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Vaticano publicou respostas sobre a possibilidade de pessoas transgênero ou em relacionamentos homoafetivos serem padrinhos de batismo.
Vaticano publicou respostas sobre a possibilidade de pessoas transgênero ou em relacionamentos homoafetivos serem padrinhos de batismo.| Foto: marcelagundim/Pixabay

Muita coisa já foi dita sobre as respostas dadas pelo Dicastério para a Doutrina da Fé a dom José Negri, bispo de Santo Amaro (SP), sobre a possibilidade de transexuais e pessoas em relacionamentos homoafetivos serem batizados, figurarem como pais de uma criança a ser batizada, serem padrinhos de batismo ou testemunhas de um casamento. De imediato, o que me chamou a atenção foi o tom sensacionalista da maioria das reportagens, que exageraram bastante o alcance das respostas, porque elas nem de longe representam um “liberou geral”. Também preciso rejeitar as afirmações de quem julgou ser esse um jogo de cartas marcadas, com um bispo topando servir de escada para o cardeal Tucho Fernández avançar sua agenda própria: conheço dom José há muitos anos, desde que era bispo de Blumenau (SC): um bispo bom, ortodoxo, que provavelmente estava atrás de uma orientação pastoral mesmo.

Mas meu tema aqui é outro: apesar de as respostas reafirmarem uma série de obrigações de catecúmenos, pais e padrinhos – independentemente de sua orientação sexual ou o que for –, elas dão uma importância especial ao tal do discernimento: o trabalho de pensar sobre a situação concreta, confrontá-la com o ensinamento da Igreja e, enfim, tirar as devidas conclusões sobre a possibilidade de ter acesso a determinados sacramentos ou não. A palavra não aparece explicitamente nas respostas do DDF, mas a ideia está ali, em alguns casos relativa ao indivíduo que será batizado, padrinho ou testemunha, em outros casos relativa ao sacerdote, que terá de avaliar o “perigo de escândalo, de indevidas legitimações ou de uma desorientação da comunidade eclesial em âmbito educativo”.

É a continuação do caminho aberto por Amoris laetitia, que, esta sim, usa abundantemente o termo “discernimento”, especialmente no caso dos católicos que se divorciaram e entraram em uma nova união civil. E, como diz a interpretação corrente daquela infame nota 351 da exortação pós-sinodal de 2016, esse “discernimento” poderia, inclusive, abrir as portas para que esses católicos pudessem comungar mesmo vivendo maritalmente em sua nova união civil, diferente daquele matrimônio contraído canonicamente e ainda válido caso não tenha havido nenhuma declaração de nulidade.

Um discernimento bem feito pressupõe consciências bem formadas, e isso é artigo que anda mal distribuído entre os fiéis e entre o clero, inclusive nos altíssimos escalões da Igreja

Como disse no título da coluna, discernimento é bom. O católico não é um robozinho que é dispensado da tarefa de pensar por conta própria sobre o que pode ou não pode fazer só porque existe a doutrina moral. Como costumam dizer alguns amigos queridos, as pessoas (em geral, não só os católicos) andam carentes de orientação e por isso abraçam o primeiro que apareça com uma lista de “pode/não pode” para simplificar as coisas: pode fazer tatuagem? Pode matricular o filho na escola? E se for na escola pública (cheia de professores de esquerda)? Mulher pode trabalhar fora e usar calça comprida? Pode votar em Fulano? A liberdade – não o vale-tudo, mas a liberdade para escolher os vários caminhos na busca do bem – faz parte da essência da catolicidade, e a doutrina moral está aí para nos orientar, não para microgerenciar as nossas vidas.

