O mundo cão é uma realidade da qual tento guardar uma distância segura. Mas às vezes sou obrigado a visitá-lo. E lá encontro mais dúvidas do que certezas.| Foto: Pixabay
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Sei pouca coisa desse mundo cão onde meninas de dez anos são estupradas por tios, onde casais de lésbicas torturam e matam o próprio filho, onde adolescentes frequentadoras de bailes funk sofrem estupros coletivos. Digo, sei que esse inferno cotidiano existe e que muitas tragédias mais ocorrem e não ganham as manchetes. Mas jamais me aprofundei nessa barbárie tão explícita que de tempos em tempos se faz presente em nossas vidas porque sei que o ser humano é cotidianamente muito melhor do que isso.

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E, no entanto, desde que me entendo por gente há quem tente me convencer de que o mundo cão é apenas “o mundo”. Que a violência cotidiana, a falta de escrúpulos, a ausência dos valores civilizacionais mais básicos é a regra. Que eu perco meu tempo escrevendo sobre questões éticas, sobre a busca da felicidade, sobre redenção quando, neste exato momento, alguém está cometendo alguma atrocidade qualquer num terreno baldio de periferia.

Não acredito nisso. Porque, reconheço, o mundo cão que me interessa é outro. É um mundo poodle. Ou melhor, Golden Retriever. Que, às vezes, mas só às vezes, bem raramente mesmo, foge da vida confortável entre questões metafísicas e vai dar uma passeada pelas ruas sem saneamento básico, pelos barracos e pelas palafitas que preconceituosamente, confesso com o rabo entre as pernas, associo à violência extrema. Mas que sempre volta para o conforto da sua caminha de veludo, com seu ossinho, seus brinquedinhos e seu generoso pote de ração premium.

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Mundo pinscher

Foi assim, abanando o rabo, com a língua para fora e com aquele olhar que nós, humanos, dizemos ser de curiosidade, mas que provavelmente é só estresse e medo mesmo, que acompanhei a história da menina de dez anos violentada pelo tio e que se submeteu a um aborto imediatamente transformado em causa política por seres que habitam outro mundo cão: o mundo cão pinscher dos ativistas.

E logo me vi sentado, as orelhas levantadas, tentando entender como surge um monstro capaz de uma vilania dessas. Será que ele nasceu mau? Fico imaginando que este homem um dia foi bebê. E que alguém provavelmente o pegou no colo, nem que seja uma única vez, e lhe deu o que na falta de palavra melhor chamo de amor. Em que momento, porém, a ternura cedeu lugar ao instinto animalesco? Chovia ou fazia sol no dia em que o superego simplesmente desistiu de domar as vontades abjetas dele?

Agora que o infeliz foi preso, é provável que surjam especialistas de todos os tipos, de sociólogos a psicólogos, passando por marias do rosário e drauzios varellas, dizendo que o estuprador é vítima de um ciclo de violência causado pela pobreza. Ou seja, tudo é culpa da dupla Capitalismo Opressor & Sociedade Patriarcal. E talvez o homem tenha sido mesmo concebido e criado no ambiente insalubre de uma maldade que não farejo. Mas a pergunta permanece: por que algumas pessoas que crescem em meio a uma realidade de violência e abusos de todos os tipos buscam e até encontram a redenção, enquanto outras cedem à tentação de qualquer ossinho que o diabo lhes jogue?

Apenas um Golden Retriever

Uma vez preso, julgado, condenado, e na remotíssima possibilidade de ele cumprir a pena e voltar ao convívio da sociedade, resta a mim, cão de pelo macio e cheiroso aparado no veterinário observando essa realidade que me é alienígena, mais uma pergunta: o estuprador (esse e outros tantos iguais a ele) é capaz de se recuperar? É capaz de se olhar no espelho numa manhã qualquer de 2050 e se dizer redimido?

Pessoas de mais fé do que eu acreditam que sim. Pessoas mais, digamos, consequencialistas dizem que não. Eu, que sou apenas um Golden Retriever mimado, busco e não encontro respostas no quentinho da biblioteca. Há todo um monumento sobre crime & castigo escrito por um russo. Ian McEwan também se debruçou sobre a maldade e o arrependimento. E há poemas e mitos a rodo sobre a relação do indivíduo com o que antes a gente chamava sem culpa de “lado negro”, mas que agora já nem sei mais se posso.

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Por mais que eu use meu focinho para virar avidamente as páginas de todos os livros que me cercam, porém, no fundo sei que nenhuma obra de nenhum gênio da literatura ou filosofia é capaz de dar uma resposta definitiva sobre a maleabilidade ou não do espírito humano. O que também se aplica, infelizmente, à vítima dessa história escabrosa. E, pensando bem, até aos seres humanos de espírito sarnento que politizaram o caso todo.

Mas agora está na hora de voltar para minha rotina tranquila de soninho, carinho e caça à bolinha. Levanto-me, olho para trás e dou mais uma espiada no mundo cão antes de me jogar sobre meu dono, lambendo-lhe o rosto e agradecendo pela vida privilegiada e deliciosamente atribulada que levo.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]