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Lula posse
Lula recebeu a faixa presidencial de representantes de minorias da população, que subiram a rampa junto com ele.| Foto: Ricardo Stuckert/PT

“Quando o Lula fala, o mundo se abre, se ilumina e se esclarece.” (Marilena Chauí)

“O que me parece, Górgias, é que se trata de uma prática que nada tem de arte, e que só exige um espírito sagaz e corajoso e com a disposição natural de saber lidar com os homens. Em conjunto, dou-lhe o nome de adulação.” (Platão, Górgias)

O terceiro mandato do presidente Lula começa sob a atenção de todos. Mesmo dividindo seu início com dois tristes eventos da mais absoluta importância – as mortes do Rei Pelé e do papa emérito Bento XVI –, a posse presidencial, no último domingo, primeiro dia do ano, e de seus ministros, no dia seguinte, foi marcada por forte e compreensível simbologia, pois temos novamente uma alternância de poder altamente polarizada, saindo de um governo que não se cansou de municiar a oposição para a construção, nova e cansativamente, de um salvador da pátria, mas também porque o apelo ao sentimento é, desde sempre, o modus operandi de qualquer movimento de massa.

A posse foi um evento apoteótico, como se tivéssemos revivendo a redemocratização, em 1985 (com sabor de 1984, de George Orwell, se é que o leitor me entende). A vergonhosa e antidemocrática ausência do fugitivo na passagem de faixa foi preenchida de maneira absolutamente brilhante, pelo menos do ponto de vista estético e simbólico, por “representantes do povo”. Ter, no centro da posse, aquelas pessoas que estavam havia quatro anos desesperados pelo descaso para com suas pautas – o identitarismo bolsonarista é de outra natureza – alimentou o discurso da volta de um governo que dá atenção aos mais necessitados. Não há como tergiversar da mensagem poderosa que isso dá a uma parcela considerável da sociedade, para o bem e para o mal.

Negar que o ato de subida da rampa e de passagem de faixa envie uma mensagem contundente a uma população necessitada e impressionável como a brasileira é negar o óbvio. Não sejamos tolos, antes ofereçamos uma alternativa real e tão contundente quanto

Diante do espetáculo, a oposição, que já começou histriônica como nos anos que antecederam o impeachment de Dilma Rousseff, repercutiu não só negativamente a tudo que assistiu, mas tentou, de todas as formas, diminuir a importância simbólica do ato, o que considero um erro. Explico: não há como negar que, há muito tempo, a esquerda se apropriou de causas sociais importantes por puro vácuo político. A acusação de que a direita é elitista e não se preocupa com os pobres é absolutamente justificável, pois o discurso do empreendedorismo e a ideologia meritocrática não respondem a tudo. O liberalismo brasileiro atual, como eu disse recentemente, é só uma diversão da elite econômica que quer pagar menos impostos. Para essas pessoas, a miséria de um país gigantesco como o Brasil pode ser solucionada com a iniciativa privada, um pensamento claramente ideológico, abstrato, não encontrável em qualquer lugar do mundo.

Podemos discutir o papel do Estado? Óbvio que sim, e quem me lê sabe que sempre vi o poder estatal como nosso verdadeiro algoz. Mas gritar “privatiza tudo” e “imposto é roubo”, tremulando a bandeira de Gadsden, enquanto milhões de pessoas sequer têm saneamento básico, me parece – pois é – um tanto elitista mesmo; a famigerada resposta simples para problemas complexos. Precisamos, enquanto conservadores e liberais, dar uma resposta séria às causas sociais, sabendo separar o exagero identitário daquilo que é verdadeiramente real. É preciso que haja, por exemplo, um conservadorismo antirracista, assim como um liberalismo que seja socialmente consciente e responsável. E isso não está distante de uma tradição liberal e conservadora. De um Edmund Burke, por exemplo, criticando duramente o modo brutal com o qual a Inglaterra governava a Índia, à época sua colônia, comprometendo, inclusive, sua carreira política. Ou de um Antônio Pereira Rebouças reclamando por representatividade mulata no parlamento do império brasileiro. Ou de um Luiz Gama pregando a educação pública universal. Ou seja, essa tradição existe, inclusive no Brasil, mas está sendo negligenciada por simpatizantes (nem digo leitores) dos excelentes autores austríacos.

