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Ministro maroto, travesso no jeito de julgar,
Faz do povo um brinquedo do Estado,
Querendo brincar, ministro.
Alcione dedicou um show a Alexandre de Moraes. A plateia reagiu aos berros de “sem anistia!”. E eu passei o dia cantando “ministro maroto travesso”, sem conseguir completar a paródia. Um pouco porque acordei azedo, outro tanto porque cantar “faz do povo um brinquedo do Estado/ querendo brincar, ministro” é, ao mesmo tempo, bater palma para artista decadente e insistir nessa bobagem de dar valor à opinião política de quem um dia soube, com razoável talento, expressar a brejeirice nacional entoando sambas e boleros.
Pelo menos eu acho que são sambas e boleros. Mas isso não vem ao caso. O importante é que, mais uma vez, vemos encenada essa farsa fajuta do artista tardiamente rebelde (uma rebeldia sem absolutamente nenhum risco) que faz um gesto político e é recebido pela direita com uma indignação que nada tem de nova: continua sendo estéril, impotente e escandalosa. Mais uma vez jogamos o jogo do inimigo. Até quando?
Prazer masoquista
“Quem é essa tal de Alcione?”, perguntará alguém, afetando um desprezo que não é pela artista em si, e sim pelo universo cultural que ela habita. “Pronto, lá vem mais uma mamadora da Lei Rouanet!”, dirá outra pessoa, optando por esse infalível atalho argumentativo que leva do nada ao lugar nenhum. Incrível! “Nunca mais ouço nada dessa senhora!”, promete outro e fico pensando no prazer masoquista dessas manifestações.
Prazer? Sim. O prazer de odiar Alcione. Que é o mesmo prazer de ter odiado o irmão da Sandy numa semana e a nata da MPB (Chico, Caetano, Gil, Djavan, Paulinho da Viola) noutra. Um ódio, uma aversão, um nojo que tem uma explicação curiosa. Aliás, tão curiosa que chega a ser engraçada: a direita tem esperança de que, um dia, ah!, um dia o mundo artístico (e também o jornalístico) lhe peça desculpas por ter se aliado ao inimigo.
A direita, eu, você, nós
É isso! Assumamos: a direita, eu, você, nós queríamos ver os octogenários Chico Buarque e Gil cantando “Cálice” no trio elétrico em Copacabana. Mas contra a censura do STF! Queríamos estar lá no meio da multidão vendo a trupe toda sambando ao som de “Apesar de Você”. Mas contra o regime jurispopulista autoritário instalado no país! E mais: queríamos que os artistas viessem a público e dissessem que sempre tivemos razão. Que eles foram hipócritas. Mesquinhos. Reféns da ideologia e do vil metal. Etcétera.
O que dá o que pensar, hein! Porque artista bajulando o poder é a coisa mais normal do mundo. Desde a Roma Antiga. Estranho mesmo é nosso desejo, digo, nossa necessidade muito contemporânea e democrática de ver o artista ao lado da plebe, usando o talento dele para validar nossas opiniões. E ainda por cima se humilhando, pedindo desculpas. Imagina! Por isso também é que dói tanto o rapapé da Marrom: mais do que traídos, nos sentimos sozinhos, quase inexistentes e indignos. Como se a verdade só tivesse valor na voz de Maria Bethânia. Ou, no caso, Alcione.
Sambão com cara de editorial
No fundo, a verdade é que a gente tem inveja. O que é compreensível. Afinal, se por um lado supostamente sobram racionalismo, coerência e até boa vontade a este lado, falta-nos uma beautiful people para chamar de nossa. E isso dói. Falta-nos um sambão com cara de editorial e que entre na trilha sonora da novela. Aliás, falta-nos uma novela de sucesso. Diz se não é verdade! Falta-nos o “gênio da raça”, que compõe, canta, escreve livros, ganha prêmios, entra para a ABL... Enfim, falta-nos alguém (ou alguéns) que conquiste este mundo pregando nossas ideias. Cantando pela nossa cartilha.
O que, infelizmente, não vai acontecer. Não tão cedo, porque uma “elite cultural” (atenção para as aspas!) demora para se consolidar e essa consolidação depende de fatores que, hoje em dia, com as redes sociais e o fim da indústria cultural como a conhecíamos, ninguém nem entende direito. Onde está nosso Gramsci? Aliás, queremos um Gramsci? Você quer? De qualquer forma, e para o seu deleite, consegui tirar a fórceps aqui mais uns versinhos da paródia. Pegue a epígrafe e cante comigo: “Vem, doutor, vem mostrar o caminho da repressão,/ Só você pode ser o algoz da Constituição/ Ministro”.




