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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Repercussão

Leão XIV é mais latino-americano que norte-americano, dizem cardeais brasileiros

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Dom Leonardo Steiner (com o microfone) durante coletiva de imprensa de cardeais brasileiros em Roma. Ao seu lado, da direita para a esquerda, dom Raymundo Damasceno, dom Jaime Spengler, dom Sérgio da Rocha e dom Odilo Scherer. (Foto: Padre Robson Caramano/Pontifício Colégio Pio Brasileiro)

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Por muito tempo, acreditou-se que jamais haveria um papa vindo dos Estados Unidos – ao menos não enquanto o país fosse uma superpotência econômica e militar. A eleição do cardeal Robert Prevost ao pontificado parece ter mudado essa escrita. Mas os cardeais brasileiros que participaram do conclave recém-terminado consideram Leão XIV muito mais um filho da América Latina que dos Estados Unidos, graças ao seu histórico de missionário e bispo no Peru. Em entrevista coletiva concedida no Pontifício Colégio Pio Brasileiro, onde os cardeais estavam hospedados antes do conclave e para onde retornaram na tarde desta sexta-feira, eles deram suas impressões sobre o novo papa e disseram o que esperam dele.

“Ele tem uma história muito bonita. Nasceu nos Estados Unidos, mas tem sangue francês, italiano e espanhol. Viveu muitíssimos anos no Peru. É um privilégio termos no papado alguém com essa visão de mundo”, acrescentou dom Jaime Spengler, cardeal-arcebispo de Porto Alegre e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “Convivi com o cardeal Prevost no Dicastério para os Bispos, e ele é um homem que conhece a realidade da Igreja no mundo, e especialmente na América Latina”, disse o cardeal-arcebispo de Salvador, dom Sérgio da Rocha, para quem a eleição de Prevost mostra que “a Igreja na América Latina tem uma caminhada pastoral de relevância internacional, dando ao mundo o segundo papa seguido”. Dom Odilo Scherer, cardeal-arcebispo de São Paulo, foi ainda mais enfático: “ele é mais peruano que norte-americano”.

Leão XIV não será repetição de Francisco

Os cardeais foram unânimes em afirmar que Leão XIV imprimirá sua própria marca, e que os cardeais não estavam atrás de uma “cópia xerox” de seu antecessor. “Francisco é irrepetível como qualquer um de nós é irrepetível. Leão XIV não será a repetição de nenhum papa, será apenas ele mesmo”, afirmou dom Leonardo Steiner, cardeal-arcebispo de Manaus. Já dom Paulo Cézar Costa, cardeal-arcebispo de Brasília, falou em “descontinuidade na continuidade”, explicando que há uma linha comum em todos os papas posteriores ao Concílio Vaticano II, que é a de lidar com as grandes questões na humanidade. No entanto, em outros assuntos, incluindo temas internos da Igreja, cada papa imprime sua marca. “O legado de Francisco não será esquecido, mas o novo papa já mostrou, por algumas atitudes, que será Leão, não Francisco”, disse.

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Novo pontífice não vai fugir de temas controversos, acreditam cardeais

Questionados sobre temas considerados controversos na Igreja, como a ordenação de homens casados, o acesso das mulheres ao sacramento da Ordem, ou as bênçãos para casais homoafetivos, os cardeais brasileiros não citaram nenhum posicionamento específico do então cardeal Prevost, mas disseram acreditar que Leão XIV não fugirá do debate. “Leão escuta muito, vai ouvir bastante antes de se pronunciar sobre qualquer coisa”, afirmou dom Leonardo. Defensor da ordenação sacerdotal de homens casados, o arcebispo de Manaus ainda previu que esse tema voltará à tona. “O debate sobre viri probati não virá da América Latina, mas da Europa, que está sem padres. A Igreja toda vai discutir isso. Não se trata de eliminar o celibato, mas de dar passos; as igrejas orientais já têm padres casados”, disse o cardeal.

Quanto às mulheres, dom Jaime lembrou que o papa Francisco criou um grupo de trabalho para analisar o papel das mulheres nos primórdios da Igreja. “É preciso dar tempo, e que haja discernimento, com oração e diálogo fraterno. As mulheres ajudam muito na Igreja, e o futuro a Deus pertence”, disse o arcebispo de Porto Alegre, acrescentando ainda que as bênçãos previstas no documento Fiducia supplicans não podem ser equiparadas a sacramentos. “Há uma série de regras bem específicas lá”, esclareceu.

