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bom samaritano
O “bom samaritano” e um gesto de generosidade aparentemente sincera.| Foto: Reprodução/ Twitter

PRÓLOGO

Dois dias sem conseguir escrever. Ando de um lado para o outro. Bufo. Me sento diante do computador. Levanto. Ando. Bufo. Até que a mulher não aguenta e me pergunta o que foi desta vez. Ênfase em “desta vez”. Explico que estou passando por uma crise de criatividade. “Mas é normal”, digo, menosprezando o problema. Ela não aceita a saída mais ou menos estoica e insiste, dizendo que alguma coisa de interessante deve estar acontecendo no mundo. Não é possível!

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1. Há dois minutos um amigo publicou um meme irreproduzível sobre uma jornalista da CNN conhecida por seus comentários, digamos, pouco esclarecidos. Mas, para compreender a imagem, sou obrigado a acessar mil e uma pastas e abrir mil e um arquivos no HD interno, cinzento e cansado. A jornalista, a emissora, o tema do comentário, a linguagem usada, as roupas, os gestos. Tudo exige de mim um esforço que estimo em alguns milhares de terabytes de informação. O riso é mínimo. No mais, quem eu penso que sou para julgar assim alguém que nem conheço? Próximo!

2. Um amigo reproduz um trecho de “Os Demônios”, de Dostoiévski. Diz o trecho: “Hoje ninguém, ninguém mais se encanta com a Madona Sistina nem perde tempo com isso, a não ser os velhotes incorrigíveis. Isso está provado”. Lembro que não li “Os Demônios”. Lembro que preciso terminar “Romeu e Julieta”. Penso que Dostoiévski só é gênio porque escreve por dois. Do contrário, seria Unstoiévski. Reflito sobre a piada. Publico? Não publico? Pesquiso a Madona Sistina e uau. Mas será que o leitor está interessado nisso? Me lembro da delícia e do desafio que é fazer jornalismo descritivo. Tudo isso em 1.71 segundo. Cronometrado.

3. Outro amigo. Outro meme. A imagem mostra três copos. No primeiro, o otimista diz que o copo está meio cheio; no segundo, o pessimista diz que o copo está meio vazio. No terceiro, a suposta graça: para a geração criada à base de Internet com antidepressivos, o copo a está ofendendo. Esboço um sorriso. Por um instante, tenho vontade de entrar nessa de ressaltar os defeitos das gerações mais novas. Mas no segundo seguinte me lembro de que a nostalgia é um câncer. Não há nada de bom em sentir saudade do tempo que não se viveu. Aliás, quem foi o Don Juan que conquistou uma senhôra com essa cantada barata? Acho que já escrevi alguma coisa sobre isso.

4. Um amigo conta que, na escola, andava com os populares. E continua: “Eles faziam bullying. Rompi com eles e fui pedir a amizade dos nerds. Eu não entendia nada de Star Wars nem de luta de espada medieval. Fui rejeitado. Fiquei sozinho. Aprendi uma lição: o oprimido é tão estúpido quanto o opressor”. Daí talvez eu pudesse tirar umas memoriazinhas e aproveitar a ocasião para falar do amigo que eu jurava ser meu irmão, apesar da distância que a vida nos impôs, mas que entrou em contato comigo depois de vinte anos para me xingar. Por causa de política, claro! Essa viagem rápida à infância, porém, me exaure. No mais, é difícil não cair no sentimentalismo quando se fala de amizades perdidas.

5. Eu ia exaltar a beleza da moça, mas é melhor não. Então: uma mulher comenta um caso cuja relevância, sinceramente, me escapa: meninas debocharam da colega universitária quarentona. “É uma questão etária, mas também elitista. Ela não pôde entrar antes na faculdade porque teve que trabalhar, ajudar a avó dela”, diz. Bocejo, enquanto os neurônios vão buscar na memória recente as cenas. Será que, na condição de quarentão, eu deveria estar comemorando a criminalização do etarismo? Afinal, finalmente tenho uma vitimização para chamar de minha. Aí me dou conta de que a mulher não está brincando. Ela está falando sério. Muito sério. Seriíssimo. Com direito a crítica social e tudo. Penso que é a vida, me lembro rapidamente do meme do copo meio cheio, meio vazio e ofendido. E passo para o próximo tuíte.

