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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Barrado na capela

O cardeal Angelo Becciu pode ou não pode participar do conclave?

cardeal Angelo Becciu
O cardeal Angelo Becciu acompanha pregações de Quaresma do Vaticano, em março de 2025. (Foto: Angelo Carconi/EFE/EPA)

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No Vaticano ficcional (e bota ficcional nisso!) de Conclave, o mexicano Benítez insiste em participar da eleição do novo papa alegando que fora nomeado in pectore pelo pontífice que acabara de falecer. Embora tal nomeação jamais tivesse sido tornada pública, como admite o decano Lawrence, o que por sua vez impediria sua entrada no conclave, os cardeais eleitores deixam que Benítez se junte a eles. No Vaticano real, um italiano está disposto a participar da escolha do sucessor de Francisco, mas corre o risco de ser barrado na entrada da Capela Sistina: é o cardeal Angelo Becciu.

Becciu foi condenado a cinco anos e meio de prisão em 2023, por um tribunal vaticano, em um caso envolvendo negociações com imóveis da Santa Sé em Londres. É uma história cabeludíssima, que eu jamais consegui entender direito, e que ficou ainda mais complexa quando o próprio papa Francisco resolveu mudar regras do processo com o carro andando, o que levantou suspeitas de que o cardeal não teria tido direito ao devido processo legal. De qualquer forma, isso não nos interessa agora; interessa é o status canônico de Becciu, que antes de cair em desgraça havia ocupado postos importantíssimos no Vaticano, como sostituto da Secretaria de Estado (uma espécie de “chefe da Casa Civil” da Santa Sé) e prefeito da Congregação para as Causas dos Santos.

Quanto o escândalo estourou, o papa Francisco fez questão de deixar claro a Becciu que já não confiava nele. Em 24 de setembro de 2020, “o Santo Padre aceitou a renúncia ao cargo de Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos e aos direitos ligados ao cardinalato, apresentada por Sua Eminência cardeal Giovanni Angelo Becciu”, segundo nota oficial da Sala de Imprensa da Santa Sé. Se Becciu renunciou ou “foi renunciado” também não importa; importa que, a partir da renúncia, ele não teria mais os direitos inerentes ao cardinalato, o que inclui o direito de participar de um conclave. Ele não deixou de ser cardeal, mas teria perdido os direitos ligados a esse título – é diferente, por exemplo, do que ocorreu com o abusador americano Theodore McCarrick, que em 2018 perdeu o próprio cardinalato, e no ano seguinte foi laicizado por Francisco.

Ao renunciar aos direitos ligados ao cardinalato (e nenhuma exceção foi mencionada pelo Vaticano), Becciu também abriu mão de participar do conclave

Acontece que nunca houve nenhuma restituição formal a Becciu dos direitos cardinalícios que ele teria perdido em 2020. Nem mesmo o fato de o papa tê-lo convidado a participar de um consistório em 2021 equivaleria a uma restauração formal do status canônico anterior à renúncia. “Não houve nenhuma vontade explícita [da parte de Francisco] de me excluir do conclave”, alegou Becciu à imprensa italiana no dia 22, depois de ter conseguido participar da primeira congregação geral. Mas não seria necessário que o papa afirmasse explicitamente que Becciu estava fora de um eventual futuro conclave; a renúncia aos direitos ligados ao cardinalato já deveria resolver essa questão.

A constituição Universi Dominici Gregis não prevê explicitamente o caso de um cardeal que tenha perdido os direitos ligados ao seu título. O ponto 35 afirma que “nenhum Cardeal eleitor poderá ser excluído da eleição, quer ativa quer passiva, por nenhum motivo ou pretexto”, e o ponto 36 diz que “não gozam deste direito [de eleger o papa] os Cardeais canonicamente depostos ou que tenham renunciado, com o consentimento do Romano Pontífice, à dignidade cardinalícia”. Mas, se por “dignidade cardinalícia” entendermos o próprio título de cardeal, e não apenas os direitos do cardinalato, o ponto 36 não se aplicaria a Becciu, pois ele continuou a ser um cardeal.

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No entanto, é inegável que Becciu, tendo renunciado aos direitos ligados ao cardinalato (e nenhuma exceção foi mencionada pelo Vaticano), também abriria mão de participar do conclave. Ainda que o ponto 36 de Universi Dominici Gregis não se aplique a Becciu, o ponto 35 também não se aplicaria, pois em 2020 ele teria deixado de ser um cardeal eleitor. É isso que, creio eu, os cardeais Giovanni Battista Re, decano do Colégio Cardinalício, e Pietro Parolin, encarregado de supervisionar o conclave (pois tanto Re quanto o subdecano, Leonardo Sandri, têm mais de 80 anos), haverão de analisar para decidir o que fazer com Becciu.

Onde estão os documentos?

Por que eu escrevi quase tudo no condicional? Porque, segundo o jornal italiano Il Messaggero, ninguém viu a papelada que realmente interessa. Nem o comunicado da Sala de Imprensa da Santa Sé, nem a lista de cardeais eleitores publicada no site do Vaticano têm valor legal; é preciso haver ou uma renúncia assinada por Becciu, ou um documento assinado por Francisco atestando a perda dos direitos cardinalícios. Mas ninguém sabe se esses documentos realmente existem e, caso existam, onde estão – eles poderiam, por exemplo, estar no apartamento papal, que foi lacrado na segunda-feira.

Ainda segundo o jornal italiano, dois canonistas importantes pediram ao então secretário de Estado, cardeal Parolin, que conseguisse do papa uma comprovação escrita do status de Becciu, mas Parolin teria dito que “o papa sabe o que fazer”. Mas agora o papa não está mais disponível para dizer o que fez e onde estão as evidências que poderiam tirar Becciu do conclave. Se esses papéis não aparecerem até a data de início do conclave, é possível que ele consiga participar da eleição do próximo pontífice na base do “inocente até prova em contrário”.

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