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Detalhe de “O retorno do filho pródigo”, de Rembrandt.
Detalhe de “O retorno do filho pródigo”, de Rembrandt.| Foto: Google Art Project

O tema que hoje me proponho a tratar é o supérfluo. Não é supérfluo o que vou dizer, porém, pois não me parece que o supérfluo seja, em si mesmo, supérfluo. Calma, não é só jogo de palavras. Quero meditar sobre como, contraditoriamente, ao menos em aparência, algo que sobeja e excede pode ser, na verdade, o justo e o necessário, e o verdadeiro cumprimento de uma obrigação. Faço-o dirigindo-me, em primeiro lugar, a mim própria, olhando honestamente para o meu próprio coração. Se o meu for, como creio que seja, semelhante ao de muita gente, valerão para todos as minhas reflexões.

Dou-lhes algumas cenas, tiradas do Novo Testamento cristão – para os que ainda não o conhecem bem, e também para os que já o conhecem, que são convidados a pôr olhos frescos sobre as passagens, como se fosse a primeira vez.

Um homem tinha dois filhos. Um deles, caxias, metódico, sacrificado ao trabalho. Sempre calado, mais lento para reagir, quando criança chorava escondido e jamais respondeu para o pai. Zangava-se com o irmão, que estava sempre agitado, mais matreiro e esquecido das coisas, às vezes mesmo inconsequente. Um dia, este irmão volátil pede ao pai um dinheiro que, segundo crê, lhe cabe por herança, e sai pelo mundo, a esbanjar na gandaia. Quando acaba todo o dinheiro, e os amigos, mui amigos, vão indo embora, o rapaz vai parar no indigno serviço de porqueiro, desejando comer a ração dos bichos, e nem isso lhe permitem. No fundo do poço, cai em si, vê a grande besteira que está fazendo com sua vida, e volta para a casa do pai, que o espera na janela, e o recebe com beijos, abraços, com uma vida inteiramente nova, e manda que nada se poupe para que haja uma grande festa para celebrar o seu regresso. O irmão caxias, porém, não quer entrar na festa, porque ele, que esteve sempre ali ao lado do pai cumprindo todas as suas obrigações, jamais ganhara festa, e agora, para esse esbanjador...

Ao menos em aparência, algo que sobeja e excede pode ser, na verdade, o justo e o necessário, e o verdadeiro cumprimento de uma obrigação

Outra cena. Um profeta que se levantou na região, já famoso pelos sinais e curas milagrosas que opera, está ensinando seus discípulos. Um deles toma a palavra e o interpela: “Bom mestre, o que devo fazer para alcançar a vida eterna?”. Ora, não é assim que se faz, e Jesus, os olhos cravados nos dele, ainda que sem perder a doçura, começa sua resposta com uma repreensão, que bote o jovem imaturo e insolente em seu devido lugar: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão só Deus”. E acrescenta algo sem novidades: “Cumpre os mandamentos”, citando-os. E o rapaz então diz: “Já os cumpro todos desde minha mocidade”. Ouve então, da boca do Senhor, que se compadeceu dele: “Se queres ser perfeito, vende tudo o que tens e dá o dinheiro aos pobres, e depois vem seguir-me”. Como era muito rico, o jovem ficou acabrunhado, e foi embora.

Mais uma. Jesus está próximo ao templo de Jerusalém e, erguendo os olhos, vê alguns ricos deitarem suas ofertas na caixa das ofertas. Aguarda uns instantes, calado, até que, discretamente, chama a atenção de seus discípulos para uma velhinha curvada, que vem de longe muito lentamente, com muita dificuldade... Tem a cabeça coberta por um tecido barato, ela é pobre, é viúva. Todos a veem meter a mão, enrugada e trêmula, no bolso, para dele tirar duas moedas, as quais lança nas oferendas. Enquanto ela se afasta, anônima, ele diz: “Em verdade vos digo que esta pobre viúva lançou mais que todos os outros”.

