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O papa Francisco durante missa para a comunidade congolesa em Roma, em 3 de julho de 2022.
O papa Francisco durante missa para a comunidade congolesa em Roma, em 3 de julho de 2022.| Foto: EFE/EPA/Vatican Media handout

No dia de São Pedro e São Paulo, 29 de junho, o papa Francisco publicou uma nova carta apostólica: Desiderio desideravi (ainda sem tradução oficial em português; meus comentários se basearão na versão inglesa) recolhe uma série de ideias do pontífice sobre liturgia, um assunto que não é exatamente uma das grandes preocupações papais, mas que vinha em evidência desde o motu proprio Traditiones custodes, que infelizmente desferiu um golpe duro nos fiéis mais afeitos à missa tridentina. A nova carta, aliás, explicita alguns dos objetivos de Francisco com o motu proprio, mas disso falaremos mais adiante, porque Desiderio desiveravi tem, sim, muita coisa boa.

O estilo é aquele mais coloquial, típico do papa Francisco; encontrei em Desiderio desiravi, por exemplo, algumas ideias bastante semelhantes às de São João Paulo II na Ecclesia de Eucharistia, mas tratadas de uma forma um pouco diferente. Francisco ressalta, por exemplo, que a missa não é mera “representação”, mas que ali está o próprio Cristo, na Última Ceia e também na cruz. “Existe apenas um ato de culto, perfeito e agradável e Deus: a obediência do Filho, medida por sua morte na cruz. A única possibilidade de participarmos neste oferecimento é sendo ‘filhos no Filho’. Eis o presente que recebemos. O sujeito que age na liturgia é sempre e unicamente o Cristo-Igreja, o Corpo Místico de Cristo”, diz o papa (DD 15).

E aqui eu me permito pular para um trecho bastante interessante em que Francisco adverte sobre como as duas manifestações de “mundanismo espiritual” que ele tanto fala praticamente desde o início do pontificado, o gnosticismo e o neopelagianismo, ameaçam a liturgia. Se é verdade que “a redescoberta contínua da beleza da liturgia não é a busca pela estética ritual, atingida pela cuidadosa observância externa do rito ou pela observância escrupulosa das rubricas” (DD 22), também “sejamos claros: é preciso cuidar de todos os aspectos da celebração (espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, vestimentas, canções, música) e toda rubrica tem de ser observada”. Não se trata, portanto, da “rubrica pela rubrica”, mas de compreender o sentido mais profundo das regras litúrgicas e obedecê-las; aqui está um recado claríssimo para padres e equipes de liturgia que consideram facultativas as regras do missal: vocês não estão fazendo a coisa certa. João Paulo II e Bento XVI passaram décadas dizendo a mesma coisa, mas eram ignorados. Será que com Francisco finalmente prestarão atenção?

Francisco manda um recado claríssimo para padres e equipes de liturgia que consideram facultativas as regras do missal: vocês não estão fazendo a coisa certa

Uma das fontes de tanta invencionice é descrita pelo papa no ponto 54, que acerta no alvo:

“Visitando comunidades cristãs, tenho percebido que seu modo de viver a celebração litúrgica é condicionado – para o bem ou, infelizmente, para o mal – pelo modo como seu pastor preside a assembleia. Poderíamos dizer que há diferentes ‘jeitos’ de presidir (...) e dada a enorme amplitude desses exemplos, acho que sua inadequação tem uma causa comum: um crescente personalismo no estilo de celebrar que, às vezes, demonstra uma mal disfarçada mania de ser o centro das atenções.”

Uma pena que o papa não discuta mais a fundo as causas desse personalismo, mas o então cardeal Joseph Ratzinger, no seu magistral Introdução ao espírito da liturgia, explora uma hipótese bastante forte, a meu ver: quando a reforma litúrgica de 1969 permitiu a celebração versus populum, o sacerdote ganhou uma proeminência que não tinha até então. Ratzinger dedicou toda uma parte de seu livro à “direção da oração litúrgica”, na qual escreveu (faço uma tradução livre da edição em inglês):

“O que ocorreu foi uma clericalização sem precedentes. Agora o padre – o ‘presidente da celebração’, como preferem chamá-lo – se torna o verdadeiro ponto de referência para toda a liturgia. Tudo depende dele. Temos de vê-lo, de responder a ele, de nos envolver no que ele está fazendo. (...) Cada vez menos Deus está em cena. Mais e mais importante é o que é feito pelos seres humanos que se encontram aqui e não gostam de se sujeitar a ‘padrões pré-definidos’. Fazer o padre se voltar para o povo transformou a comunidade em um círculo fechado em si mesmo. (...) A orientação para o leste não era uma ‘celebração voltada à parede’; não significava que o padre estivesse ‘dando as costas ao povo’: o padre simplesmente não era assim tão importante.”

(Ratzinger termina esse capítulo sugerindo que, onde não for possível recuperar a orientação versus Deum, que ao menos se coloque um crucifixo no centro do altar, para onde todos possam voltar o olhar – e pouco importa se a cruz dificultar que as pessoas vejam o celebrante: “A cruz atrapalha a missa? O padre é mais importante que o Senhor?” Essa sugestão é a origem do chamado “arranjo beneditino”.)

É no tratamento da reforma litúrgica de 1969, no entanto, que eu vejo o potencial problema da Desiderio desideravi. No ponto 61, o papa deixa claro que pretende fazer do missal atual a única forma de celebração do rito romano:

“Não podemos voltar à forma ritual que os Padres conciliares, cum Petro et sub Petro, sentiram a necessidade de reformar, aprovando, sob a orientação do Espírito Santo e seguindo suas consciências de pastores, os princípios dos quais nasceu a reforma (...) Por isso escrevi Traditiones custodes, para que a Igreja eleve, na variedade de tantas línguas, uma única e mesma oração capaz de expressar sua unidade. Como já escrevi, pretendo que tal unidade seja restabelecida em toda a Igreja de rito romano.”