Mas, como também disse no título da coluna, não estamos todos preparados para essa conversa. Ou ao menos não totalmente preparados. Um discernimento bem feito pressupõe consciências bem formadas, e isso é artigo que anda mal distribuído entre os fiéis e entre o clero, inclusive nos altíssimos escalões da Igreja, como já vimos em manifestações deprimentes de inúmeros cardeais. Graças a Deus temos ótimos bispos e padres, tanto os que têm visibilidade nas mídias sociais quanto os anônimos, que são ainda mais numerosos. O mesmo podemos dizer de muitos católicos sinceramente empenhados em buscar informação e fazer o que é certo – inclusive católicos em situações canonicamente irregulares. Mas, por outro lado, observo também que em muitos outros ambientes já se perdeu a noção de pecado, da indissolubilidade do matrimônio, do valor da eucaristia, da necessidade da confissão sacramental, dos desígnios divinos para o sexo e a família. E, quando isso acontece, o discernimento deixa de ser a busca pela resposta verdadeira e pela vontade de Deus e se torna um truque intelectual para a validação dos próprios desejos.

Ou seja, incentivo ao discernimento é válido, mas também precisamos ter ainda mais fiéis bem formados, que saibam reconhecer sua situação objetiva, e avaliar se levam “uma vida de acordo com a fé e o encargo que vai assumir” (como dizem as respostas a dom José Negri), se podem comungar, ser padrinhos, o que for. E ainda mais padres bem formados, que saibam proteger a dignidade dos sacramentos com firmeza, mas também com doçura, explicando corretamente as normas e, principalmente, o que a Igreja pede de cada um. Porque é preciso lembrar que a Igreja nunca deixa ninguém para trás: ela tem o caminho para todos chegarem à santidade independentemente da condição em que estejam. Este caminho nem sempre é fácil, aí é que está o problema, mas a solução não passa por atalhos disfarçados de “discernimento”.

Duas ou três palavrinhas sobre o bispo Joseph Strickland

Joseph Strickland
Joseph Strickland, agora bispo emérito de Tyler, no Texas, em foto de 2013.| Peytonlow/Wikimedia Commons

Já estava meio escrito nas estrelas que Joseph Strickland, até dias atrás bispo de Tyler, no Texas, seria carta fora do baralho mais cedo ou mais tarde. A visitação apostólica na diocese, em junho, só reforçou o sentimento de que o desfecho era inevitável. De fato, de acordo com um relato do cardeal Daniel DiNardo, arcebispo de Galveston-Houston, publicado no último sábado, a visitação concluíra que a permanência de Strickland à frente da diocese de Tyler era insustentável, e o Vaticano pediu a ele que renunciasse voluntariamente. Como o bispo se recusou, foi “demitido” pelo papa Francisco.

A remoção de um bispo é medida muito, mas muito extraordinária – os meios normais para uma diocese ficar sem seu bispo são renúncia, transferência ou morte. O Código de Direito Canônico, no cânone 193, diz que “ninguém pode ser removido do ofício que lhe foi conferido por tempo indeterminado senão por causas graves e observado o modo de proceder estabelecido pelo direito”; ou seja, seria preciso que o bispo cometesse um delito penal grave pela lei canônica que justificasse sua remoção. Uma chave poderia estar no cânone 1373: “Quem publicamente excitar aversão ou ódios dos súditos contra a Sé Apostólica ou contra o Ordinário por causa de algum ato do poder ou do ministério eclesiástico, ou provocar os súbditos à desobediência aos mesmos, seja punido com o interdito ou outras penas justas”.

