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A declaração do advogado Paulo Cunha Bueno de que a condenação de Jair Bolsonaro por golpe de Estado lembra o caso Dreyfus e a legislação soviética não foi apenas uma frase de impacto ou um exagero retórico. A comparação ilumina os perigos que a democracia e o Estado de Direito correm quando tribunais se tornam instrumentos de perseguição política.
O fato é que as duas analogias se aplicam perfeitamente ao processo em curso. Elas oferecem uma síntese poderosa da gravidade do momento vivido pelo Brasil.
A legislação soviética, em particular durante o stalinismo, não era um conjunto de normas estáveis e claras, mas um aparato de repressão moldado para legitimar a vontade dos dirigentes do Partido Comunista e consolidar seu poder. O objetivo das leis não era proteger o cidadão contra abusos do Estado, mas transformar o Estado em árbitro absoluto da verdade. Não se procurava fazer justiça, mas eliminar adversários.
Um dos elementos desse sistema era a criminalização da intenção. Bastava que um indivíduo fosse acusado de tramar contra o Estado socialista ou de ter potencial para conspirar contra o regime para ser condenado a uma pena altíssima.
Provas materiais eram dispensadas, testemunhos eram forjados, delações eram obtidas de forma heterodoxa e interpretações subjetivas de falas ou gestos eram a norma.
A acusação de golpe de Estado contra Bolsonaro se aproxima perigosamente dessa lógica. Não houve tanques nas ruas, não houve ocupação de quartéis, não houve ordens militares para depor o governo.
O que pode ser atribuído ao ex-presidente é uma atitude polêmica e até imprudente em determinados momentos, mas ainda assim dentro do campo da palavra – e, portanto, protegida pela liberdade de expressão e pelo direito à crítica.
Transformar falas, reuniões e especulações em provas de tentativa de golpe é criminalizar intenções e opiniões. Isso costuma ser associado a regimes autoritários, não a democracias.
O caso Dreyfus é um dos exemplos mais famosos da instrumentalização da justiça para fins políticos. Na França do final do século XIX, o capitão Alfred Dreyfus, oficial judeu do exército, foi acusado de traição e condenado injustamente com base em provas forjadas.
Sua verdadeira culpa não estava nos documentos que supostamente entregou à Alemanha, mas em sua identidade como judeu e na necessidade do exército francês de encontrar um bode expiatório para seus próprios erros.
O processo foi marcado por antissemitismo, segredo de justiça (a defesa não tinha acesso a um dossiê apresentado aos juízes) e forte polarização social. Dreyfus enfrentou constrangimentos, como a proibição de se manifestar em seu julgamento, e foi condenado em um contexto de pressões políticas e midiáticas. Após anos de luta, impulsionada pelo panfleto J’accuse! de Émile Zola, Dreyfus foi finalmente inocentado, sendo reintegrado ao Exército em 1906.
Assim como Dreyfus, Bolsonaro é um oficial militar acusado de crimes contra a pátria, com base em evidências que sua defesa contesta e considera insuficientes. A minuta do golpe, por exemplo, é comparável ao memorando do caso Dreyfus: um documento cuja autoria e intenção são questionáveis.
A condução do processo, com prazos curtos para análise de um volume massivo de provas, também lembra as restrições impostas à defesa de Dreyfus, que não teve acesso a documentos fundamentais.
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O julgamento é pedagógico no pior sentido do termo: serve para ensinar a todos os futuros opositores qual será o destino de quem ousar desafiar o sistema
Além disso, o contexto de polarização política no Brasil, com forte pressão de setores da mídia, ecoa a atmosfera de divisão social da França do século XIX. Bueno argumentou que, assim como Dreyfus foi vítima de um julgamento politizado, Bolsonaro corre o risco de ser condenado por representar um movimento político, não por seus atos concretos.
Outro aspecto que reforça os dois paralelos é a transformação do julgamento em espetáculo. Tanto na União Soviética quanto no caso Dreyfus, os processos não eram conduzidos com sobriedade e discrição, mas em clima de propaganda. A condenação já estava escrita de antemão; o tribunal era apenas o palco.
No Brasil atual, votos longos, transmitidos ao vivo, repletos de referências morais e políticas, frequentemente substituem a análise estritamente jurídica. Juízes se transformaram em personagens midiáticos, não nos magistrados imparciais e discretos que deveriam ser.
O julgamento já não é apenas sobre Bolsonaro, mas sobre a afirmação do poder absoluto dessas cortes, que se colocam acima do Congresso, acima da vontade popular, acima da própria Constituição.
O que vemos hoje no Brasil é uma repetição, em chave contemporânea, desse drama. Bolsonaro tornou-se uma espécie de “Dreyfus tropical”: não importa se as provas contra ele são frágeis, contraditórias ou inexistentes; não importa se as delações são refeitas repetidas vezes; não importa se os fatos não sustentam a acusação de golpe. O que importa é satisfazer a ânsia de setores da elite política, midiática e judicial de puni-lo a qualquer preço.
Esse processo, portanto, não é jurídico, mas pedagógico no pior sentido do termo: serve para ensinar a todos os futuros opositores qual será o destino de quem ousar desafiar o sistema. Criou-se um clima no qual qualquer liderança fora do espectro aceito pelo sistema será perseguida, e qualquer movimento popular que desafie o status quo será criminalizado.
Há ainda um aspecto político fundamental. Jair Bolsonaro não é apenas um indivíduo: é o representante de dezenas de milhões de brasileiros que votaram nele e ainda o apoiam. Condená-lo sem provas robustas pode não ser percebido apenas como uma injustiça contra um cidadão, mas também como um golpe contra a soberania popular.
Na União Soviética, a ideia de democracia era substituída pela vontade do Partido. No Brasil de hoje, corre-se o risco de substituir a vontade do eleitor pela vontade do Judiciário. Isso gera um precedente perigoso: se tribunais podem afastar candidatos e cassar lideranças sem base jurídica sólida, o voto se torna irrelevante. O cidadão perde seu poder de decisão e se transforma em mero espectador de uma democracia encenada.
Esse tipo de fratura institucional corrói a confiança pública, mina a legitimidade do sistema político e alimenta ressentimentos perigosos, que poderão explodir a qualquer momento. Em vez de pacificar o país, a condenação de Bolsonaro apenas ampliará o pântano de polarização e desconfiança em que o país se encontra.