Ou seja, o problema da missa tridentina não seria sua instrumentalização por tradicionalistas radicais, nem a margem que ela abre para neopelagianismos, mas o mero fato de ser uma outra forma do rito e que introduz uma variedade não desejada pelo Concílio Vaticano II (ou ao menos pelo papa Francisco, ou pelo que o papa Francisco supõe ser o desejo do Concílio), atrapalhando a “unidade” na lex orandi (se os outros ritos latinos, como o ambrosiano ou o bracarense, atrapalham essa unidade também já não sei).

Se a missa tridentina fosse suprimida, estaríamos perdendo um enorme patrimônio litúrgico que a Igreja empregou por séculos e que poderia muito bem ser usado para enriquecer o missal novo, na “reforma da reforma” que tantos pedem, para termos o melhor dos dois ritos

Lendo esse trecho da carta apostólica, Traditiones custodes já não soa tanto como uma ferramenta que o papa usou para cortar as asinhas de quem abusa da missa tridentina (porque sim, tem gente que abusa – eu mesmo já ouvi pregação anti-Vaticano II feita por leigos antes de uma missa tridentina aqui em Curitiba), mas um passo na direção da supressão desse rito. E o papa pode fazer isso? Este é um longo debate; eu estou do lado dos que consideram isso possível, mas muito indesejável. Estaríamos perdendo um enorme patrimônio litúrgico que a Igreja empregou por séculos e que poderia muito bem ser usado para enriquecer o missal novo, na “reforma da reforma” que tantos pedem, para termos o melhor dos dois ritos. Além disso, mesmo no missal novo estamos muito longe de colocar em prática o que o Concílio pediu explicitamente na sua constituição sobre a liturgia, como a importância do latim e do canto gregoriano.

Como há muita antipatia contra a missa tridentina por aí, esse trecho de Desiderio desideravi provavelmente ganhará mais destaque que tudo aquilo que ela tem de bom, como a defesa da obediência às normas litúrgicas contra os abusos e invencionices, o incentivo a uma boa formação litúrgica nos seminários ou as palavras sobre a função do silêncio na liturgia, nesta época em que parecemos ter horror a ele, como se fosse um mero “vazio sonoro”. Eu até diria esperar ao menos que os bispos que desceram o machado nas missas tridentinas em suas dioceses tenham, agora, esse mesmo rigor contra as missas mal celebradas no rito novo, mas algo me diz que isso não vai acontecer, não.

O festival e o cantor “cancelado”

O Festival Halleluya, realizado pela Comunidade Shalom e previsto para a segunda quinzena deste mês, em Fortaleza, cancelou a participação do cantor Bruno Camurati após ele ter assumido sua homossexualidade e afirmado que está em um relacionamento. A organização, é claro, está apanhando pra valer, inclusive de sacerdotes como o padre Júlio Lancelotti.

Não há nada de errado em separar o artista (e sua vida pessoal) de sua obra; você pode gostar das canções do Chico Buarque, do Elton John ou do Queen, dos filmes do Roman Polanski e dos quadros do Caravaggio independentemente das opiniões e atos de todos eles. E, por mais que eu desconheça completamente as canções de Camurati, duvido muito que alguma delas tivesse promoção do estilo de vida homossexual. Mesmo assim, tirando toda a parte contratual da coisa (se há multa a pagar por rescisão unilateral, por exemplo, espero que o festival tenha feito tudo certinho), é direito de um festival católico não querer prestigiar alguém cujo comportamento público bate de frente com o que a Igreja pede – neste caso específico, o que ela pede a quem sente atração homossexual. Diz o Catecismo:

2358. Um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente radicadas. Esta propensão, objetivamente desordenada, constitui, para a maior parte deles, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar na sua vida a vontade de Deus e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar devido à sua condição.

2359. As pessoas homossexuais são chamadas à castidade. Pelas virtudes do autodomínio, educadoras da liberdade interior, e, às vezes, pelo apoio duma amizade desinteressada, pela oração e pela graça sacramental, podem e devem aproximar-se, gradual e resolutamente, da perfeição cristã.”

Reparem que não estamos falando de um católico que se assume homossexual, mas deixa bem claro que está lutando para viver de acordo com a doutrina católica; se assim fosse, o festival estaria cometendo um erro. Menos mal que Camurati tenha afirmado que não recebe a Eucaristia (ao contrário de Gil Monteiro, outro cantor católico que recentemente afirmou ser gay, estar casado com outro homem há cinco anos e ainda assim comungar normalmente).

Na minha coluna sobre a escola jesuíta que hasteou bandeiras do Black Lives Matter e do orgulho LGBT, afirmei que “ninguém, seja pessoa ou instituição, é obrigado a ser católico; se escolhe sê-lo, o mínimo que se espera é coerência com o que a Igreja ensina”. Coerência não é perfeição; todos somos pecadores, mas o coerente sabe que está pecando; ele se arrepende e luta, não quer que a Igreja mude para aceitar seu pecado. Muita gente, infelizmente, só quer o “nem eu te condeno”, mas não o “vai e não peques mais”; repete o “quem sou eu para julgar?” esquecendo que antes veio o “se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade” – e tanto “procurar o Senhor” quanto “ter boa vontade” significam questionar o que Deus quer de si e procurar viver de acordo com a vontade Dele, não a própria.

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