Papa deve atuar com força no cenário internacional

Questionados sobre a atuação internacional de Leão XIV, que abriu seu discurso aos fiéis na Praça de São Pedro falando de paz, os cardeais brasileiros acreditam em uma atuação firme do novo papa. “Temos um papa idôneo para o momento atual. Em um momento de guerra e divisão, ele fala de paz pelo diálogo, na verdade, na justiça e no amor”, avaliou dom Raymundo Damasceno, cardeal-arcebispo emérito de Aparecida, que não votou no conclave por ter mais de 80 anos. Esse pedido de paz “deu o tom” de sua “política internacional”, para dom Odilo.

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Dom Jaime lembrou também as palavras do novo papa sobre “construir pontes” e ser “farol nas noites escuras”: “o Ocidente vive uma crise das democracias, e as instituições de mediação internacional também estão fracas. O papa quer que a Igreja seja sal, luz e fermento na comunidade internacional”, afirmou o arcebispo de Porto Alegre. Ele disse não saber como será a relação do novo papa com o presidente norte-americano, Donald Trump, mas tanto dom Odilo quanto dom Orani Tempesta, cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, lembraram as críticas à política migratória de Trump feitas por vários bispos dos Estados Unidos, aos quais o então cardeal Prevost se juntou.

Escolha do nome pode ser homenagem a papas ou a amigo de São Francisco

Os cardeais foram bastante questionados a respeito da escolha do nome pontifício de Leão XIV. Dom Orani disse que não arrisca mais nada. “Da última vez, fui dizer que provavelmente Jorge Mario Bergoglio tinha se inspirado em São Francisco Xavier, que era jesuíta como ele, e vejam só no que deu”, brincou. Embora ainda acreditem que a escolha seja mesmo uma homenagem a Leão XIII, o papa que deu o pontapé inicial na Doutrina Social da Igreja, outras hipóteses foram surgindo ao longo da coletiva.

Dom Jaime e dom Odilo lembraram, por exemplo, São Leão Magno, o primeiro papa com este nome, e disseram que ele foi fundamental para o desenvolvimento da cristologia – Leão Magno foi papa durante o Concílio de Calcedônia, que confirmou a doutrina de que Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, com duas naturezas em uma única pessoa, a chamada “união hipostática”. “Na pregação que fez no início do conclave, Raniero Cantalamessa afirmou que precisávamos retomar a boa cristologia”, disse dom Odilo, acrescentando ainda que em 2025 são comemorados os 1,7 mil anos de outro concílio, o de Niceia, que também deu uma contribuição decisiva para a cristologia.

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Por fim, dom Leonardo ainda mencionou Frei Leão, um grande amigo de São Francisco de Assis – neste caso, a escolha seria um sinal forte de ligação com o papa Francisco, recentemente falecido. De qualquer forma, disseram os cardeais, todas essas dúvidas provavelmente só serão resolvidas quando Leão XIV se encontrar com os jornalistas que cobriram o conclave, na próxima segunda-feira.

Uma decisão tomada de joelhos

“Eu participei de dois conclaves e posso dizer: esqueçam o filme”, afirmou dom Odilo, em referência ao recente longa-metragem Conclave, estrelado por Ralph Fiennes e Stanley Tucci. “É muita oração, e só depois votação”, disse o arcebispo de São Paulo, confirmando o que dom Jaime havia dito na abertura da coletiva ao dizer que “rezamos muito e intensamente” durante a escolha do novo papa. “Na procissão entre a Capela Paulina e a Capela Sistina, fomos cantando a ladainha dos santos; isso nos recordou que não estávamos sozinhos ali, estávamos acompanhados por uma multidão. Isso toca quem participa de algo assim pela primeira vez”, acrescentou dom Leonardo. Dom Raymundo ainda disse que os cardeais mais velhos, não eleitores, também se uniram em oração pelos colegas que estavam no conclave.

“Nos intervalos é claro que nós conversamos, isso faz parte do processo. Mas não existe comício nem negociação, pois os critérios da fé não são critérios humanos”, afirmou ainda dom Odilo, mencionando o efeito que o local de votação tem sobre os cardeais. “Votar diante do Juízo Final, de Michelangelo, é algo muito forte, que fala muito fundo em todos nós”, descreveu. Dom Paulo Cézar, de Brasília, ainda lembrou que, após ter sido eleito, Leão XIV pediu para passar alguns momentos em oração na Capela Paulina antes de aparecer diante da multidão que o esperava na Praça de São Pedro. “A homilia de hoje mostra que ele tem a fé de Pedro”, completou o cardeal.

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