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A mordida do cachorro
| Foto: Bessi/Pixabay

Há um fenômeno, a meu ver muito intrigante, que permeia o relacionamento entre adultos e crianças, e que passa despercebido, pois é inconscientemente aceito, estranhamente tolerado, tanto que é bastante comum, generalizado, e quase mesmo onipresente, em maior ou menor grau. Eu tenho motivos para crer que, variando na medida e na qualidade, ele esteja presente no mundo inteiro, em todas as culturas, e quiçá exista já desde muito tempo, ou desde quase sempre. Seja como for, esse intrigante fenômeno acabou me intrigando especialmente na última semana, e me fazendo reparar, com atenção detida, em seus traços contraditórios – o que torna trabalhoso, inclusive, chegar a uma solução definitiva para essa “questão disputada”. O fenômeno em questão não acontece mormente com os pais (embora também aconteça), mas está ligado, mais costumeiramente, a avós, tios, primos e parentes e geral, e também aos conhecidos e estranhos com os quais interagimos na sociedade – e quisera eu que todos os leitores destas linhas, mesmo sendo pais, as lessem desde esse ponto de vista, o de quando são parentes e estranhos, para sobre elas refletir. E, sem mais delongas, devo enfim dizer do que se trata. Trata-se, pasmem, do instinto incontrolável que os adultos têm de tapear as crianças.

A criança chega animada para o seu primeiro dia num clube e o porteiro, matreiro, lamenta: “Que pena, não vai dar para nadar hoje! Tiraram toda a água da piscina...”. Todas as expectativas dela são sugadas para um vácuo de confusão, e ela procura com os olhos os olhos do pai ou da mãe. Mas é brincadeira! Muito ansiosa para comer melancia após o almoço, a criança assiste a cada um dos movimentos da mãe cortando a fruta, e preparando-lhe a tigela; e o avô, explorando aquela ansiedade, espeta com seu garfo um pedaço do prato dela, e fita-lhe escondendo o sorriso, só para vê-la se escandalizar. Em seu rosto vemos colapsar todo o senso da justiça e do direito. Mas ele está só brincando. Do mesmo modo o tio divide, igualmente entre todos, a barrinha pequena de chocolate; e a tia logo se insinua, histriônica: “Pode me dar o seu pedaço?”. Uma exigência heroica de sua generosidade tão incipiente, que faz a criança paralisar... Ainda bem que ela está só brincando. E a cadeirinha, que o irmão mais novo, inconsciente, quase lhe tomara, mas que fora reconquistada com calma e sem revolta, sem briga; então vem um parente mais velho e, de velhacaria, lhe diz: “Agora é a minha vez de sentar aí, está bem?”. Toda a raiva que ela conseguira conter agora está presa pelos dentes, e explodiria, se ele não estivesse apenas brincando. Acresçam-se a essa lista todas as explicações mirabolantes, bizarras, as mentiras descabidas e surreais – “o que eu estou comendo é horrível, o que eu estou bebendo é veneno” –, os absurdos para confundir e ridicularizar, e todos os desafios e tentações a que se expõe a criança apenas para que ela fique exposta, justamente para vê-la lutar contra algo mais forte do que ela, contra algo com o qual ela ainda não sabe lidar, e rir dela e da sua fraqueza, como num Coliseu em miniatura.

Há um instinto incontrolável que os adultos têm de tapear as crianças. Mas essas intervenções de verdadeiro desrespeito pelas crianças são um completo desserviço

Situações como essas, e todas aquelas outras em que o adulto mente, finge, engana, chantageia, faz que vai roubar ou que vai abusar de sua força, me parecem, para dizer sem rodeios, um completo despropósito, nada mais que um exemplo de mau-caratismo. É, em primeiro lugar, um terrorismo do adulto todo-poderoso, ou seja, é uma covardia, pois é um sadismo inteiramente inconsequente, visto que a criança nada pode contra ele. Ao seguirem esse instinto de tapear, os adultos estão, me parece, dando vazão aos seus profundos impulsos de maldade, que só são refreados em outras situações e com outros adultos porque, ali, eles teriam preço e consequência – o que mostra que ainda são, no fundo, maus, cruéis e egoístas, e que é só o medo social e a prudência do mundo o que os freia. São grandes por fora, mas crianças imaturas por dentro. E, ao fazerem esse tipo de pegadinhas cruéis, não estão ensinando às crianças, com seu exemplo, nada além disto: o egoísmo, a mentira, o dar-se bem e o aproveitar-se dos mais fracos e das situações, a malandragem. Estão “só brincando”, e são “apenas brincadeiras”; mas são engraçadas para quem? Quando a criança chora ou se desespera, então é preciso explicar-se, fazer-se de bonzinho e dizer a verdade, ou então fazer pouco do choro da criança, e se afastar, zombando.

