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Como criar filhos ingratos
| Foto: Bigstock

Anthony Esolen escreveu, anos atrás, um manual perfeito para quem queira destruir completamente a imaginação das crianças, listando e explicando dez maneiras, das quais, ele garante, basta a aplicação diligente de umas três ou quatro para matar, no ninho, qualquer possibilidade de um gênio. Segundo ele, é muito perigoso que a curiosidade natural das crianças, se não for sufocada, as impeça de se adequarem ao mundo em que irão viver — o dos shoppings todos iguais, da comida industrializada sempre igual, dos papéis para assinar, dos entretenimentos de massa, e da boa e velha política de sempre. Entre essas medidas estão manter as crianças sempre presas dentro de casa, distraídas com alguma superficialidade ou hipnotizadas por uma tela, impedidas de conhecer coisas reais do mundo, e, o mais possível, intoxicadas de clichês e menosprezando tudo o que é heróico e patriótico, de preferência sem diferenciar o que é peculiar nos meninos e nas meninas e não vendo no amor mais que sexo. Ah, e sem negligenciar o principal: abafando nelas qualquer sentido transcendente. Não bastando, anos despois ele escreveu outro livro, ampliando e aprofundando o primeiro, com mais dez maneiras de destruir, agora, a própria humanidade do seu filho — dez técnicas garantidas para conservar a vida sob compulsão.

Esse escritor fantástico — professor do Magdalen College of the Liberal Arts (EUA) e tradutor da Divina Comédia para o inglês — brindou-nos, naturalmente, com livros irônicos, cujo objetivo é fazer o queixo do leitor chegar cada vez mais perto do chão ao observar, capítulo após capítulo, que põe em prática cada uma daquelas dez maneiras, e que, sem perceber, está sendo levado pela onda da cultura de massa e, catastroficamente, destruindo a imaginação — e até a humanidade — dos seus filhos. Quando reflito sobre o sofrimento de alguns pais que, embora extremamente dedicados, bem-intencionados e sacrificados, vivem situações bastante difíceis, em que os filhos mostram-se profundamente ingratos para com eles, em vez de reconhecerem sua dedicação e os tomarem como modelos, eu gostaria que Esolen tivesse escrito um manual sarcástico para isso também, mostrando, por meio desse desagradável choque, o que esses mesmos pais estão, sem saber, fazendo para causá-lo e, assim, provocar uma metamorfose em sua conduta. Talvez as dez maneiras de criar um filho ingrato fossem mais ou menos assim:

1) Não deixe a vida real acontecer para o seu filho: jamais permita que algo de concreto ou verdadeiro lhe aconteça, sob o pretexto de que pode traumatizá-lo; prive-o de todas as experiências possivelmente dolorosas ou impactantes, que ensinariam os limites da realidade (cuidado especial com velórios e nascimentos).

2) Dê tudo o que ele pedir: encha-o de todos os brinquedos, objetos e novidades possíveis; encha-o de atividades e estímulos, e deixe-o fazer o que quiser e quando quiser, mas nunca, nunca diga não.

3) Faça tudo por eles, e não os ensine a fazer nada por si mesmos. Eles devem apenas brincar, bagunçar e sujar — depois você arruma e limpa. Seja um perfeito servo, e satisfaça todos os seus desejos.

4) Não respeite a hierarquia dos amores na família: se houver qualquer impasse, privilegie as vontades da criança e prejudique o seu relacionamento conjugal, de modo que a criança nunca deixe de sentir que ela é o centro de tudo.

5) Reclame sempre, o máximo possível e na frente das crianças, do seu trabalho e do esforço que é preciso para cumprir suas obrigações.

6) Mostre como você busca o prazer sempre que pode, na máxima medida e da maneira mais fácil possível, em todo o seu tempo livre.

7) Minta, falseie suas intenções, engane para conseguir o que quer, justifique os meios pelos fins, ou, melhor ainda, justifique suas atitudes com historinhas.

8) Grite, perca as estribeiras, não tenha paciência e passe os dias murmurando irritado.

