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“Ilustríssimos Senhores Ministros do Supremo Tribunal Federal,
Escrevo-lhes, de meu humilde retiro espiritual, com o profundo respeito que se deve a uma Corte de tão elevado valor, mas também com a franqueza que exigem a razão e a preocupação com o bem comum. Ainda que através do véu do tempo, acompanho com apreensão as notícias que chegam de vossa nação, e com especial atenção aquelas que dizem respeito à liberdade de expressão.
Meu nome é John Stuart Mill. Se as palavras que agora lhes dirijo soam antiquadas, a substância de minhas preocupações reside em princípios que julgo universais e atemporais. Embora meu corpo tenha perecido há muitos anos, acredito permanecerem relevantes e vivas as ideias que defendi e os valores pelos quais me guiei em vida.
Como humilde observador da condição humana, permito-me oferecer à apreciação de Vossas Excelências algumas reflexões.
Antes, porém, uma digressão. Em 1823, em Londres, passei uma noite na prisão, acusado de ameaçar a ordem e a moral públicas. Meu crime foi distribuir panfletos defendendo métodos contraceptivos e o controle de natalidade, uma ideia então julgada subversiva e obscena pelas autoridades de meu país.
Ainda muito jovem, essa experiência revelou-me o perigo de suprimir ideias sob o pretexto de proteger a sociedade.
Mais tarde, durante meu mandato como parlamentar na Câmara dos Comuns, sempre reagi asperamente às tentativas do governo britânico de punir autores de panfletos radicais, com base em vagas leis de sedição, por crimes de opinião – mesmo quando eu discordava do conteúdo dos panfletos.
Já naquela época, estava claro para mim que a democracia exige um ambiente em que as ideias – inclusive as ideias perigosas e ofensivas – devem ser confrontadas à luz do debate aberto, e não proibidas por mecanismos de força institucional.
A verdade, senhores Ministros, não é propriedade de nenhum governo ou tribunal; ela é forjada no cadinho do debate público, que é o oxigênio da democracia. Não é um bem que se possua de uma vez por todas; é algo que emerge do confronto de ideias contrárias. Neste necessário e permanente embate, até o erro e a mentira têm seu papel, porque nos desafiam a refinar nossos argumentos.
O Estado não deve assumir o papel de árbitro da verdade, nem de curador do que pode ser dito. Porque a supressão de qualquer opinião, ainda que minoritária ou impopular, representa um roubo: se a opinião é correta, rouba-se a oportunidade de trocar o erro pela verdade; se é equivocada, rouba-se o benefício da comparação da verdade com o erro.
Toda exceção à liberdade hoje pode se tornar a regra autoritária de amanhã. A censura facilmente se transmuta em instrumento de controle político
Além disso, excelentíssimos Ministros, a História demonstra que, ao sufocar certas ideias pelo silêncio, não as destruímos; apenas as deslocamos para os subterrâneos, onde se tornam ainda mais poderosas.
A História também demonstra que o poder, quando concentrado, tende a se perpetuar, e que a restrição de liberdades, ainda que inicialmente justificada, pode se tornar um hábito difícil de reverter. Toda exceção à liberdade hoje pode se tornar a regra autoritária de amanhã. A censura facilmente se transmuta em instrumento de controle político.
A toga não deve temer a crítica; deve suportá-la com altivez, pois disso depende sua legitimidade perante o povo. Juízes devem ser guardiães não apenas da lei, mas também da liberdade que permite à lei ser questionada e aprimorada. Devem exercer o poder com humildade, porque, quando suas ações são percebidas como excessos, alimentam acusações de despotismo e a fragmentação social.
Todos esses argumentos estão presentes em meu ensaio “Sobre a liberdade”, publicado no agora distante ano de 1859. Minha filosofia jamais endossou a censura sob a alegação de proteger a democracia. Ao contrário, como escrevi: "Se toda a humanidade, menos uma pessoa, tivesse uma opinião, e apenas uma pessoa discordasse, a humanidade não teria mais direito de silenciar essa pessoa do que ela teria de silenciar a humanidade."
Entendo que vossa nação atravessa um período conturbado, com ânimos exaltados. Mas, em meu país, a época em que vivi também foi de grandes tensões sociais e políticas. Não foram poucos os debates de que participei sobre a liberdade individual e os limites da autoridade do Estado. Mas sempre defendi que a liberdade precisa ser preservada como um pilar essencial para o progresso moral e intelectual da sociedade.