Uma última cena. O Cristo adentra uma cidade, e ao seu encontro acorre uma imensa multidão, para ouvir sua palavra e ver os milagres que faz. Há um homem, muito rico, ilicitamente rico, que é chefe dos cobradores de impostos, que também deseja vê-lo ao menos uma vez. Ele se sente indigno, sabe que é pecador, e que sua vida não condiz com ser discípulo de um profeta, mas sente um estranho chamado em seu peito, um impulso ao qual decide ceder. Acontece, porém, que o homem é baixinho, e não consegue enxergar Jesus por entre a multidão. Sobe, então, num sicômoro – bela árvore, imensa! –, para esperá-lo passar. Quando passa, o Mestre levanta os olhos e diz a ele, e a ninguém mais: “Zaqueu, desce depressa, hoje eu almoço com você”. O povo murmurou e criticou, questionando como foi se hospedar bem na casa do sem-vergonha. Mas a história termina com o homem de pé, diante de Jesus, bradando entusiasmado, com o dedo em riste e transbordante de alegria: “Dou aos pobres metade dos meus bens, e àqueles que eu defraudei, restituo no quádruplo!” Bravo, Zaqueu.

O supérfluo de que falo é a generosidade, é aquilo que podemos fazer para além do nosso dever e da nossa obrigação.

Vejam só, como aquele pai diz ao filho depois: “Tu estás sempre comigo, tudo o que é meu é teu. Mas é justo que haja festa, porque teu irmão estava morto e reviveu”. E reparem bem, aquele jovem rico já cumpria todos os mandamentos, o que, segundo se diz ali, bastaria para alcançar a vida eterna. Mas “se queres ser perfeito...”. A pobre viúva, que deu só duas moedinhas, “lançou mais que todos os outros”, e o cobrador de impostos não se propôs a restituir os prejudicados naquilo que defraudou, nem apenas em somar os juros, ou uma multa, mas em restituir no quádruplo, após dar metade do que tinha aos pobres.

Nas histórias dos personagens avaros, vemos que a generosidade que foi pedida deles era, na verdade, algo justo e perfeito, e que negligenciá-la ou negá-la seria, portanto, injusto e imperfeito. Nas histórias dos generosos, vemos um rico despojando-se de praticamente tudo que possuía em benefício dos outros, como uma celebração e um gesto de gratidão porque “a salvação entrou em sua casa”, e uma pobre que, não obstante ser pobre, deu mais do que os ricos, porque estes fizeram oferta do que lhes sobejava, ao passo que ela deu de sua pobreza, deu aquele mesmo pouco que tinha para viver: ela fez sobejar a sua bondade.

A generosidade não é, e não pode ser, por definição, algo obrigatório, um dever. Ninguém censura alguém por falta de generosidade como se censuraria alguém que descumpriu seus deveres, ficou aquém do esperado ou que tomou algo de alguém, e por isso nem o irmão do pródigo e nem o jovem rico são cobrados de nada: eles são convidados à superabundância. A generosidade se define, exatamente, por ser um excesso, uma liberalidade com relação àquilo que é de dever, de obrigação, de justiça.

Cumprir nossas obrigações já é um ato de generosidade, mas há o perigo de uma mentalidade do dever, aparentada com a boa e velha “lei do menor esforço”

Entretanto, observando essas mesmas cenas do Evangelho, e como emanam a luz de seu simbolismo sobre a realidade, mas também olhando diretamente para nossa experiência cotidiana e para as pessoas ao nosso redor, pergunto: Não lhes parece que haja um grande perigo em ater-se apenas à obrigação?

