| Foto: Joshua Earle / Unsplash
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Faça o seguinte experimento: abra suas páginas nas redes sociais, ou as últimas “correntes” que você recebeu pelo celular, e veja quantas mensagens e quantas imagens — mais ou menos cafonas — versam sobre “se perdoar”, sobre “se aceitar”, ou que aconselham “abandonar o sentimento de culpa” pois “você fez o que estava ao seu alcance naquele momento”. Tudo bem, não estamos mais nos anos 60, e desde então essa conversa já trocou de pele algumas vezes, indo desde a roupagem mística oriental até o sucesso corporativo ocidental. A aparência pode ter acompanhado a moda, mas isso em pouco alterou a sua essência, ou o ponto central contra o qual ela se coloca: não devemos nos deixar dominar por nenhum “sentimento de culpa”, nem nos deixar levar por esse arraigado hábito cultural da “culpa cristã”. Devemos evitá-la, e nos afastar sempre de quem “cria situações de culpa”. Abaixo a cobrança, fora a repressão!

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E há disponíveis na praça muitas maneiras de transferir para o inconsciente a responsabilidade por atitudes que nós tomamos, segundo pensávamos, de maneira consciente. Podemos começar a afirmar que fazemos certas coisas por conta de nossa infância, por causa de tais e tais traumas, e por conta dos complexos freudianos; agimos assim ou assado por conta das convenções sociais, dos hábitos culturais muito arraigados, ou então motivados por instintos profundos, que querem a preservação da espécie, ou pela opressão da dificuldade econômica. Embora todas essas coisas existam de algum modo, e tenham de fato alguma influência sobre nós, o principal é que os adeptos de cada uma dessas teorias costumam se servir delas para isentar a pessoa de qualquer responsabilidade e, depositando tudo no inconsciente, negam a própria consciência humana, e com ela a liberdade humana. A culpa é sempre de um outro; e o caminho proposto, como terapia ou conscientização ideológica, é apenas se esforçar por acostumar-se com a ideia: não existem o bem e o mal moral, portanto perdoe-se, aceite a situação para ficar em paz — e, logo, entregue-se à libertinagem, a todos os seus desejos e desígnios, seja fiel a si mesmo e tenha as próprias opiniões. Curiosamente, todos passam a se parecer e a proferir opiniões idênticas, resumidas em poucas frases de efeito, e, sobretudo, a fazer um esforço enorme para se entorpecer e para abafar a voz da consciência.

Os adeptos de cada uma dessas teorias costumam se servir delas para isentar a pessoa de qualquer responsabilidade e negam a liberdade humana.

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Para fazer isso, há várias técnicas, que podem inclusive ser combinadas até montarem um gigantesco mecanismo espiritual de letargia e insensibilidade, uma mente à qual nem os melhores argumentos, apelos ou desvelamentos possam comover. Quando a repetição obstinada dos jargões do discurso não bastar, pode-se, como técnica radical, tentar neutralizar toda a sensibilidade moral para o certo e o errado, cometendo propositalmente o maior número possível de transgressões, comprometendo-se, passo a passo, com a confusão, para que desapareça qualquer traço de discernimento do mal, como se matássemos uma faixa de frequências da audição, como ocorre com quem trabalha muitos anos seguidos numa indústria barulhenta. Pode-se ainda afogar ou anestesiar a consciência, servindo-se facilmente de grandes quantidades de álcool, das mais variadas drogas, ou mesmo da maior quantidade possível de confortos e prazeres, do tato, do paladar, do sexo. Essa constância no influxo de sensações manterá amordaçada a consciência, que poderá aos poucos, também, embotar seu discernimento. São clorofórmios morais. E há ainda o caminho da fuga constante, da distração perpétua, técnica mais discreta, às vezes confundida com uma vida dedicada e ocupada, e que pode ser aliada com sucesso às outras duas. Consiste em sempre estar focado em algo exterior, seja trabalho ou diversão — jamais desligar a TV ou abaixar o som, nunca parar —, de modo a sempre desviar dos momentos de solidão e silêncio, em que a atenção seria obrigada a se concentrar no interior, para que nunca seja preciso revisar e avaliar as vezes em que agimos mal... por nossa culpa.

