Cena da série “This is us”.| Foto: Divulgação
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Sim, pois eu, Sinuhe, sou um ser humano. Vivi em todos aqueles que viveram antes de mim, e viverei nos que vierem depois de mim. Viverei nas lágrimas e nos risos humanos, no medo e na mágoa humana, na bondade e na torpeza humana, na justiça e no erro, na fraqueza e na força. Não desejo oferendas na minha sepultura e nem imortalidade para meu nome. Isto foi escrito por Sinuhe, o egípcio, que viveu sozinho todos os dias de sua vida. (Mika Waltari, O Egípcio)

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Finalmente começamos – eu e minha esposa, minha companheira de maratonas televisivas – a assistir, após passar minha desconfiança natural por conta do hype, a amada e aclamada série This is Us, de Dan Fogelman (Enrolados), um drama familiar que mostra as dores e delícias de sermos humanos, demasiado humanos.

(Contém spoilers)

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A série, que conta a história da perenemente enlutada família Pearson – de Jack, Rebecca e seus filhos Kevin, Kate e Randall –, carrega uma complexidade e uma delicadeza que, apesar de às vezes beirar o exagero, nos leva do riso ao choro por vários momentos (às vezes no mesmo episódio, várias vezes) e nos faz lembrar que, no fim, o que nos resta é sermos companheiros nesse naufrágio chamado vida – metáfora precisa de J.R.R. Tolkien para se referir ao casamento. As angústias dessa família – que são, na verdade, as angústias de todos nós, em maior ou menor grau – são temperadas pela abordagem de temas bastante complexos, embora atuais e recorrentes, tais como racismo, obesidade, frustrações pessoais e profissionais, solidão, medo etc., e tem como eixo central o onipresente pater familias Jack, “o melhor pai do mundo”. Tudo gravita em torno desse homem excepcional; antes, de seu esforço, ao lado de Rebecca, para criar três filhos completamente diferentes e, desde a adolescência, cheios de demandas pessoais; depois, do abismo emocional em que a família se precipita por sua ausência. Nesse sentido a série mostra, como disse uma amiga de Twitter, a humanidade em estado bruto.

Meu pai foi meu amigo, de verdade. Alguém com quem dividi segredos e de quem pude extrair a forma intelectual de quem sou hoje, como um bom amante da sabedoria e das artes

Ainda estamos na terceira temporada e sei que muita coisa irá acontecer até que cheguemos ao fim da quinta, a última disponível até agora. Mas decidi escrever esse pequeno texto – de certo modo, laudatório – após uma verdadeira catarse pela qual passei quando, já um pouco cansado das idas e vindas do roteiro, o episódio 14 da segunda temporada reacendeu minha admiração pela série, pelos atores, pelo roteiro, pela direção... e por meu próprio pai.

Antônio da Cruz, que nos deixou numa manhã cinzenta de 2012, vitimado por um câncer no pulmão que exauriu o seu fôlego em poucos meses, não se parecia com Jack em quase nenhum aspecto, exceto por ser excepcionalmente amoroso e preocupado com seus filhos, além de um workaholic inveterado. No entanto, o amor e a admiração que os filhos de Jack têm pelo pai, e todo sofrimento pelo que passam após sua morte súbita, mergulharam-me diretamente na manhã de 9 de novembro de 2012, quando, da janela do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, tirei uma foto da cidade e postei em meu Instagram, repetindo o nome provisório do filme O espelho, de Andrei Tarkovski: “Um dia branco, branco”.

Falo isso sem nostalgia, caro leitor, mas com aquela saudade que, após o luto – que não cessa em This is Us –, tornou-se doce, uma lembrança suave e alegre dos muitos momentos que passamos juntos; desde criança, quando ainda o acompanhava em suas visitas a clientes – e ele me deixava esperando, às vezes por vários minutos, no carro; até a vida adulta, quando tomávamos café e conversávamos sobre literatura e cinema. Meu pai foi meu amigo, de verdade. Alguém com quem dividi segredos e de quem pude extrair a forma intelectual de quem sou hoje, como um bom amante da sabedoria e das artes. Dr. Antônio, como era conhecido – por essa mania que o brasileiro tem de chamar advogado de doutor – foi um exemplo de amabilidade, de justiça, de altruísmo, de civilidade e de bom gosto. Mas, como Jack (e como eu, como você que me lê, e todos os seres humanos), tinha muitos defeitos.