Não estou com isso desmerecendo o cumprimento das obrigações, como sendo coisa de pouca monta, não. Ao contrário, costumo sempre apontar para o valor heroico que podem ter os nossos pequenos gestos cotidianos e os nossos pequenos sacrifícios domésticos, o mérito imensurável que pode ser haurido de uma vida oculta, que o olhar desatento – o olhar materialista, que não apreende a dimensão sobrenatural – poderia chamar de medíocre. Falo, inclusive, de como devemos louvar e elogiar nossos filhos quando cumprem suas obrigações, pois ser obrigação não torna a coisa mais fácil, e é preciso que haja uma tensão na direção desse cumprimento o qual faz a pessoa crescer; ela precisa aumentar a sua força e o seu limite para atingi-lo.

Não é a isso que me refiro porque, nesse sentido, cumprir nossas obrigações já é um ato de generosidade, uma vez que nos excedemos, que nos esforçamos além do confortável para começar a cumprir o que passou a ser esperado de nós. O perigo a que aludo é o de uma mentalidade do dever, aparentada com a boa e velha “lei do menor esforço”, que mantém tudo dentro do estritamente devido e obrigatório, sentindo qualquer coisa que o exceda como algo abusivo, como injustiça, como exagero prejudicial, radicalismo. É a mentalidade de quem estuda meticulosamente os limites dentro dos quais não se faz nada de errado – ainda que também não se faça nada de bom. É o cristão que estuda moral para ter bem claro quais são os limites do pecado, para poder permanecer sempre às margens dessa fronteira, ainda que sem a cruzar. É o estudante que se prepara para tirar nota 6 na prova, e apenas passar de ano.

Não tenho razão em crer que há nisso um grande perigo? Essa mentalidade de cálculo, de justificativas, essa visão que busca os limites da licitude das ações, e que se disfarça de prudência, embora tenha como mote principal cumprir o mínimo, me parece que, mesmo nisso, deixa a desejar. Primeiro porque, pela própria “inércia descendente”, pela “força da gravidade” de nossa natureza – repito sempre que vejo a vida como uma escada rolante, sobre a qual devemos nos esforçar por subir mesmo que queiramos apenas ficar parados –, flertar com os limites significa, muito provavelmente, descumpri-los. Alguém está isento de tropeçar? Quem está sempre rondando as beiradas da moralidade acaba cometendo deslizes ou fraquezas, e todos sabemos que o aluno que estuda para tirar 6 frequentemente toma bomba. Em segundo lugar, porque essa mentalidade me parece tender, inescapavelmente, para o egoísmo, ou, dizendo melhor, para o comodismo do individualismo. Cumpro a minha parte, e exijo rigorosamente que os outros cumpram as deles, porque de algum modo me devem – e logo não quero entrar na festa da misericórdia, e muito menos dar nada aos pobres. Fecho-me em mim mesmo, e meu coração legalista vai diminuindo e murchando como uma fruta desidratada.

E é por isso – em terceiro lugar, e é este o meu ponto – que o supérfluo não me parece ser algo de fato supérfluo, o excesso não me parece algo excessivo, e a generosidade humana não me parece ser assim tão facultativa. Ela se revela como sendo o verdadeiro cumprimento da nossa obrigação. Por quê? Porque o ser humano não foi feito para a lei, para o mínimo, para dar conta de si mesmo; ele foi feito para amar, para as coisas grandiosas, foi feito para o tudo – para dar tudo e ganhar tudo. Faz parte do pleno cumprimento de nossos destinos enquanto homens sermos generosos, ultrapassarmos os limites do que é apenas dever e obrigação. Só assim seremos, no sentido mais profundo dessas palavras, justos e perfeitos. É necessário ultrapassarmos nossos deveres para sermos plenamente humanos.

Isto porque o bem, como diziam os antigos, é “difusivo de si” – bonum est diffusivum sui –, ele se expande e se comunica e se transmite adiante por sua própria natureza. Não existe um verdadeiro bem que seja estático, guardado, preservado, para consumo privado e egoísta. Assim é o amor, o bem dos bens: ele se espalha, se derrama, porque transborda dos nossos corações. Não exige nada em troca, porque, como já está transbordante, não haveria espaço para uma recompensa. Seu deleite está nessa multiplicação de si mesmo.