Mas não adianta. No fim das contas, nada disso resolve o problema, que é objetivo e concreto. Quando a noite encurrala nossa visão interior, a consciência culpada fica acordada, com medo de ser conhecida em sua real feiura. Não há nada que desperte tanto pavor quanto uma culpa oculta. Mais cedo ou mais tarde, aqueles erros que negamos, ou que gostaríamos de esquecer, ou que justificamos com uma racionalização, empurrados para baixo do tapete da inconsciência, farão sentir seus efeitos sobre nossa saúde, nossa atitude mental e nossa perspectiva de vida, e mais: nas consequências palpáveis de longo prazo. Em último caso, mesmo que sejamos muito competentes e bem-sucedidos em empurrar para longe a autoria dos nossos atos e em escapar, durante a nossa vida inteira, de assumir o trono de seu centro e a sua unidade, não há como escapar da hora da morte; e, nessa hora derradeira, parece que todo o nosso itinerário é posto, nu, diante dos nossos olhos, sem haver como tergiversar. Tudo isso porque existe, sim, uma moral universal, que está inscrita na natureza humana, e existe, igualmente, um “vírus” nessa mesma natureza, que nos faz querer praticar o mal e nos justificar, enganarmos a nós mesmos para que creiamos não o estar fazendo, e assim não sintamos que foi... nossa culpa.

Na verdade, fugir só complica o problema, que é mais simples do que parece: a culpa é a sensibilidade da consciência por ser responsável por uma ação má. Ela está mais para um sistema de segurança, um alarme e um alerta, do que para um carrasco ou uma punição. É um sintoma da justa responsabilidade por nossas ações, e não é a mesma coisa que o remorso, que é uma “falsa culpa”, um sintoma do nosso orgulho, por termos passado vergonha ou sofrido outras consequências sociais, ou por não termos correspondido às nossas próprias expectativas. O verdadeiro sentimento de culpa é, como a dor física, a fome ou a sede, um indicativo natural (se entendermos por essa palavra a natureza humana inteira, e não só o plano corporal) de que há algo errado e é preciso agir em algum sentido. Em vez de buscarmos, levianamente, uma “paz de espírito”, tentando ignorar nossos erros e mancadas, é preciso pegarmos a trilha que levará (como ensinava Fulton Sheen) à verdadeira paz da alma, profunda e verdadeira, e esse caminho consiste, muito simplesmente, em sermos capazes de dizer: “Foi mesmo tudo minha culpa”.

A culpa está mais para um sistema de segurança, um alarme e um alerta, do que para um carrasco ou uma punição.

E como fazê-lo? Como não ser arrastado por esse empuxo da mentira, que nos tendencia a escapar da responsabilidade, lançando-a sobre quem estiver mais perto? Desde os tempos mais remotos, os filósofos e mestres espirituais sempre recomendaram uma prática diária, geralmente noturna, de relembrar as ações que empreendemos naquele dia, e de nos examinarmos interiormente, quanto às nossas verdadeiras intenções, motivações e desejos: um exame de consciência. O filósofo Pitágoras, no século VI antes de Cristo, preceituava aos seus discípulos a avaliação diária das ações; assim também Platão, e depois deles, em Roma, os estoicos, como Sêneca e o imperador Marco Aurélio. No Novo Testamento, o Apóstolo Paulo aconselha, mais de uma vez, que cada um examine a si próprio e, desde então, em toda a tradição cristã — com destaque especial para o autor das Confissões, Santo Agostinho, e mais tarde para Santo Inácio de Loyola, que o sistematizou —, o exame de consciência é uma unanimidade no conselho dos diretores espirituais.