6. Num perfil que republica frases de Chesterton, leio que “no mundo moderno, um homem que ataca o Cristianismo não é algo inédito nem uma pessoa extraordinária. Extraordinária é a pessoa que defende o Cristianismo”. Traduzo apressadamente. “Algo inédito” para falar de uma pessoa me parece errado, mas tenho pressa. Poderia usar como epígrafe para falar sobre a perseguição aos cristãos na Nicarágua de Daniel Ortega, amigão do Lula. Mas o próprio Chesterton me faz desistir. O que há de extraordinário nisso? Por falar nisso, me deixe sair do Twitter um minutinho para ver se encontro algo no Instagram.

7. “Por que não podes esperar? Não percebes que essa tua impaciência é fruto do teu orgulho? Para ti, tudo tem que ser logo, para ontem, pra já… Mas nada que seja consistente se constrói num instante. Pensa se amanhã acordasses e visses que o teu abdome cresceu repentinamente e que tu ganhaste cinco quilos… O que farias? Não irias logo para o hospital? É evidente que sim, pois há uma diferença enorme entre crescimento e inchaço. Todas as tuas conquistas aceleradas só servirão para te preparares para uma queda mais violenta. Pela tua pressa, abortastes grandes graças que estavam sendo gestadas no silêncio, na Palavra e no Espírito. Quero que pares! Volta à posição humilde de quem não se sente melhor que os outros, pois é pela espera que eu trabalho em ti a paciência. E esta é condição imprescindível para receberes mais e mais graças de minha mão benfeitora. Na verdade, tu estás me atrapalhando de te abençoar! Espera!”. O texto está no perfil do padre José Eduardo. Caramba! Eu precisava ler isso hoje. Bem hoje. (De volta ao Twitter, mas agora com toda. A paciência. Do. Mundo).

8. Antes toca a notificação do WhatsApp. É um amigo que me pergunta: “O que eu faço com um estagiário que trocou o original ‘houve ofertas’ por ‘houveram ofertas’?”. Respondo com risadas exageradas e, como se possuído pela paciência de São Francisco, respondo. “Explica. Ele provavelmente não teve ninguém que o corrigiu ao longo da vida”. Me sentindo ligeiramente sábio por uns segundos, respiro fundo antes de voltar ao Twitter, onde reina a impaciência e a maldade.

9. Alguém reproduz uma manchete na qual se lê: “Papa considera que ideologia de gênero é ‘das colonizações ideológicas mais perigosas’”. Estranho o “colonizações ideológicas”, mas tudo bem. O alguém que reproduziu a manchete aproveita para comentar que, no Brasil, o Papa poderia até ser preso por dizer isso. Rio. De nervoso. O alguém tem razão. Anoto a ideia: o dia em que o STF mandou prender o Papa. Provavelmente jamais escreverei. Aí me perco em reflexões sobre coragem e medo. Em que momento a prudência e a tolerância excessivas se transformam em algo pior? Pois eu não me autoflagelo todos os domingos confessando também meus pecados por omissão? A gata vem pedir carinho. Mentira, a Catota nunca pede carinho. Eu é que me atiro sobre ela. Agora o último.

10.  Colapso do sistema bancário norte-americano, CPMI do 8 de Janeiro, conselhos pra enriquecer, ChatGPT, corrupção, discussões teológicas rasas e profundas, escândalos, alguém apontando o dedo indignado, sempre indignado, para alguém. Até que me deparo com um vídeo em que um homem pede a outro um dólar para comprar uma camisa de um time de hóquei para o filho. Aparentemente sem hesitar (tudo na Internet é aparente; até as coisas boas), o “bom samaritano”, na companhia do filho, oferece ao pedinte cinco dólares. Aí o pedinte revela a surpresa: daria mil dólares à primeira pessoa que o ajudasse. Relutante, o “bom samaritano” aceita o dinheiro. E chora. (Choramos, mas não espalha). Ao lado dele, o menino esclarece: “ele acabou de sair de uma sessão de quimioterapia”.

Desculpe. Sei que hoje o texto saiu fragmentado demais e que minha tentativa de conferir a ele uma unidade fracassou. Mas vamos ao epílogo, que é para isso que ele serve.

EPÍLOGO
A mulher saiu. Foi trabalhar. Mandei o vídeo do “bom samaritano” para ela. Ela ignorou e logo em seguida emendou: “Para isso você tem tempo, né?”. Me pergunto se esqueci de lavar a louça. Sem cair na provocação, informo burocraticamente que está encerrada a crise de criatividade. Ao que ela responde, ou melhor, pergunta: “Não vai se esquecer de lavar a louça mais esta vez?”. Ênfase no “mais esta vez”.

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