Já é tão difícil ensinar as crianças pequenas a controlar a sua raiva, a se comunicar com eficácia, a compreender o outro, a perdoar, a ter senso de justiça e de respeito pela propriedade alheia, a dividir, a serem generosas; já é tão difícil ensinar a elas o valor da palavra e da verdade e a feiura da mentira, ensinar-lhes os princípios universais, os nexos de causa e efeito, o senso das proporções, a coerência e o senso de realidade, enfim, já é trabalho suficiente ter de educar os nossos filhos e iniciá-los no mundo, que essas intervenções de verdadeiro desrespeito pelas crianças são um completo desserviço. Este é um ponto de vista sobre o fenômeno.

Mas, em contrário, haverá os que dirão que colocar as coisas desse modo é um grande exagero, que advém de uma superproteção, típica das mães, e que na verdade é preciso aprender a viver, e viver, no mundo, significa lidar com todas essas nuanças: com a verdade de um lado, a trapaça maligna do outro, e entre elas o comprido dégradé das brincadeiras, mais ou menos maldosas. E parece que sim, que isso também é verdade. Existe e faz parte da vida, e existe para o bem, uma espécie de bullying pedagógico, que obriga a criança – e o jovem, e também o adulto – a aplicar na realidade concreta os princípios gerais que aprendeu e que tem dentro da alma, para logo perceber a dificuldade e a intrínseca imperfeição dessa aplicação, e assim não se levar tão a sério, e não ser tão ranheta, nem tão exigente consigo própria e com os outros. É a medida de incerteza da realidade concreta. É uma vacina contra as crianças “medrosas”, excessivamente tímidas, que não soltam da barra da saia e não agem, e contra as crianças “chatas”, que emburram contra o que lhes parece a mínima injustiça (em termos adultos diríamos, talvez, contra os vícios da vaidade e do juízo próprio).

Numa conversa recente, Jordan Peterson e Rafe Kelley ressaltaram a importância das brincadeiras “violentas” para que as crianças aprendam a dosagem e o limite da força, a intenção e o efeito de cada gesto. Segundo eles, brincadeiras assim ajudariam a regular as emoções e a construir uma verdadeira confiança entre os colegas, pois é assim que se começa a aprender as nuances da linguagem corporal, as microações e suas intencionalidades. Kelley traz de seu trabalho uma analogia com os cães: ele observa a estatística segundo a qual os cachorrinhos com os quais não se brincou bastante quando eram filhotes, aos quais não se ensinou, por um “treinamento lúdico”, qual é a mordida de brincadeira e qual é a mordida de verdade, e todos os graus intermediários, quando ficam adultos, ou tornam-se cães inteiramente apáticos, bobos, que nenhum estímulo é capaz de mover, ou involuntariamente violentos, protagonizando aquelas histórias tristes em que ferem seus donos ou crianças, mas sem estarem realmente bravos, sem a intenção, simplesmente por não saberem a medida de sua força. Ainda segundo ele, a falta desse tipo de brincadeiras em nossa cultura, confundida com violência real, vem gerando nas pessoas muitos distúrbios.

Embora, guardadas as peculiaridades e os diferentes graus, essas coisas se apliquem a ambos os sexos, é inegável que sejam enormemente mais importantes e mais decisivas para os meninos – e para os homens. Quando estão testando suas forças, e competindo, armando estratagemas e bolando planos, aceitando desafios e pagando apostas imprudentes, zombando e pregando peças, quando estão fazendo todos esses jogos e brincadeiras “violentas”, de implicância e provocação, os meninos estão apenas sendo meninos, no estrito sentido de que, com isso, estão treinando e se preparando para ser homens, e homens bons (não deixem de ler o belo livro de Anthony Esolen a respeito). Então, nesse sentido, não ser sempre Caxias, não ter sempre uma situação ideal e higienizada, angelicalmente respeitosa, mas temperada com pegadinhas, com zoeiras e provocações, para que as crianças aprendam desde logo que a vida e as relações são sempre cheias de matizes e que não se deve levar tudo tão a sério, sob pena de ser bobo, fraco ou bruto, pode ser algo benéfico. Este é outro ponto de vista sobre o fenômeno.