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Trata-se, num primeiro momento, de trazer à superfície da consciência, para serem examinados, todos os gestos, pensamentos e palavras daquele dia, para ver em que medida estão em conformidade com a lei moral, com nossos propósitos, responsabilidades, e com nosso ideal de vida. É um relato sincero que a pessoa faz de suas próprias ações e intenções, trazendo à tona as falhas ocultas e buscando descobrir as ervas daninhas que estão sufocando o crescimento do que é bom, daquilo em nós que desejaríamos que crescesse. Após o exame, segue-se uma resolução, um propósito renovado de se corrigir, no dia seguinte, naquilo que não estiver bem. Mas ele pode, também, tornar-se mais específico, e focar na identificação e na resolução de um único defeito nosso de cada vez. É o que os autores chamam de “defeito dominante”: aquele nosso defeito que está ligado a uma característica muito nossa, muito própria de nossa individualidade, e que acaba sendo o princípio de quase todos os nossos outros defeitos mais superficiais. Trabalhar sobre esse defeito dominante com empenho e alegria, em vez de fingir que ele não existe ou de apenas ficar se lamentando de forma autocomplacente, pode fazer com que ele revele sua outra faceta, que é ser a nossa maior qualidade. O que importa na avaliação de nossos atos conforme o ideal não são as falhas, mas sim o ideal. O foco não deve estar naquilo que perdemos, mas na esperança do que podemos ganhar amanhã.

Em artigo recente, falei sobre a cilada que pode existir na ideia de “ser você mesmo”, e como um eu fraco, superficial, deve dar lugar a um eu ainda mais verdadeiro, lapidado, esculpido com diligência em nossa natureza bruta. E assim como a máxima “torna-te quem tu és”, a outra, “conheça-se a si mesmo”, pede cuidado. É importante ter claro que esse autoexame não é um olhar egocêntrico para si mesmo, como um Narciso, que se perderia tentando olhar para o próprio olho que vê. Não, trata-se justamente de sair de si mesmo, de defrontar-se com a concreta realidade que nos abarca e inclui, de se desnudar diante da Verdade, que não é apenas justa, mas também misericordiosa, e se digna a nos fazer saber, sobre nós próprios, mais do que sabíamos. O valor dessa meditação não está em que simplesmente assistamos ao filme de nossa memória; está em nos rendermos, a partir dele, à história objetiva de tudo que se passou, dentro e fora de nós, que não pertence somente ao plano subjetivo, mas, transcendendo-o, pertence ao plano do Real e do Verdadeiro. É por isso que “ser sincero” não basta para evitar a mentira: é sem dúvida um pré-requisito para qualquer coisa nesse sentido, mas é a partir dessa nossa honesta disposição que vamos avançar para terrenos desconhecidos a respeito de nós mesmos, e teremos, com coragem, de assumir nossas faltas e reconhecer nossos defeitos.

Toda negação da culpa mantém a pessoa fora dos domínios do amor e, induzindo à hipocrisia, impede a cura.

A expressão, o dizer em voz alta a nossa culpa, assumindo-a para nós mesmos, para o próximo ou para o próprio Deus, faz com que, de algum modo, ela saia de nós, vá para fora e se distancie e, a essa distância, desidentificada de nós, possamos olhar para ela, ver sua verdadeira face, e assim, rejeitá-la. É o primeiro passo para que nós a deixemos para trás, e com ela boa parte da tristeza e do sofrimento embutidos. Assim podemos nos mover na direção do verdadeiro perdão, da reparação, do genuíno aperfeiçoamento pessoal.

Toda negação da culpa mantém a pessoa fora dos domínios do amor e, induzindo à hipocrisia, impede a cura. O verdadeiro exame de consciência nunca induz ao desespero, mas sempre à esperança. Eu nem precisaria dizer que não nego a utilidade e a validade das terapias e do trabalho dos psicólogos. Mas alguns deles, ainda que consigam trazer paz de espírito aos seus pacientes, pela aplicação eficiente de seus métodos, não fazem mais que elaborar uma válvula de escape para a pressão mental. Ajudam a administrar e a aliviar os sintomas, mas não saram a sua fonte. A única coisa que pode nos dar a cura é uma consciência aberta, para que, manifestada a causa dos sintomas numa verdadeira confissão, o medo, a vergonha e a angústia sejam dissipados pela luz que entra. O corajoso exame diário de consciência não apenas alivia a nossa tristeza e sara a nossa subjetividade. Ele nos instaura novamente na realidade, e é a porta para uma segunda chance concreta, em que pedimos perdão aos outros e nos transformamos. Mas é ainda mais: pode nos conduzir a uma segunda chance ainda mais concreta, em que somos absolutamente perdoados, e transformados. Ele nos põe na trilha para que possamos ser restaurados, se assim o desejarmos, no próprio corpo místico do Amor.

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