Decorridos quase dois séculos, causa-me aflição perceber que esse pilar ainda se encontra ameaçado. É o que sugerem medidas como a imposição de restrições às vozes expressas em plataformas digitais, ou mesmo o bloqueio de plataformas inteiras, com o argumento da proteção das instituições contra discursos antidemocráticos.
Com a devida reverência, aliás, permito-me registrar respeitosa discordância quanto à invocação de meu pensamento como base legitimadora de medidas que, ao que parece, têm se caracterizado por elementos de censura prévia e ausência de suficientes transparência e fundamentação.
Forçoso reconhecer que o problema não está somente no Judiciário. Igualmente preocupantes se me afiguram projetos de lei que buscam regular o que pode ser dito nas redes sociais, pois é evidente o risco de o Estado ampliar excessivamente seu controle sobre a sociedade – e com apoio dos próprios legisladores!
A tradição liberal à qual pertenço — e à qual também adere, salvo engano, o ordenamento jurídico brasileiro — estabelece que a liberdade de expressão é a regra, e suas restrições, a exceção, devendo estas últimas ser interpretadas sempre restritivamente.
O excesso de zelo pela defesa da democracia pode degenerar em arbítrio e subverter, inadvertidamente, os fundamentos de uma sociedade livre
A própria revista “The Economist”, publicada em meu país desde 1843, manifestou a mesma preocupação, destacando que muitas ações dessa egrégia Corte, quase sempre dirigidas contra pessoas de direita, incluindo políticos, jornalistas e cidadãos comuns, reforçam a percepção de que o STF pode estar sendo guiado tanto pela política quanto pela lei, o que não é bom.
Uma Corte tão importante não deveria ter lado: para manter a confiança pública, é fundamental atuar como um árbitro neutro, não como um ator partidário. A democracia exige confiança na imparcialidade das instituições, e é preciso se perguntar por que esta confiança vem sendo minada.
Os protestos de 8 de janeiro foram, sem dúvida, um episódio lamentável. A depredação do patrimônio público merece, certamente, as devidas responsabilização e repreensão legais. Contudo, as medidas tomadas em resposta, e o alcance de algumas delas, levantam algumas questões.
Ainda que o Estado democrático de direito tenha o dever de proteger suas instituições contra ataques internos, este mesmo dever não legitima medidas excepcionais permanentes, nem tampouco práticas que deixam de observar as garantias processuais e os direitos fundamentais.
Porque é justamente nas horas de maior tensão que o apego aos ritos e aos valores e princípios liberais deve se fazer mais presente — não por fraqueza, mas por sabedoria. Quando a repressão a crimes reais se estende à punição de ideias, ou à censura preventiva de meios de comunicação, entramos em um terreno perigoso, no qual o excesso de zelo pela defesa da democracia pode degenerar em arbítrio e subverter, inadvertidamente, os fundamentos de uma sociedade livre.
Não pretendo, com estas palavras, questionar a vossa integridade ou dedicação ao bem público. Antes, apelo à vossa sabedoria para que reflitam sobre o impacto de longo prazo de vossas decisões. Uma sociedade que vive com medo, uma sociedade que teme expressar suas opiniões, certas ou erradas, é uma sociedade condenada ao fracasso.
Por isso, exorto-vos, com humildade e respeito, a que, ao protegerem a democracia, não sacrifiquem os valores que a justificam. Que vossas sentenças sirvam à liberdade, não à conveniência; ao princípio, não à paixão; ao cumprimento sábio da lei, não à uma determinada agenda; à Justiça, não à perseguição da dissidência.
Porque, para ser verdadeiramente útil, a Justiça deve buscar não apenas punir, mas também reconciliar.
Com estima, esperança e os mais sinceros votos de sabedoria e discernimento,
John Stuart Mill
Filósofo, economista e defensor da liberdade; antigo membro do Parlamento britânico
Londres, em espírito, 23 de maio de 2025”
Disclaimer: Antes que as agências de checagem venham me acusar de desinformação, esclareço que esta é uma carta imaginária, escrita do além-túmulo pelo pensador liberal inglês John Stuart Mill (1806-1873), com base em trechos de sua obra.
Conteúdo editado por: Aline Menezes




