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ditadura militar 1964
Tanques nas ruas do Rio de Janeiro durante o Golpe de 1964.| Foto: Arquivo Nacional/ Wikipedia

Há 60 anos, num dia como hoje, 31 de março, alguns militares acharam que seria uma boa ideia assumir o poder, “arrumar a casa” e impedir o Brasil de se tornar um país comunista. Pelo menos essa foi a justificativa que entrou para o imaginário nacional. Diante dessa data, pois, minha ideia era propor uma reflexão sincera sobre o lado bom e o lado ruim da ditadura militar que se sucedeu ao golpe (ou revolução) de 1964. Mas aí.

Mas aí me lembrei de alguém fazendo essa analogia nada absurda: a ditadura militar foi o nazismo brasileiro. Não no sentido genocida ou eugenista do termo. A ditadura militar foi o nazismo brasileiro no sentido de que o período representa, no imaginário nacional, o Mal Absoluto. Aquilo que ninguém quer que se repita. Nunca. Jamais. Em hipótese alguma. E o mais importante: aquilo contra o que vale qualquer medida. Inclusive passar por cima da Constituição e instaurar um regime de força (uma ditadura!) – desde que não seja militar, claro.

Pense em todos os filmes feitos sobre o assunto. Todos. Os militares, desde o soldado mais raso até o general mais estrelado, são retratados como oficiais da S.S. Todos, sem exceção, são torturadores – ou queriam ser. Todos os civis de alguma forma envolvidos na administração do período, por sua vez, são retratados como hipócritas mal-intencionados. Ou no mínimo coniventes, covardes e omissos em relação ao que acontecia nos porões do regime. É como se o Brasil de 1964-1985 fosse um deserto de virtudes. Praticamente um inferno.

Tanto é assim que o governo Lula decidiu vetar quaisquer celebrações dos 60 anos do golpe de 1964. Está simplesmente proibido tocar no assunto. O debate está interditado, como se diz. É como se a esquerda, que tanto lucrou – financeira, moral e politicamente – com a ditadura militar, não quisesse mexer nesse vespeiro. Porque manter a imagem consolidada da ditadura militar como o Mal Absoluto interessa a ela. Afinal, vai que alguém inventa de encontrar semelhanças entre a ditadura militar e o lulo-alexandrismo. Imagina só!

A ditadura “livrou o Brasil do comunismo”

A reação a esse longo processo de nazificação da ditadura militar é compreensível, ainda que igualmente estapafúrdia. Da mesma forma que a esquerda é incapaz de conceber qualquer coisa boa oriunda daquele período, parte da direita se tornou incapaz de reconhecer os muitos erros da ditadura – que foi ditadura e chamar de “regime militar” não vai mudar nada. Erros que tiveram muitas traduções em variados campos.

Na economia, por exemplo, o nacionalismo estatizante dos militares se traduziu na hiperinflação dos anos 1980, bem como na ideia do Estado como propulsor da atividade econômica. Na cultura, os erros da ditadura se traduziram no endeusamento de personalidades como Caetano Veloso e Chico Buarque, e também na transformação do artista num intelectual cuja opinião ganhou peso por sua postura “rebelde” durante o período de repressão.

Mas é na política que encontramos a mais completa tradução (sic) dos erros da ditadura: a transformação do comunista em mártir e herói. Ter lutado contra a ditadura, mesmo que tenha sido para implantar uma ditadura comunista no Brasil, virou atestado de bom-mocismo, mesmo que essa luta tenha sido marcada por justiçamentos, assassinatos, assaltos e sequestros.

A interdição do debate quanto aos erros e eventuais acertos da ditadura militar, como se o período tivesse sido o nazismo brasileiro, leva também a reações extremas que tendem ao passapanismo daqueles que negam as torturas e ao delírio contraditório daqueles que dizem que a ditadura foi necessária “para livrar o Brasil do comunismo”. Vamos combinar: não livrou, né? Longe disso. Não por acaso o Brasil já teve uma ex-guerrilheira como presidente.

Os próximos 60 anos

Ao escrever este texto, fiquei pensando na reação de muitos leitores que alimentam a nostalgia da ditadura militar, idealizando-a como um período de prosperidade, paz e moralidade. Alguns devem ter até rosnado para o uso da expressão “ditadura militar”, em vez do eufemismo “regime militar”. Desculpe. É que, se por um lado não considero que a ditadura militar tenha sido o nazismo brasileiro, tampouco considero que o período tenha sido os melhores anos da nossa história ou coisa assim. Antes era melhor? Talvez. Mas não por causa da ditadura, e sim apesar da ditadura.

De fato, se compararmos aquele tempo de repressão dos direitos civis com este nosso tempo de evidente repressão dos direitos civis, crise econômica, violência urbana descontrolada e imoralidade repugnante e explícita, não dá para negar que, em termos de liberdade, continuamos na mesma. Isto é, sem liberdade. Continuamos com medo, agora não só dos militares, mas também dos promotores, dos juízes e dos traficantes.

Tampouco dá para negar que perdemos a liberdade de nos expressar. A censura é uma realidade. Pode perguntar para a ministra Cármen Lúcia! Aliás, a “censura democrática” é um tantinho pior do que a censura da ditadura militar, que permitia a existência e a circulação de jornais como O Pasquim, ao passo que hoje qualquer piadinha com Alexandre de Moraes deixa meus editores de cabelos em pé.

Resta saber se, daqui a 60 anos, o regime atual, de característica inegavelmente autoritária, será submetido a uma análise rigorosa e honesta de seus erros e hipotéticos acertos. Ou se, à semelhança do que aconteceu com a ditadura militar, passará por um processo de idealização/nazificação: pela esquerda, como um regime de força (uma ditadura!) necessário para livrar o Brasil da ameaça fascista, da “extrema direita”; e pela direita como uma nova versão do nazismo à brasileira. Como o Mal Absoluto que simplesmente trocou a farda pela toga.

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