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Como eram os cristãos da Península Ibérica antes da Reconquista?
| Foto: wikimedia commons

Só o título “Reconquista Cristã” já é sinônimo de treta: é briga entre cristãos e muçulmanos, e briga entre historiadores. A historiografia tradicional fala que a Reconquista foi tipo uma cruzada da cristandade contra o islã na Península Ibérica. Nesse sentido, na cabeça dos medievais, seria uma luta entre Cristo e Maomé, e os dois lados seriam instrumentos de seus deuses nessa batalha divinamente humana.

Por outro lado, alguns historiadores revisionistas discordam do termo “Reconquista Cristã”, porque aqueles reinos que participaram da Reconquista não tinham se formado antes para reconquistarem nada. De qualquer forma, os europeus cristãos eram os antigos donos dali; e os muçulmanos, invasores. Só que, por mais que os cristãos gritassem “Jesus é o senhor” e os muçulmanos “Alahu Akbar”, não eram anjos cristãos e muçulmanos que perdiam os braços, pernas e cabeças, não. Como vimos na coluna anterior, até mãe e filho lutaram um contra o outro em uma batalha épica (e esquisita) pelo futuro de Portugal.

Portanto discutir se foi Reconquista Cristã ou não é irrelevante quando se olha o quadro geral, porque um fato é evidente: cristãos e muçulmanos continuaram como povos e culturas distintas durante todos os séculos, e era pela violência que a paz se estabelecia pelos quase 800 anos no mesmo lugar. Mesmo a grande parte dos cristãos que se converteu ao islamismo e se arabizou ao longo dos séculos fez isso por necessidade, e não por uma escolha consciente de mudança de fé e cultura. Eles sabiam que a conversão acabaria com a discriminação e com os impostos elevados por serem cristãos, além de terem mais oportunidades na sociedade muçulmana.

Conforme mostra a obra Christians in Al-Andalus 711-1000 [Cristãos em Al-Andalus], “conversão não parecia ser uma questão de consciência individual, mas de integração social. Ao se converterem, eles se faziam aceitáveis para os muçulmanos na sua vizinhança.” Portanto, eles se convertiam à cultura e à fé islâmica para escaparem da discriminação social e econômica, não por uma simples escolha pessoal de uma nova denominação religiosa e cultural que passaram a apreciar.

Muitos cristãos se identificavam como descendentes dos visigodos e colocavam os muçulmanos como invasores que destruíram seus ancestrais e precisavam ser expulsos por isso

Outras crônicas nos ajudam a entender melhor a mente dos cristãos em relação aos mouros: a Crônica Profética, escrita na metade do século IX, mostra como muitos cristãos se identificavam como descendentes dos visigodos, tendo uma relação histórica com eles, e colocavam os muçulmanos como invasores que destruíram seus ancestrais e precisavam ser expulsos por isso. É possível notar uma grande simetria entre a Crônica Profética e as Crônicas de 754, que encaravam os muçulmanos como inimigos invasores de fato.

De acordo com a Crônica Profética, os visigodos eram cristãos; e aqueles europeus continuavam sendo cristãos. Na visão deles, o cristianismo era a corrente que ligava aqueles europeus a seus ancestrais visigodos. E quem gostava disso era a igreja e as elites europeias que viam esse fervor como um grande combustível para reconquistarem seu poder. Inclusive o autor das Crônicas Proféticas cita profecias bíblicas aplicando-as diretamente à expulsão final dos mouros da Península Ibérica que haveria de acontecer no futuro. É claro que isso não impedia que cristãos e mouros se aliassem em várias ocasiões para derrotar outros mouros e cristãos rivais: nada mais humano do que o velho pragmatismo político. Não era um valor moral e ideológico transcendendo obstáculos culturais e religiosos. Era a mais pura e simples conveniência política, que descarrilhava em mais violência para acalmar os ânimos e gerar a coexistência.

Por isso, o professor Richard Fletcher resume muito bem que a Espanha Mourisca era mais frequentemente uma terra de “tumulto do que de tranquilidade” e que “a história religiosa da Península Ibérica na Idade Média pode ser resumida, por uma perspectiva, como a falha intencional e persistente de duas fés e culturas de fazerem qualquer tentativa de se entender mutuamente.” E conclui dizendo que “o tratamento dos cristãos em Al-Andalus por seus governantes islâmicos é um prenúncio do qual os muçulmanos teriam sob os reinos cristãos.” Todos esses maus tratos e discriminação deixaram os milhões de cristãos comuns com “a cara quente” e esse fervor de meter o pé nas nádegas dos mouros só foi aumentando por lá. Eles queriam seu território de volta e, senhoras e senhores, poucos chutaram tantos traseiros sarracenos em tão pouco tempo quanto ele, o flagelo de Alá, D. Afonso Henriques.

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