9) Renuncie aos seus princípios e valores quando for muito custoso defendê-los, e nunca deixe transparecer qualquer gesto de coragem.

10) Em suma, quando não estiver sendo um servo obcecado, seja o pai “amigão”, um colega adolescente na busca pelo prazer — jamais um verdadeiro educador.

Assim, garantiremos que ficará gravado na alma dessas crianças que elas podem e devem ter tudo o que quiserem sem esforço. Ao dar tudo, ensinaremos que se deve receber tudo; ao fazer tudo por elas, ensinaremos que elas não precisam fazer nada por si mesmas; ao satisfazer todos os seus desejos, que todos os desejos devem ser satisfeitos. E, se nada disso funcionar, completaremos o serviço demonstrando que, se pudéssemos, estaríamos no lugar delas, sem o sofrimento do esforço e sem lutar por nada que valha mais do que o prazer imediato; assim, elas não tomarão como modelo a nossa entrega, mas a nossa fraqueza de princípios. Se aplicarmos essas dez maneiras com esmero, é quase garantido que teremos filhos descontentes com tudo, que não se contentarão nem com o muito que têm, não serão gratos, não reconhecerão tudo que os pais fizeram e fazem por eles, e tudo o que lhes deram. Tenhamos como ideal máximo aquele filho que teve tudo, a melhor escola, os melhores professores de reforço, os melhores eletrônicos, instrumentos, livros, transporte, aulas particulares disso e daquilo, clube, viagens, e, na entrada da adolescência, preferiu se meter com o pessoal errado, com drogas, e apenas gastar o dinheiro dos pais com prazeres, e não fazer mais nada...

Talvez esse novo manual de dez maneiras fosse mais ou menos assim. Mas, como a ideia aqui não é assustar ninguém, melhor deixarmos esse livro por escrever, e pensarmos, positivamente, em maneiras de fazer com que nossos filhos sejam capazes de reconhecer o que fazemos por eles, sejam gratos por sua vida e pela nossa família e, admirando-nos assim, nos queiram ter como modelos, e façam o mesmo pelos outros. Vamos inverter, de um só golpe, as três dicas principais para criar filhos ingratos que vimos em nosso hipotético livro: em vez de lhes darmos tudo, temos de ensiná-los que as coisas valiosas são conquistadas com esforço da parte do ser humano; em vez de fazer tudo por eles, devemos ensinar-lhes autonomia, a aos poucos se desprenderem de nós para fazerem as coisas por si mesmos; em vez de satisfazer todos os seus desejos, querendo que, assim, eles estejam sempre felizes, nós devemos mostrar-lhes que o prazer imediato é uma satisfação menor, se comparado ao gozo na conquista de um bem espiritual, que vêm geralmente quando se sacrifica, com vistas a ele, esses mesmos prazeres menores. Ou seja, que muitas vezes é no próprio esforço autônomo que está o verdadeiro valor, o verdadeiro crescimento — independentemente dos resultados aparentes e exteriores —, e, portanto, o verdadeiro deleite. Como dizia Saint-Exupéry, o autor do Pequeno Príncipe, a paisagem do alto da montanha é muito mais bela para o que teve de subir a pé e tem os músculos doídos, do que para o que foi carregado de liteira. É quase como se a beleza da paisagem fosse construída pelos músculos.

O que nosso filhos precisam experimentar e aprender, para que sejam gratos e tenham como apreciar retamente o valor das coisas, é que, para além do prazer imediato que vem da satisfação de um desejo, existe uma satisfação muito mais sutil e duradoura na doação, na entrega pelo outro; existe uma espécie de “prazer” imaterial quando fazemos algo que é bom em si mesmo, quando agimos de maneira virtuosa mesmo não satisfazendo o nosso desejo, ou negando-o, ou até mesmo suportando algum incômodo ou dor com esse fim. Isso fará com que eles não acessem só as faculdades que temos em comum com os animais, mas exerçam também as faculdades propriamente humanas, somente no exercício das quais podemos buscar a nossa felicidade, que também não é a mesma dos animais, mas propriamente humana. Talvez já tenham notado que este é o ponto central do que venho falando e escrevendo, e voltarei a ele ainda muitas vezes.