O ser humano não foi feito para a lei, para o mínimo, para dar conta de si mesmo; ele foi feito para amar, para as coisas grandiosas, foi feito para o tudo – para dar tudo e ganhar tudo

Por isso é muito pouco, por exemplo, não fazer mal ao próximo, não lesar os seus direitos, e respeitar as prescrições negativas, os mandamentos tais como “não matarás”. Não, é preciso mais, é preciso esbanjar e “amar o próximo como a si mesmo”, buscá-lo, favorecê-lo, dar-lhe muito mais do que lhe seria de direito. E o Cristo mesmo disse que, assim, não revogava os mandamentos, mas dava-lhes pleno cumprimento. E, se queremos o bem dos nossos filhos, e educá-los para serem homens e mulheres de verdade, plenos e perfeitos enquanto tais, cada um ao seu modo particular, é isso o que devemos fomentar em nossos lares: não o legalismo, a obrigação, um frio respeito pelo próximo; mas sim a generosidade, a liberalidade de si mesmo, a verdadeira entrega pelo próximo. E as nossas próprias obrigações, mais ou menos difíceis, devem ser cumpridas nesse mesmo espírito, imantadas e preenchidas de generosidade, e assim, mesmo que a nossa oferta seja “de nossa pobreza, daquilo que temos para viver” – ou seja, não mais que duas moedas sujas –, estaremos dando mais que muito rico.

Para quem não sabe, generosus, na origem da palavra, era aquele de nobre nascimento, o fidalgo. E os nobres de nascimento, sendo também nobres de coração, e dando aos seus súditos daquilo que era seu, fizeram com que, com o passar do tempo, a palavra ganhasse esse novo sentido. E assim o nobre de nascimento, o fidalgo, isto é, aquele que é “filho d’algo”, torna-se mais filho de sua própria bondade do que de seus pais. É o que diz Juan Huarte, o famoso médico espanhol do século 16, em seu livro Exame de engenhos: “O espanhol que inventou este nome, hijodalgo, deu bem a entender que os homens têm dois gêneros de nascimento. Um é natural, no qual todos são iguais, e o outro espiritual. Quando o homem empreende algum feito heroico ou alguma especial virtude ou façanha, então nasce de novo e ganha outros pais melhores, e perde o ser que tinha antes. Ontem se chamava filho de Pedro e neto de Sancho; agora chama-se filho de suas obras”. Sejamos nós também, pois, filhos do nosso braço direito, e tornemo-nos nobres por nossas obras: a generosidade engrandece.

É muito pouco não fazer mal ao próximo, não lesar os seus direitos, e respeitar as prescrições negativas, os mandamentos tais como “não matarás”. Não, é preciso mais, é preciso esbanjar e “amar o próximo como a si mesmo”

E se tudo isso, tão contrário e tão avesso ao espírito da nossa época, tão na contramão do deleite hedonista e do lícito e confortável individualismo contemporâneo, tão frontalmente antagônico ao direito ao egoísmo radical, que é apregoado por toda parte – se tudo isso lhes parecer loucura, não nego que o seja, e deixo-os, enfim, com outro espanhol, Urteaga (1921–2009):

“Na verdade, tudo isso é uma loucura, uma grande loucura. Quando o mundo submerge nas trevas, nós falamos da Luz – que tudo vai invadindo. Quando os homens falam de guerras e perseguições, nós ocupamo-nos da Paz que se avizinha. Quando as pessoas se encolhem, amedrontadas, pensando no presente, nós cantamos a Alegria com os olhos postos no futuro. Quando os egoístas fecham os postigos da alma, acumulando tesouros que apodrecem na terra, nós gritamos: Vale a pena! Vale a pena dar tudo!”

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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