, Letônia, Lituânia, Eslováquia, Eslovênia, Romênia e Bulgária. Isso significava que a OTAN agora fazia fronteira direta com a Rússia, no Báltico. Significava, também, que agora qualquer conflito local poderia escalar facilmente para a Terceira Guerra Mundial.
Em 2007, Putin fez seu célebre discurso na Conferência de Segurança de Munique, acusando os Estados Unidos de comportamento agressivo e reiterando que a Rússia enxergava a expansão da OTAN como uma provocação e uma ameaça existencial. Também foi ignorado. Pior: já no ano seguinte, a OTAN anunciou a intenção de incorporar a Ucrânia e a Geórgia, algo inadmissível para Putin.
Em agosto de 2008, veio a guerra russo-georgiana, em torno do controle das regiões separatistas da Ossétia do Sul e da Abkházia, que tinham laços étnicos e culturais com a Rússia. Apesar de durar apenas cinco dias, o conflito foi relevante por explicitar o impasse que estava colocado. O recado era claro: a Rússia estava disposta a intervir militarmente, caso a linha vermelha da sua segurança fosse ultrapassada.
Mas os Estados Unidos e a OTAN “pagaram pra ver”, mais uma vez.
George Kennan e Henry Kissinger foram dois dos mais influentes diplomatas americanos do século 20. O tempo mostrou que eles estavam certos
O segundo artigo, “Como a crise da Ucrânia termina”, foi publicado pelo ex-secretário de Estado Henry Kissinger (1923-2023) no jornal “The Washington Post”, em 5 de março de 2014. O artigo foi publicado pouco depois de a Rússia anexar a Crimeia, em fevereiro daquele ano.
Mesmo condenando a invasão (sim, é possível condenar Putin e a OTAN ao mesmo tempo), Kissinger criticou duramente a política ocidental que vinha sendo adotada em relação à Ucrânia e à expansão da aliança.
O Ocidente estava cometendo um erro gravíssimo ao tentar transformar a Ucrânia em um bastião anti-Rússia, em vez de transformá-la em uma ponte entre o Ocidente e Moscou, Kissinger afirmou. E advertiu: se o Ocidente continuasse pressionando pela integração da Ucrânia, isso deflagraria um grande conflito com a Rússia.
Kissinger recomendou que a Ucrânia permanecesse neutra e abandonasse qualquer pretensão de fazer parte da OTAN; defendeu que a Crimeia (aliás, dada de presente por Kruschev à Ucrânia em 1954, quando todos ali faziam parte da União Soviética) ganhasse status de região autônoma, sem ser anexada pela Rússia; por fim, afirmou que o Ocidente errou feio, ao ignorar as preocupações manifestadas repetidas vezes por Putin.
É importante lembrar que, também em 2014, após protestos populares fomentados e financiados de fora, um violento golpe de Estado apoiado pelos Estados Unidos e por países europeus derrubou o presidente ucraniano democraticamente eleito, Viktor Yanokovich. Em seu lugar, foi colocado um fantoche alinhado com os interesses americanos. Um áudio vazado da época mostra altos funcionários do governo americano escolhendo a dedo quem deveria ser o próximo presidente do país.
Mal tomou posse, o novo governo ucraniano promoveu uma legislação russófoba, que proibia até o uso da língua russa no país (sendo que o russo é o primeiro idioma de um quinto da população ucraniana). Jornais de oposição foram fechados. Coincidentemente, ONGs e mídias “independentes” passaram a receber fartos recursos da USAID e (segundo denunciou Elon Musk nesta semana) diretamente de George Soros. Quem poderia imaginar?
Aliás, um processo semelhante está ocorrendo na Romênia neste exato momento. O candidato vencedor do primeiro turno da eleição presidencial, Calin Georgescu, de “ultradireita”, não agradou à Europa ocidental. A eleição foi cancelada e Georgescu foi banido pela Justiça Eleitoral de seu país dois dias antes do segundo turno. É assim que funcionam as novas democracias.
As acusações contra Georgescu: fascismo, fake news, atentado à democracia, ameaça ao Estado de direito etc. Também houve denúncias de interferência russa na eleição por causa de vídeos no TikTok - porque, é claro, só são admitidas interferências da USAID e de ONGs patrocinadas por Soros.
É assustador. Parece que a moda agora é censurar, perseguir e mandar prender adversários políticos, manipular eleições, etc., tudo em nome da defesa da democracia. Se a maioria do eleitorado teima em votar errado, a Justiça entra em campo e resolve tudo. Que se dane a vontade popular. É para isso que querem que Trump continue patrocinando a guerra e o projeto globalista europeu?
George F.Kennan e Henry Kissinger foram inegavelmente dois dos mais importantes diplomatas americanos do século 20. Ambos tiveram papéis-chave na formulação e na condução da política externa dos Estados Unidos, em décadas muito difíceis.
Kennan ficou famoso pela "Doutrina de Contenção", formulada em 1947, que se tornou a base da estratégia americana na Guerra Fria. Ele acreditava que o expansionismo soviético precisava ser contido por meio de uma combinação de estratégias diplomáticas, econômicas e militares, mas sem recorrer à guerra aberta.
Kissinger, por sua vez, adotou uma abordagem "realista", que enfatizava a segurança e os interesses nacionais dos Estados Unidos. Ele foi responsável pela abertura com a China, em 1972, e pela bem-sucedida política de distensão com a União Soviética, que estabeleceu o diálogo entre as duas potências e resultou em importantes acordos de limitação de armas estratégicas. O malvado Trump, aliás, está propondo um acordo nos mesmos moldes, para reduzir os arsenais nucleares do planeta.
O tempo mostrou que Kennan e Kissinger estavam certos.