Os avós, tios e primos que se pretendem brincalhões devem, primeiro, ser eles mesmos uma referência suficientemente sólida das virtudes que os pais pretendem ensinar, ser solidamente generosos, verdadeiros, amorosos e pacientes

Respondo dizendo que, em tudo na educação, as nossas ações devem ser fruto de uma intenção, devem necessariamente visar ao bem, e devem ser eficazes. Isso desqualifica e exclui, sem apelação, a atitude de muitos avós, tios, parentes e estranhos, que, não tendo nenhuma clareza sobre sua intenção, não visam ao bem da criança e não têm, portanto, como serem eficazes nisso (trocando em miúdos: tem muita gente sem noção). Muitas dessas brincadeiras de fato são, como dissemos, fruto de uma tendência para o mal, de um sadismo que vê, na criança, um ser totalmente indefeso contra o qual a zombaria não acarretaria, para quem a pratica, nenhuma consequência ou retaliação. E é aí que devem se enganar: pois não há dúvida de que os pais, sempre presentes e atentos, devem proteger seus filhos dessas confusões e humilhações, e não precisam ter muitos pudores ao se intrometer e explicar, para a criança, que aquele adulto está mentindo ou fingindo, com a intenção de brincar, embora seu gosto para a brincadeira possa ser duvidoso. Ora, os pais, além de guardiães físicos e defensores morais de seus filhos, devem ser para eles intérpretes da realidade, uma base sólida de referência, quanto à verdade e à estabilidade, para a sua exploração do que é novo no mundo. O mesmo vai valer para esses casos.

Comparemos esse aprendizado – o do que é verdade ou mentira, brincadeira ou maldade – com outro aprendizado, considerando que todo ensino deve ser eficaz. Comparemos, por exemplo, com o aprender a nadar. Mesmo aqueles pais ou aqueles tios que dizem ser preciso lançar as crianças na água para que aprendam a nadar “na raça”, “na marra”, jamais fariam isso sem a firme convicção de que, uma vez que se virem no apuro da água, aqueles meninos vão de fato transcender suas capacidades e aprender a nadar. Há o risco, sim, que as mães jamais poderão suportar, mas um risco calculado, um risco que o pai, que ensina com intenção e visando à eficácia, escolhe correr, estando pronto para um eventual salvamento a qualquer instante. Já ocorreu a alguém, por acaso, lançar na água uma criança pequena que nada soubesse de piscina esperando que, sozinha, ela saísse nadando? A criança certamente se afogaria, e a eficácia do aprendizado não se daria de forma alguma.

Parece-me que fazer brincadeiras que testam as crianças moralmente, que põem em tentação as suas convicções, ou que lhes dão explicações falsas e mirabolantes, antes que elas tenham uma clara noção do certo e do errado, do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, do verossímil e do inverossímil, e antes que tenham um mínimo de força de vontade própria, seja lançá-las num mar bravio sem antes tê-las treinado em águas calmas, para que aprendam tudo sozinhas. Com certeza vai dar errado. Não é à toa que Platão dizia, na República, que as crianças devem antes ser expostas o suficiente apenas ao que bom, belo e verdadeiro, para que isso se imprima profundamente em sua alma, a ponto de tornar-se a base de comparação para o mau, o feio e o falso, que ela encontrará no mundo depois.

Enfim, sim, é preciso aprender a brincar. É preciso aprender que, entre o bem e o mal absolutos, existe a vasta gama de intencionalidades e de sucessos das ações humanas: aprender a diferença sutil entre gracejar e zombar, entre provocar amorosamente, para rirmos juntos, e provocar maldosamente, para ferir e irritar; entre pregar uma peça, e mentir ou enganar. É preciso aprender a discernir o grau de malícia num gesto, numa palavra, num blefe. É preciso aprender a dosar a própria força, a saber brincar, a saber não ferir sem querer, a ser confiável e a confiar – meninas e meninos, que serão mulheres e homens, cada um ao seu modo, mas todos. Mas, para que aprendam efetivamente, é preciso que se ensine essas coisas com intenção, com sentido, e com a devida dosagem: só se deve colocar para a criança um problema quanto à justiça e à honestidade quando a clareza sobre estas já for suficiente, para que ela não “engula a água” da malandragem e se afogue na dissimulação; só se deve testar o que já tiver sido bem treinado, a educação é um processo e tem níveis.

Os avós, tios e primos que se pretendem brincalhões devem, primeiro, ser eles mesmos uma referência suficientemente sólida das virtudes que os pais pretendem ensinar, ser solidamente generosos, verdadeiros, amorosos e pacientes, e só então, no momento adequado, poderão zombetear e ensinar, com amor, que nem tudo é bem assim, e que é preciso ficar esperto. Desse modo a grande família participará, com os pais, da verdadeira educação dessas crianças, como um ingrediente exótico, que já vem em parte do “mundo lá fora”, mas que não contradiz nem joga contra os propósitos educativos desses pais. Essas crianças serão educadas para o mundo, mas não como seus membros ardilosos, e sim como gente de caráter num mundo sem caráter, e como sal nesta Terra; serão astutas e prudentes como as serpentes, sim, mas sem malícia, como as pombas.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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