Mas, como a questão aqui é a gratidão e a admiração por nós, quero lembrar, a esse respeito, um bom e velho ditado: Ninguém dá aquilo que não tem. Antes de educá-los nisso, nós pais precisamos conhecer essa dimensão, e nos mover nela. Para que possamos ser o educador de uma criança, devemos ser primeiro adultos — e, por conta do mundo em que vivemos e da educação que não recebemos, talvez estejamos um pouco defasados.

Se nós mesmos dividirmos nossa vida entre as enfadonhas obrigações e, em todo o tempo livre, a busca pelo prazer, e só afagarmos o nosso egoísmo, e nos darmos às paixões e ao descontrole, não tem como nossos filhos não seguirem por esse mesmo caminho, por mais que queiramos “fazer tudo por eles”. Logo seremos todos, nós e eles, adolescentes grandes, que têm capacidades físicas e intelectuais de adultos, mas o caráter disforme de uma criança. Se, ao contrário, antes de sermos pais, formos alguém de verdade — e não apenas caras-de-pau, como o Pinóquio —, capaz de se entregar pelo próximo, fundaremos uma família da qual a criança não será o centro, pois o centro já será essa doação mútua, completa e total, dos pais. A criança verá a si mesma, não como um reizinho a ser servido, mas como o transbordamento de um amor maduro que existia antes dela: ela vai pegar o bonde andando, um bonde onde já se busca o bem acima do prazeroso. E, vendo os pais se sacrificando assim, demonstrando essa força moral admirável, vai naturalmente admirá-los.

É bem verdade que, quando descobrimos que vamos ser pais, logo nos vem à cabeça o pensamento de que “não estamos prontos”, ou de que “ainda não somos quem gostaríamos de ser”. Mas esse pensamento não deve nos apavorar, porque de fato nunca seremos, e nunca estaremos prontos e perfeitos, até à hora da morte. Contudo, se perdemos muito tempo olhando para o lado errado, essa nova responsabilidade pelos filhos é um ótimo incentivo a que comecemos uma vida nova, para que demos o pontapé inicial numa busca pela própria educação que, a essa altura, será uma auto-educação. Nós podemos, e devemos, aplicar conosco mesmos, com a parte de nós que é ainda um pouco criança, essa mesma formação moral e do caráter que nós desejamos para os nossos filhos. Isso vai se dar no trabalho, nos nossos próprios hábitos de rotina, talvez de alimentação, de pontualidade, de higiene, de constância na oração, por exemplo, e no nosso relacionamento com nosso marido ou esposa. Mas pode se dar, sobretudo, na própria atividade de educar as crianças, e o benefício das nossas boas ações será, assim, duplo. Quando vierem as birras e todas as dificuldades, jamais minta para as crianças, nem mesmo nas pequenas coisas, nem falseie, nem engane, e assuma corajosamente os seus defeitos. Não grite nem dê palmadas como resultado de descontrole e impulsividade. Tenha a paciência de ajudá-los a cumprir suas obrigações, em vez de fazer por eles. Não reclame, mas mostre que você é maior que o seu trabalho. Não renuncie jamais, nem por cansaço, aos princípios e valores inegociáveis. E, enfim, não dê tudo o que os seus filhos pedirem ou quiserem, mas somente o que for realmente bom a cada momento, isto é, o que for justo e provier do amor, não importando o que pensarão de você.

Só se é grato por um esforço quando se é capaz de reconhecer esse esforço, e só se é capaz de reconhecer um esforço quando se experimentou um. Tente ser o adulto que você quer que seu filho seja, para que ele possa querer ser o adulto que você é, ou tenta ser. Se nós, pais, realmente valermos alguma coisa, ou estivermos honestamente nos esforçando por valer, as crianças vão reconhecer esse valor, vão reconhecer o nosso esforço. Então, por nós mesmos e por nossos filhos — e por que não dizer? pelo nosso país —, lutemos pelo equilíbrio, pela maturidade e pela lucidez, e, como dizia um velho mestre, prometamos ser.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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