Portanto, negar que o ato de subida da rampa e de passagem de faixa, ou mesmo das primeiras-damas subindo na frente de seus maridos, passe uma mensagem contundente, simbólica, a uma população necessitada e impressionável como a brasileira é negar o óbvio, ainda que critiquemos as intenções. Não sejamos tolos, antes ofereçamos uma alternativa real e tão contundente quanto. Esse é um ponto.

O outro é que a forte carga retórica do governo que se inicia está levando muita gente a reboque, como era de se esperar. Pudera! A troca de um governo de cavalgaduras como Bolsonaro, Ricardo Salles, Damares Alves, Paulo Guedes, pessoas que se comunicavam muito mal – e, não raro, de maneira absolutamente grosseira em nome do politicamente incorreto –, por um governo com Lula, Sílvio Almeida, Marina Silva, Fernando Haddad e Simone Tebet é, novamente, do ponto de vista estético, retórico, um ganho infinito. Como eu disse em artigo recente, aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, “a luta contra o politicamente correto é uma luta por mais civilidade, não por menos; é uma luta por recuperar os valores reais da sociedade, não por solapar as instituições”. Os demissionários, por incultura ou pelo mesmo estetismo vazio que criticam em seus adversários, trocaram a firmeza educada e consciente pela grosseria muitas vezes escatológica – bem ao gosto daquele que pregava esse comportamento como método de disputa de poder: Olavo de Carvalho. Comparem por exemplo, o discurso de posse de Sílvio Almeida, um exímio retórico, com o “menino veste azul e menina veste rosa” ou os dantescos discursos religiosos de Damares Alves na campanha eleitoral.

O discurso de Almeida está sendo celebrado pela mídia e pela militância (que, a partir de agora, curiosamente, começam a convergir novamente). O professor João Cezar de Castro Rocha o comparou – de maneira um tanto constrangedora, a meu ver – ao grande Cícero. Mas isso é só uma comparação entre retórica e antirretórica. Bolsonaro, cujo vocabulário não ultrapassa umas duas dezenas de palavras, nos fez sentir saudades da Dilma, a quem superou com folga (não preciso anunciar a hipérbole, certo?). Mas quem resiste a um Lula chorando? Quem resiste ao sentimentalismo, ao forte apelo aos miseráveis desse país que insiste em multiplicá-los? O apelo às emoções é, como eu disse, a marca registrada de movimentos de massa, e a esquerda maneja isso muito bem – sobretudo no Brasil. A tese de Mário Vieira de Mello, de que o brasileiro é um esteta, alguém que se preocupa meramente com as aparências e usa todo tipo de artifício e fingimento para multiplicar sua influência perante os outros e tirar vantagem disso, não cansa de ser provada pela realidade.

Entretanto, temos uma situação diferente de 20 anos atrás. Lula começa o seu terceiro mandato com um país completamente diferente, tanto econômica quanto socialmente, do que governou em dois mandatos. Remediar a situação dos mais pobres à custa de lançar o caos econômico adiante é um risco que, dessa vez, pode ir por água abaixo muito cedo. A quantidade de promessas feitas por ele e seus ministros já ultrapassa completamente a capacidade que qualquer governo teria de cumpri-las. Fora isso, há toda aquela agenda pós-moderna, woke, da esquerda radical, que, dessa vez, encontra uma grande parcela da sociedade muito mais atenta. O que nos aguarda? Acho um pouco cedo para prever – e nem sei fazer isso. Mas mantenho meu ceticismo de sempre, sabendo que, no Brasil, sempre vivemos para sustentar o Estado, não o contrário. Mudar isso, só com uma educação para a autonomia e uma cultura para a valorização das “coisas permanentes”. O resto é retórica.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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