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Os paranoicos e os kamikazes
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Não canso de me assombrar com a convicção das pessoas em relação ao coronavírus. Queria ter essa capacidade de acreditar que existe um caminho inequívoco a seguir em meio à peste, como tanta gente acredita. Porque, para mim, se uma coisa ficou clara desde que tudo começou, é que não dá para ter certeza de nada.

No subconsciente das pessoas, existe um anseio enorme por algo que possa funcionar, daí a convicção quase feroz com que se agarram a esta ou aquela esperança. Mas o fato é que, passados cinco meses desde o aparecimento do vírus, a ciência ainda não foi capaz de dar uma resposta satisfatória. Não se tem sequer certeza de que pegar o vírus imuniza – o que sinaliza que ainda levará tempo para se chegar a uma vacina, se é que haverá uma.

Médicos e cientistas, políticos e economistas, jornalistas e meros palpiteiros não param de bater cabeça. Estamos nos debatendo em meio a um mar de informações e opiniões contraditórias, e não há consenso à vista. No fim das contas, tudo se resume a escolher em que acreditar: procurando direitinho, todos encontrarão médicos e estudos científicos que fundamentem a sua escolha. Houve até quem garantisse de pés juntos que o vírus não sobreviveria ao calor, lembram? Pois é.

Ficar confinado em casa até quando? Máscaras funcionam ou são inúteis? E luvas? O sistema de saúde vai colapsar? Já colapsou? A cloroquina é eficaz? Isolamento vertical, horizontal ou nenhum isolamento? O custo de manter o comércio fechado será maior que o custo de uma disseminação mais rápida do vírus? Devemos abrir mão de certas liberdades para não colocar em risco a vida dos outros?

Não acho que sejam questões fáceis de responder. Há quem foque na saúde, com o argumento de que, se o comércio reabrir, vai morrer mais gente, porque o vírus vai se espalhar mais depressa, e o sistema hospitalar não vai dar conta. E há quem foque na repercussão econômica do isolamento, com o argumento de que, se continuarmos em casa, o aumento do desemprego e da violência fará morrer muito mais gente lá na frente. Mas o que fazer quando se concorda com os dois argumentos?

Vivemos em uma espécie de Ardil 22: todos devem ficar confinados até o vírus desaparecer, mas se ficarmos confinados o vírus não desaparecerá, porque só vai desaparecer quando houver imunidade de rebanho, mas para isso é preciso que as pessoas circulem. Para aumentar a imunidade, convém praticar esportes e ter uma vida saudável, mas como praticar esportes se estamos confinados em casa? Devemos evitar contato com os idosos para protegê-los, mas como cuidaremos deles, se não tivermos contato?

É mais ou menos como diz um texto que circula nas redes sociais: “Não temos tratamento, mas talvez exista um tratamento que aparentemente não é perigoso e funciona, mas na realidade não, ou sim, talvez tenha apenas dado bons resultados em alguns, mas não em todos, por isso temos tratamento, mas não, não temos”. É de enlouquecer.

Enquanto não houver cura ou vacina, encontrar o equilíbrio entre o exagero paranoico que impede de viver e a negação suicida que ignora riscos será o grande desafio

Claro, sempre aparece alguém que tem um tio ou uma amiga que se curou adotando este ou aquele protocolo, e não duvido. Mas haverá também pacientes que morreram com o mesmo tratamento. Estamos longe de encontrar a cura, e em relação à prevenção só dispomos de paliativos de eficácia duvidosa. E mesmo esses paliativos são adotados da forma mambembe.

Por exemplo, em muitos municípios o uso de máscara se tornou obrigatório, mas o que mais se vê nas ruas é gente sem máscara. Mesmo em cidades onde foram adotadas medidas mais rigorosas, como São Paulo, a taxa de isolamento mal chegou a 50%. Os casos aumentaram porque o isolamento não adianta? Ou porque o isolamento não foi feito da forma adequada? Impossível saber.

Enquanto se discute, milhares de pessoas continuam a adoecer e morrer, em uma loteria macabra. Para piorar as coisas, a politização da pandemia continua a dividir os brasileiros: há quem chame o presidente de genocida, há quem chame o governador de São Paulo de “ditadória”, há até quem torça pelo vírus, talvez na expectativa de que o caos favoreça o retorno de um certo grupo ao poder (“Hasta la victoria, coronga!”, uma blogueira chegou a postar).

Há também os justiceiros sociais que acham revoltante algumas pessoas precisarem trabalhar na rua enquanto outras podem ficar em casa. Ok, mas que saída eles propõem? Impedir de trabalhar na rua quem precisa? Ou obrigar quem pode ficar em casa a ir para a rua?

O vírus da intolerância também se espalha depressa. Em vez de desarmar os espíritos e unir os brasileiros em torno de um objetivo comum, como muitos previam, a pandemia está acirrando ódios. Citando Otto Lara Resende, Nelson Rodrigues escreveu que o brasileiro só é solidário no câncer, sugerindo que somos capazes de superar nossas diferenças em questões de saúde. Mas nem isso somos mais.

Curiosamente, todos parecem compartilhar uma crença: a de que o vírus passará, e tudo voltará ao normal. Afinal de contas, a humanidade já superou outras pandemias. A má notícia é: sem uma vacina ou medicação 100% eficaz, talvez tenhamos simplesmente que aprender a conviver por muito tempo com o corona, como convivemos com o vírus da gripe sazonal. Isso significa que, mesmo que as coisas melhorem, talvez nunca voltem a ser como eram antes. Podemos ter que nos despedir para sempre do mundo como o conhecíamos: vai ter menos dinheiro, menos trabalho e menos abraço. O distanciamento social pode nos obrigar a reinventar o modo como vivemos e nos relacionamos.

Nesse cenário, sujeito a novas e periódicas ondas de contágio e medidas restritivas, a sociedade pode se dividir em dois grupos: os paranoicos e os kamikazes. Enquanto persistir o risco de pegar um vírus altamente contagioso e potencialmente mortal, os paranoicos continuarão evitando sair de casa, tanto quanto possível. Viverão acuados, e para eles a máscara veio para ficar. Já os kamikazes farão de conta que não há risco algum em aglomerações e se comportarão como antes do vírus (aliás, já há quem faça isso, em baladas e bailes clandestinos). Como se nada tivesse acontecido.

Paranoicos e kamikazes se tratarão com desconfiança – por enxergarem uns nos outros a ameaça ou a lembrança da morte. Isso já se percebe na maneira torta como, nas filas dos supermercados, quem usa máscara olha para quem não usa, e vice-versa.

Os kamikazes poderão acelerar o processo de imunização por rebanho, mas muitos podem ficar pelo caminho. Mas paranoicos também vão morrer, ainda que tomem todos os cuidados, sigam todas as regras e sacrifiquem muita coisa, inclusive suas liberdades. Para os kamikazes, o medo assumirá a forma da negação; para os paranoicos, a forma do exagero.

Enquanto não houver cura ou vacina, encontrar o equilíbrio entre o exagero paranoico que impede de viver e a negação suicida que ignora riscos será o grande desafio. Mas o vírus continuará indiferente às nossas angústias e convicções. Não há garantia de nada. O futuro chegou e ainda pode durar muito tempo.

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