| Foto: Cena do filme Minority Report – A Nova Lei/divulgação
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Lançado nos cinemas em 2002, “Minority Report – A Nova lei” é um filme perturbador. Adaptado de um conto de ficção científica de Philip K.Dick, dirigido por Steven Spielberg e estrelado por Tom Cruise, o longa-metragem se passa em Washington, em 2054.

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A cidade adotou um programa polêmico para resolver o problema da criminalidade: a Divisão Pré-Crime, um departamento de polícia que antecipa crimes futuros por meio de premonições de crianças paranormais – e assim pode acusar e prender o culpado antes mesmo de o crime ser cometido.

Sensacional. Mas os policiais de elite que trabalham na Divisão Pré-Crime enfrentam um paradoxo moral e legal: uma pessoa pode ser presa por um crime que não chegou a cometer? Pode ser acusada por um roubo ou assassinato hipotético?

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Em outras palavras, a questão com a qual a Divisão Pré-Crime precisa lidar é: pensar em fazer algo errado é crime, mesmo que não se faça nada? Seria mais ou menos como, em uma partida de futebol, um juiz marcar um pênalti com base na intenção atribuída ao jogador, mesmo que ele fique só na intenção.

No filme, a situação se complica quando o líder da Divisão Pré-Crime, John Anderton (Tom Cruise) é ele próprio acusado de "assassinato por antecipação" e passa a ser objeto de perseguição de seus colegas de equipe. A confiança de Anderton no programa desaparece na hora. Ele se torna um fugitivo que precisa provar sua inocência.

“Minority Report – A Nova Lei” é um filme profético. Assista abaixo ao trailer:

Pois bem, no Brasil de 2024 o cenário assustador da ficção científica de “Minority Report” foi antecipado em 30 anos: parece que aqui já está em vigor a Nova Lei, que permite interrogar, acusar, julgar e punir pessoas não por crimes que elas efetivamente cometeram, mas que supostamente pensaram em cometer. Ou que poderiam ter cometido.

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Por exemplo, na semana passada um diretor da Polícia Federal compareceu ao Senado para prestar esclarecimentos sobre a detenção do jornalista português Sérgio Tavares no Aeroporto de Guarulhos, em 25 de fevereiro. Segundo foi noticiado, logo ao desembarcar Tavares foi levado para uma salinha e interrogado durante quatro horas sobre suas opiniões políticas.

A justificativa apresentada para o procedimento, aparentemente incompatível com a democracia e o Estado de Direito: as manifestações do jornalista em suas redes sociais, monitoradas pela Polícia Federal, “beiram um aspecto criminal”.

Em outras palavras, Tavares foi detido por um pré-crime, já que ele estava “na beira” de cometer algum crime. É melhor prevenir do que remediar!

De maneira similar, a grande mídia fez ontem um grande estardalhaço diante da bombástica revelação de que Jair Bolsonaro passou duas noites hospedado na Embaixada da Hungria, em fevereiro. Não faltou quem pedisse a prisão preventiva do ex-presidente, mais uma vez por um pré-crime.

O raciocínio é: se ele passou duas noites na Embaixada é porque pretendia pedir asilo político para escapar dos julgamentos no Brasil. “Mas ele não pediu asilo político, aliás ele saiu da Embaixada voluntariamente!”, algum ingênuo poderia argumentar.

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Não interessa. Aos olhos da Divisão Pré-Crime, ele poderia ter pedido asilo, o que já é motivo suficiente para uma investigação. Assim determina a Nova Lei.

No fundo, aos olhos da Nova Lei toda opinião dissidente constitui um pré-crime. Por exemplo, a tal minuta do golpe. Não se consumou golpe algum, mas a minuta está ali, como prova cabal de que se especulou a respeito. “Mas ninguém deu golpe!”, mais uma vez algum ingênuo poderia argumentar. Não interessa. Houve pré-crime.

