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“Brasil insurgente – Primeira revolução do povão”, do antropólogo Mércio Gomes, é um livro que promete incomodar muita gente, pela originalidade de sua abordagem da sociedade brasileira e pela franqueza com que discorre sobre temas e personagens polêmicos.
Professor de Antropologia com passagens por diversas universidades no Brasil e no exterior, Mércio foi presidente da FUNAI no primeiro governo Lula, de 2003 a 2007. A questão indígena foi tema de diversos livros seus, como “Os índios no Brasil” e “O índio na História”. Em 2019, lançou “O Brasil inevitável – Ética, mestiçagem e borogodó”.
Em “Brasil insurgente”, Mércio interpreta as peculiaridades da democracia brasileira, critica o conceito de “pobre de direita”, analisa a relevância crescente da Igreja evangélica no processo político e faz uma comparação entre Donald Trump e Jair Bolsonaro.
Defende, ainda, a anistia para os presos de 8 de janeiro: “Me dá angústia ver brasileiros clamar pela condenação dessas pessoas e não se envergonhar de dar gritos histéricos contra a anistia. Que Deus os perdoe por isso”.
- Que parcela do Brasil está se insurgindo? Contra o quê e contra quem?
MÉRCIO GOMES: É o povão, em tácita aliança com um segmento da classe média que não aceita mais o predomínio da esquerda brasileira. Uso povão como um conceito novo. Povão não é mais uma massa amorfa ou a “ralé”, como alguns sociólogos o definem. Não é mais a biruta das eleições, que vai e vem de acordo com o vento político. É o povo se dando conta, se conscientizando, de que os tempos são outros, que eles podem crescer e aparecer e que podem encontrar seu espaço na sociedade e na politeia brasileira.
O povão é o povo em ascensão – econômica, social, cultural e política. Sua ascensão é nervosa, claudicante, às vezes silenciosa, outras vezes, atabalhoada. É o povo com fé em si. Já não precisa dos ditames da classe média bem-pensante. Pensam por si. Manifestam-se sem paúra, mas com cautela.
Precisam de liderança destemida. Sentem que sua ação é importante para a nação como um todo. São conservadores na medida em que não suportam mais os devaneios da classe média wokista e identitarista, nem acreditam nas promessas de revolução política strictu senso. Acreditam no Brasil, querem justiça, não compensação.
Seu modo de viver se consolida por algumas melhoras na economia, como a queda da inflação; na sociabilidade, ajudada pela comunicação fácil do WhatsApp; na forma de se expressar, na música, no linguajar, nas artes plásticas populares. E aí vão surgindo novas lideranças políticas que não mais se atemorizam com a opressão da política tradicional.
- Sobre os evangélicos, você escreve que o Brasil está passando por uma “Reforma tardia”. De que forma o crescimento do protestantismo no Brasil deve afetar a sociedade brasileira na próxima década?
MÉRCIO: “Reforma tardia” é uma expressão usada pelo antropólogo anglo-brasileiro Peter Fry, há alguns anos, ao se dar conta de que a ascensão dos evangélicos e outras formas de protestantismo constituem não somente uma fé, mas também uma religião bem estruturada social e culturalmente, eventualmente se tornando um movimento político – tal como se deu o movimento protestante nos séculos XVI a XVIII na Europa. Eles mudaram a Europa e alavancaram a moral que sustenta o capitalismo. É o que estão fazendo no Brasil da atualidade.
Assim, é provável que os protestantes brasileiros, em suas várias Igrejas e denominações, que dão estofo a essa revolução popular brasileira, continuarão a influenciar a sociedade e a política brasileiras.
Como a cultura brasileira de base – a cultura do povão – é muito amalgamadora, assimila os próximos e dialoga com os diferentes, é possível que o movimento evangélico ganhe novos contornos de fé, se reconcilie com aspectos do catolicismo popular e galvanize os católicos na formação de um novo cristianismo.
