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Réquiem para o elevador de serviço
| Foto: Reprodução Instagram

O Rio de Janeiro está sempre na vanguarda dos acontecimentos. Nestes dias fiquei sabendo, graças ao Polzonoff, que a Prefeitura da Cidade Maravilhosa sancionou uma lei que proíbe o uso das expressões “elevador social” e “elevador de serviço” em todos os prédios do município, com o argumento de que são preconceituosas e discriminatórias.

O descumprimento da medida provocará advertência e, em caso de reincidência, pagamento de multa de R$ 5 mil, a ser aplicada pelos fiscais da linguagem – aliás, uma profissão em alta na nova democracia.

É realmente uma lei sensacional, tudo de que o Rio de Janeiro precisava. Um exemplo, a ser seguido em todo o país, de como gastar bem o dinheiro do contribuinte. Porque foi para resolver problemas dessa gravidade que o carioca elegeu seus representantes. Agora vai.

Só um chato argumentaria que em muitas estações de metrô e prédios públicos da cidade, incluindo hospitais, os elevadores frequentemente não funcionam. O importante é que, nesses casos, ninguém sofre segregação, já que todo o mundo é democraticamente obrigado a usar a escada.

Coitado do elevador de serviço. Estava trabalhando de boa, como sempre fez, e agora amanheceu sem nome. Percebam: ele continua lá, no mesmo lugar, só que agora anônimo, sem identidade. Cabisbaixo, o elevador de serviço agora se preocupa até com o risco de ser processado e preso, por uso de linguagem de ódio no próprio nome.

O elevador de serviço é o cancelado da vez. Como o amor venceu, já devem estar vasculhando as suas redes sociais para saber em quem ele votou, ou se em algum momento duvidou da eficácia das vacinas, ou da transparência das urnas eletrônicas. Se acharem algum tweet incriminador na conta @elevadordeserviço, periga ele ser arrolado no inquérito das fake news.

Em uma sociedade que enxerga o trabalho como castigo, “serviço” é mesmo uma palavra ofensiva: o cidadão entra em um prédio qualquer, dá de cara com a placa “elevador de serviço” e já se sente agredido

O cancelamento do elevador de serviço é apenas mais um exemplo de que, nos estranhos tempos em que viemos, o que importa é a linguagem, não a realidade. Por extensão, não interessa se uma medida é racional ou eficaz, o que importa é se ela serve a uma narrativa ou se é útil a uma determinada agenda.

Pensando bem, faz até sentido: em uma sociedade que enxerga o trabalho como castigo, “serviço” é mesmo uma palavra ofensiva. Imagine a cena: o cidadão entra em um prédio qualquer, dá de cara com a placa “elevador de serviço” e já se sente agredido. Ele foi violado em sua sensibilidade woke.

Isso tinha mesmo que acabar. É evidente que cabe ao Estado proteger esse cidadão da exposição a expressões fascistas como "elevador de serviço". Afinal de contas, ele aprendeu que trabalhar é ser explorado, e que o certo é viver de mesada, dos pais ou do governo (ou seja, com o dinheiro dos pagadores de impostos).

O fato é que, historicamente, criamos uma aversão estrutural à ética do trabalho que vigora nas sociedades protestantes – e que explica o êxito do capitalismo nessas sociedades, como demonstrou Max Weber em seu clássico ensaio sobre o tema.

Já em um país onde “meritocracia” virou palavrão e no qual se prefere conseguir as coisas com base no jeitinho, não existe uma ética fundada no culto ao trabalho, muito menos na valorização do esforço individual; ao contrário: nas salas de aula se ensina desde cedo que o capitalismo é sinônimo de opressão.

Não se infunde nas pessoas o orgulho do trabalho bem feito, nem a vontade de ascender com base no próprio esforço. Nem se ensina mais, como antigamente, que todo trabalho é digno, ao contrário: o sujeito que trabalha aprende desde cedo a se sentir inferior (e a odiar o patrão). Nessa cartilha, usar uniforme, por exemplo, virou motivo de vergonha.

No Brasil, muito frequentemente, trabalha-se a contragosto, e com o sentimento de estar sendo vítima de uma injustiça social.

Ora, em um país assim, é natural e desejável que seja mal vista qualquer coisa que remeta a serviço – até mesmo o pobre do elevador. É por isso que certa militância deve estar comemorando: o elevador é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo.

No fundo, o elevador de serviço deveria estar feliz, porque ficou livre do sobrenome humilhante e depreciativo: “de Serviço”. Mas ele se sente triste, porque vem de um tempo em que serviço não era sinônimo de constrangimento e humilhação. Que horror, elevador. Você precisa ser reeducado para se adequar aos novos tempos.

A censura está na moda. Muita coisa a gente já não pode falar nem escrever mesmo; “elevador de serviço” não será a pior nem a mais difícil de evitar

De que forma, exatamente, proibir o uso do termo "elevador de serviço” contribuirá para combater algum preconceito é algo difícil de compreender.

Ou o sujeito preconceituoso subitamente deixará de sê-lo porque o uso de uma determinada expressão foi proibida? Ou o morador que trata mal os funcionários do prédio deixará de fazê-lo porque o elevador mudou de nome?

Em todo caso, a medida levanta alguns problemas práticos.

Uma mudança, por exemplo. Ela poderá ser feita nos dois elevadores, indiscriminadamente? E o material de construção e o entulho, em caso de obra em algum apartamento? Vai ficar todo mundo empoeirado?

Há prédios que só permitem animais no elevador de serviço. E agora? Os pets vão poder usar os dois elevadores? Se forem barrados e morderem quem barrou, poderão alegar legítima defesa?

E os carrinhos de supermercado? E as malas de quem está indo viajar? E o morador que chega da praia, todo molhado, sem camisa e com os pés cheios de areia?

E o lixo? Vai poder descer e subir no mesmo elevador que leva crianças que vão para a escola e adultos que vão trabalhar? A ideia é fazer todo mundo já começar o dia malcheiroso?

E o entregador de pizza com aquelas mochilas gigantes? A ideia é deixar o cheiro de mozzarella impregnado na roupa de quem está saindo todo arrumado para uma festa?

E os síndicos, porteiros e zeladores? Eles serão orientados a zelar pela indiferenciação entre o elevador social e o elevador agora sem nome? Imaginem a confusão, os litígios, as ameaças de processos, os surtos de lacração, as reuniões para mudar a convenção do prédio, as brigas entre condôminos...

Ou será que, no final do dia, a lei não mudará rigorosamente nada – além de censurar a expressão “elevador de serviço”? Algo parecido, aliás, aconteceu com uma lei similar sancionada em 1996 pelo prefeito guerreiro do povo brasileiro Paulo Maluf, em São Paulo – lei até hoje solenemente ignorada, já que os elevadores continuam sendo usados como sempre foram.

Bom, a censura está na moda, não é? Muita coisa a gente já não pode falar nem escrever mesmo. “Elevador de serviço” não será a pior nem a mais difícil de evitar.

Uma leitora da Gazeta, aliás, já deu uma sugestão para a próxima medida dos governantes preocupados em reformar a linguagem: proibir o uso das expressões “primeira classe” e “clase econômica” nos aviões, que ferem a sensibilidade dos passageiros preocupados com a justiça social. Não duvido que algum deputado leve a sugestão a sério. Mesmo que ele só viaje na primeira classe.

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