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Meus pais separaram-se quando eu tinha, se não me falha a memória, uns 11 anos de idade. Culpa dele. Minha amada mãe, a retidão moral em pessoa, sofreu em silêncio, sem jamais deixar que a mágoa lhe consumisse. Muito pelo contrário: o coração de dona Benê é tão escandalosamente magnânimo que ela foi capaz de aceitar a amizade de seu ex-marido e preservar, de certo modo, a unidade familiar o máximo que pode. Nem ao menos divorciaram-se. Com o tempo, meu pai – cujo único pedido na separação, absolutamente amigável, foi para que minha mãe não lhe privasse dos filhos – passou a ser uma presença mais constante em nosso meio do que quando morava conosco; pelo menos essa era minha sensação. E ainda que, em momentos cruciais de nossos dramas pessoais – e foram muitos –, tenha se mantido a uma inaceitável distância, mal justificada pelo fato de não morar conosco, ele se fez presente, pelo menos, em todos os momentos importantes de minha vida, até sua morte. Ou seja, chegou a ver-me concluir a graduação em Filosofia, mas não mudar de profissão. Mas previu que isso ocorreria.

Tais lembranças também levaram-me ao exemplo oposto, de Franz Kafka, cujo relacionamento com o pai foi uma tragédia que quase destruiu seu espírito frágil. Hermann Kafka era o total oposto de Jack e do meu pai, pois seu esforço por menosprezar as virtudes do filho, conforme descrito pelo autor d’A Metamorfose na Carta nunca enviada ao pai, é chocante:

Bastava estar feliz com alguma coisa, ficar com a alma plena, chegar em casa e expressá-la, para que a resposta fosse um suspiro irônico, um meneio de cabeça, o bater do dedo sobre a mesa: “Já vi coisa melhor”, ou “Para mim você vem contar isso?”, ou “Minha cabeça não é tão fresca quanto a sua”, ou “Dá para comprar alguma coisa com isso?”, ou “Mas que acontecimento!”. Naturalmente não se podia exigir de você entusiasmo por qualquer ninharia de criança, vivendo como vivia, cheio de preocupação e trabalho pesado. Nem era disso que se tratava. Pelo contrário, tratava-se do fato de que você precisava causar essas decepções ao filho, sempre e por princípio, graças ao seu ser contraditório.

Graças a Deus meu relacionamento com meu pai foi maravilhoso. Como Jack, ele sempre me estimulava e procurava extrair de mim o melhor. Sempre carinhoso, compreensivo, pródigo em bons conselhos, bem como em sabedoria prática. Era também um bom ouvinte e alguém que nos fazia acreditar que “tudo é possível ao que crê”. O diálogo de Jack com sua filha Kate, ao levá-la a uma sessão de autógrafos de Alanis Morissette, no episódio 15 da segunda temporada, é um exemplo de como meu pai também era:

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“Acho que deveria pensar na música como uma carreira.”
“Pai, li que 0,2% das pessoas que tentam carreira na música realmente conseguem algo. Isso é quase nada.”
“E eu li que 100% das pessoas que se prendem às estatísticas ‘quantas pessoas conseguem’ nunca conseguem nada.”
“Sério? Você leu isso?”
“Claro que sim. Escute: você pode não ser essa Alanis... Morissette? Morissette. Mas você é Kate Pearson, entendeu? E Kate Pearson consegue o que ela quiser. Entendeu? Nunca esqueça disso. Vá. Divirta-se
.”

E meu pai sempre dizia: “Se quiser realizar algo, comece e forças extraordinárias virão em teu auxílio”.

Como seu herói favorito, Sinuhe, do romance O Egípcio, de Mika Waltari, Antônio da Cruz foi o homem que “viveu sozinho todos os dias de sua vida”

No entanto, para além da idealização dos filhos de Jack – até agora, pelo menos – para com seu pai, reconheço que Antônio da Cruz foi um homem comum, cujos defeitos, em alguns momentos, até se impuseram sobre suas qualidades. Muitas vezes agiu mal, se não comigo, com outras pessoas. A doença também revelou um homem mais frágil do que eu sempre imaginara, e lembro-me até hoje da leitura que fiz com ele, em seu leito de dor, das Meditações de John Donne, e de como ele parecia ainda carregar um sentimento de culpa pela separação, o que nos obrigou a uma conversa sincera e libertadora sobre autoperdão.

Guardo todos esses momentos no coração e na memória. E tudo isso faz de meu pai, como eu disse, um homem comum, mas que transbordava humanidade. E como seu herói favorito, Sinuhe, do romance O Egípcio, de Mika Waltari (citado na epígrafe), Antônio da Cruz foi o homem que “viveu sozinho todos os dias de sua vida”. E é exatamente por todas essas coisas que ele foi, como Jack, “o melhor pai do mundo”.

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PS: Agradeço à Olga Belem, a “amiga” de Twitter, pelo título deste artigo.