De fato, está havendo diálogos proveitosos entre católicos e protestantes em função dessa capacidade sintética da cultura brasileira. Isto é parte efetiva do que chamo de revolução do povão – a única a ser possível no nosso país.

- Um capítulo se dedica à reflexão sobre direita e esquerda. Por que bandeiras como a luta contra a censura, que pertenciam à esquerda, são hoje da direita, enquanto a esquerda parece se aliar ao grande capital?
MÉRCIO: Acho que muita gente da esquerda brasileira está chateada com isso. Muita gente que sempre foi de esquerda está revendo seus conceitos diante do que está se passando. Se a esquerda não se ajeitar, ela vai diminuir muito nos próximos anos. Na História do Brasil, aliás, do mundo, muita gente de esquerda deixou de ser esquerda em função dos acontecimentos políticos – como o debacle moral da União Soviética.
Nesse capítulo eu procuro demonstrar que, no Brasil, a dicotomia esquerda/direita só prevalece por causa da imposição política. Culturalmente ela se dilui. Para a revolução do povão essa dicotomia faz pouco sentido.
A grande luta está no campo moral e cultural – querer justiça, igualdade de oportunidades, preservação de valores tradicionais e só aceitar mudanças de comportamento ou de fé e de moral quando imprescindível para o sentimento da nacionalidade.
Censurar o direito das pessoas expressarem sua visão do mundo é bola perdida para a esquerda
- O que você pensa da categoria de "pobre de direita"? Ela desqualifica os pobres conservadores? Parte de uma incompreensão das demandas da população mais humilde?
MÉRCIO: Essa é uma expressão infeliz, preconceituosa, típica de uma sociologia de baixo calão, de alguém que não faz noção do que está acontecendo no Brasil e também no mundo. Nos Estados Unidos, a estrela do Partido Democrata, Hillary Clinton, chamou metade do povão americano de “deploráveis”, o que seria o equivalente a “ralé”. Perdeu a eleição para Trump em 2016.
- A esquerda brasileira perdeu a conexão com os valores e as demandas do “povão”? De que forma a agenda identitária se insere nesse processo?
MÉRCIO: A esquerda brasileira é dividida em muitos grupos e grupelhos. O antigo Partido Comunista Brasileiro já havia perdido sua influência ao tratar o grande segmento do povo brasileiro como sendo totalmente incapaz de pensar seu destino por si. Só pelo Partidão é que o povo, estruturado e doutrinado como classe oprimida, se elevaria a uma categoria política.
Já a esquerda atual, dominada pelo PT, que cresceu demonstrando identidade com o povo, vem perdendo sua moral pela experiência administrativa nos últimos 20 anos. Eis que se agarrou a uma onda política e cultural vinda da Europa e dos Estados Unidos que trata as pessoas como imbecis – pior, fascistas, nazistas, homofóbicos, racistas, etc. – caso não pensem doutrinariamente como eles. Eles dominam a política nacional, mas o povão já não quer saber deles.
- Como você analisa a demanda pela anistia aos presos do 8/1? Quais podem ser os desdobramentos da aprovação (e da rejeição) dessa proposta?
MÉRCIO: Anistia parece ser a única saída para as injustíssimas prisões de mais de 2.000 pessoas que participaram da manifestação do dia 8 de janeiro de 2023. Já Donald Trump, numa situação semelhante, que lá chamavam de “insurgência”, e não golpe de estado, deu um perdão presidencial a todos de uma tacada só. Bem que nosso presidente podia fazer o mesmo, ele ganharia muito em respeitabilidade. Infelizmente, está na bolha acusatória dominada pelo STF.
É impressionante que a esquerda brasileira esteja nessa posição, por mais que se esforce para se convencer e convencer a população que aquela manifestação desorientada e manipulada tenha sido parte de um golpe de estado. Contudo, o medo de perder o poder e o ódio aos adversários são mais fortes do que sua consciência política e humanitária.
- Não é curioso que hoje a esquerda grite “sem anistia” e defenda a condenação de manifestantes como a cabeleireira Débora a penas de 14 anos de prisão? Como interpretar isso?