Idem em relação aos manifestantes de 8 de janeiro. Ninguém estava armado, e a grande, a imensa maioria não participou do lamentável quebra-quebra. No fundo todo mundo sabe que a grande, a imensa maioria queria apenas manifestar seu inconformismo – incluindo dona Iraci Nagochi, uma professora de português aposentada de 71 anos.

A professora aposentada Iraci Nagochi, 71 anos, condenada a 14 anos de prisão

Dona Iraci foi condenada nesta semana a 14 anos de prisão por cinco crimes: abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de estado, dano qualificado, deterioração do patrimônio tombado e associação criminosa.

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Apesar de ter problemas de saúde, dona Iraci já tinha passado oito meses presa no presídio feminino da Colmeia. Desde agosto, estava aguardando o julgamento usando tornozeleira eletrônica.

“Que ameaça uma septuagenária aposentada pode representar para a democracia?”, o ingênuo teimoso pode perguntar. Ora, esta pergunta é capciosa. Se dona Iraci participou da manifestação ela já cometeu pré-crime, porque é evidente que ela estava pensando em dar um golpe. Mas quem pode afirmar o que ela estava pensando? Ora, as premonições da Divisão Pré-Crime.

O problema é que, como no filme “Minority Report”, a nossa Divisão Pré-crime também enfrenta alguns paradoxos morais e legais. Mas aqui não se trata apenas de responder à difícil questão filosófica sobre a punibilidade por um crime futuro. No Brasil, a este problema se soma outro: o da parcialidade.

Porque, aparentemente, no Brasil as premonições e imputações de crimes futuros só se aplicam a metade da população, aquela metade que teima em divergir.

Quem estiver do lado certo está liberado para, por exemplo, não apenas torcer pela morte de um presidente, mas também escrever e publicar um artigo desejando a sua morte; também está liberado para jogar futebol com uma réplica da sua cabeça servindo de bola.

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Ou acusá-lo de ter furtado 261 móveis. Ou de praticar genocídio. Ou de roubar um relógio recebido como presente. Ou de importunar uma baleia. Ou imputar a ele, durante seis anos, a responsabilidade pelo assassinato de uma vereadora.

Etc. A lista é grande. Mas, por estarem do “lado certo”, estas pessoas não precisam se preocupar nem com o pós-crime, quem dirá com o pré-crime.

Mas “Minority Report” tem um final feliz: a Divisão Pré-Crime é fechada, e todas pessoas presas por crimes imaginários são libertadas. Tomara que no Brasil o final também seja feliz.

PS

O episódio da detenção do jornalista português não é algo inédito. Em setembro de 2021, dia seguinte à gigantesca manifestação do Sete de Setembro daquele ano, o cidadão americano Jason Miller passou por uma situação parecida. Escrevi a respeito nesta mesma “Gazeta do Povo”, na época:

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“Entre os vários episódios do Sete de Setembro que ainda não receberam a devida atenção – porque foram ofuscados pelo tamanho das manifestações e pelos próprios discursos do presidente – o mais significativo foi a detenção arbitrária e a tentativa de interrogatório de Jason Miller, cidadão americano.

“Para quem não sabe, o ex-conselheiro do presidente Donald Trump foi abordado no Aeroporto Internacional de Brasília quando se preparava para deixar o país: conduzido à sala da Polícia Federal, foi informado de que não estava sendo acusado de ter feito nada errado: “Queremos apenas conversar”, foi o que lhe disseram, segundo contou Miller mais tarde.

“O americano e sua equipe ficaram em silêncio: “Informamos que não tínhamos nada a declarar”. Acabaram sendo liberados – quatro horas depois.

“Ou seja, durante quatro horas, um cidadão americano sobre quem não pesa nenhuma acusação formal ficou proibido pela Justiça brasileira de deixar o país. Em condições normais, seria algo bastante grave. Mas, como se sabe, vivemos uma situação anormal: estamos vivendo uma nova ordem jurídica, sob os auspícios da grande mídia.”

A Nova Lei já estava em vigor.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]