E, convenhamos, Strickland, ainda que seja um bispo sempre disposto a defender com coragem a doutrina católica, nisso não nos ajudou a ajudá-lo, nem um pouquinho. Em julho do ano passado, compartilhou no Twitter um vídeo em que uma outra pessoa faz uma série de ataques gratuitos ao papa, chegando ao ponto de chamar Francisco de “palhaço diabolicamente desorientado” que “sabe que seu trabalho é destruir a Igreja”. Acima do vídeo, Strickland fez um comentário dizendo que aquele era “um triste comentário sobre a Igreja”. Em setembro de 2022, foi o primeiro signatário de uma carta acusando Francisco de promover uma heresia em Desiderio desideravi. Em maio deste ano, tuitou dizendo que rejeitava “seu [de Francisco] programa de minar o Depósito da Fé”. Para complicar de vez, no último dia 31 de outubro Strickland esteve em Roma e deu uma palestra na qual leu uma carta enviada a ele por um “amigo querido”, que entre outras coisas perguntava: “Você permitirá que este [Francisco], que alijou o papa verdadeiro [Bento XVI] para se sentar numa cadeira que não é dele, defina o que a Igreja será?” Strickland não é sedevacantista nem adepto de nenhuma teoria da conspiração, e sempre reafirmou a legitimidade de Francisco (inclusive no tuíte sobre “minar o Depósito da Fé”, e também após a deposição). Mas ainda assim é impossível defender esse tipo de manifestação.

Ainda que Joseph Strickland seja um bispo sempre disposto a defender com coragem a doutrina católica, algumas de suas declarações sobre o papa definitivamente não nos ajudam a ajudá-lo

(Uma digressão: numa conversa com um ativista pró-vida logo depois do aviso da remoção, Strickland afirmou que também pesou na decisão papal o fato de ele não ter imposto às comunidades de rito tridentino em Tyler todas as restrições que Francisco determinou em Traditiones custodes. E comento: ironicamente, aqui não deixaram espaço nenhum para discernimento. O bispo não tem mais autonomia para avaliar que espírito anima os fiéis, se seus padres novos estariam aptos a usar o missal de 1962, se poderia haver celebrações em várias igrejas, inclusive paroquiais; o bispo só tem de restringir tudo exatamente como o papa pediu.)

Strickland infelizmente se complicou sozinho. O que me deixa mais perplexo não é a punição em si, embora eu nunca a tenha visto ser aplicada por João Paulo II e Bento XVI por esse motivo (já houve remoções ligadas a escândalos de abuso) e dessa forma – no único caso de que me lembro, João Paulo II só “demitiu” o francês Jacques Gaillot em 1995 após muitos anos de loucuras heréticas, e ele foi exaustivamente advertido antes de ser punido –, mas o fato de isso acontecer a bispos como Strickland enquanto defensores de sandices como o “caminho sinodal” alemão seguem tendo livre trânsito. A esse respeito, compartilho aqui o comentário de um amigo no Facebook, e com o qual concordo:

“Ante a destituição do bispo Strickland muitos se questionam, com razão, por que os bispos alemães e outros personagens como James Martin e Jeanine Gramick continuam incólumes em suas posições e por que a recente justiça eclesiástica é ideologicamente unilateral.

A pessoa que não está interessada no bem da Igreja dirá que a punição do erro de um bom bispo é certamente justificada, ainda que não seja feita justiça contra os maus bispos.

Contudo, claramente, essa é uma lógica doente. A correção dos melhores é mais previsível e certa, justamente porque eles são os melhores. Em regra, pouco se precisará para sua emenda. Na maioria dos casos, uma correção fraterna bastará.

Ademais, no cuidado das almas, a caridade e a misericórdia impelem o bom pastor a ter um trato de justiça especial com aqueles que são mais fiéis.

Na Igreja a fidelidade é medida pela unidade da fé. Para o bem dela, é mais necessário que se dirija a misericórdia primeiro aos mais fiéis e ortodoxos do que os apóstatas, porque é mais fácil emendar e elevar a bondade dos bons do que converter a perversidade dos maus.

Corrigir com mão pesada os bispos que amam a Igreja (que eventualmente erram), e nunca punir os maus que tentam arruiná-la é faltar com a devida Justiça Distributiva e com a prudência, pois se tolhe das ovelhas os melhores pastores, mas não se elimina os lobos que as devoram.”

É tempo de rezar ainda mais pela Igreja, pelo papa e pelos bispos.

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