MÉRCIO: São muitas Déboras e Clezões sofrendo nas prisões da Colmeia e da Papuda, em Brasília. É de uma indignidade feroz, cruel e absurda – totalmente contra o sentimento de brasilidade. Me dá angústia ver brasileiros clamar pela condenação dessas pessoas e não se envergonhar de dar gritos histéricos contra a anistia. Que Deus os perdoe por isso.
O povão se identifica com Bolsonaro porque se parece com ele, em seus valores e imperfeições. Os adversários só veem suas imperfeições, suas gafes e suas mancadas
- Dois capítulos do livro são dedicados a interpretar o fenômeno Jair Bolsonaro. De que forma Bolsonaro se relaciona com a "revolução do povão" do subtítulo do livro?
MÉRCIO: Bolsonaro é filho da cultura caipira mais pobre do estado de São Paulo, assim como Lula é filho da cultura mais pobre do Nordeste. Ambos subiram na vida por esforço próprio. Tornaram-se líderes do povo brasileiro.
Na medida em que o povo oprimido e sem voz subia lentamente, tornando-se povão, passou a ver em Bolsonaro uma figura autêntica que não se perdeu no redemoinho cooptador da cultura dominante brasileira. Bolsonaro faz jus à admiração que recebe.
Esses dois capítulos procuram mostrar a origem de Bolsonaro, sua caminhada pessoal e como e por quê ele alcançou os píncaros da política brasileira. É um homem de muito valor e de muitas imperfeições. O povão se identifica com essa figura, pois se parece com ele, em seus valores e imperfeições.
Os adversários só veem suas imperfeições, suas gafes e suas mancadas. Mas, olhem ao seu redor e perguntem-se: quem seria o homem perfeito para ser presidente do Brasil representando o povão? Só sobram Bolsonaro ou Lula, o resto é volta ao passado.
De certo modo, Bolsonaro se parece muito com Donald Trump, daí eu ter concluído o livro com um capítulo comparando os dois. São amados e odiados em igual teor em seus países. A diferença está nos países que os formaram. Mas Bolsonaro está por um fio, enquanto Trump troveja e rimbomba em glória. Bolsonaro e seus correligionários sonham para que Trump os ajude a sair dessa situação desastrosa e infeliz.
É possível que as drásticas mudanças que estão ocorrendo nos Estados Unidos influenciem o Brasil em algum momento. Talvez tardiamente, talvez a tempo de reequilibrar a política brasileira. No livro trato de algumas possibilidades de mudança. Vamos ver o que ocorrerá em breve.
- Você enxerga a possibilidade de uma pacificação “à brasileira”, de um grande acordão para superar esse período de polarização radical, sem Lula nem Bolsonaro na eleição de 2026?
MÉRCIO: Enxergo com um olhar um tanto míope, pouco, mas enxergo. O primeiro passo, fundamental, seria o presidente Lula exercer seu poder de indulto e heroicamente indultar os perseguidos do 8 de janeiro.
Se não tiver coragem, ao menos que, prosaicamente, o Congresso promulgue uma anistia geral e irrestrita para todos, tal como aconteceu em 1979 por motivos muito mais fortes. Há que se compreender que a revolução do povão fará bem para todo o Brasil. Daí poder-se-ia começar a conversar.
Nessa conversa, em segundo lugar, é preciso que a esquerda passe a ver os demais brasileiros, a sua grande maioria, não como bestas-feras do apocalipse, e sim como brasileiros iguais a todos. O jogo cultural estaria aberto para o jogo político.
Haveria propósito em se fazer política, porque a cultura estaria aberta para o engajamento de todos. Se isso acontecer, o Brasil começa a entrar num período de amadurecimento político e cultural e poderá encarar os desafios do futuro.
Para ser sincero, estou torcendo para um segundo round entre os dois contendores, no gogó, sem que ninguém traga um canivete escondido.
Conteúdo editado por: Aline Menezes