| Foto: wikimedia commons
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É claro que não foram os europeus que inventaram a escravidão. Ela é quase tão antiga quanto a própria história humana. Todas as culturas, em todos os continentes e em todos os milênios já escravizaram ou foram escravizadas em alguma medida: egípcios, persas, babilônios, gregos, romanos, árabes, ameríndios. Porém, a mais recente e a mais bem documentada de todas foi a perpetrada pelos europeus em parceria com seus aliados africanos.

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No artigo anterior, o primeiro desta série, eu expliquei como esse comércio começou: as cartas trocadas entre os reinos de Portugal e o Reino do Congo estão entre as fontes primárias mais relevantes que provam essa interação recíproca entre os dois reinos. E assim ela continuou por muito tempo na África, pois passava de pai para filho: primeiro com o João I (que adotou o nome português após ser batizado) e depois com seu filho Afonso I. Curiosamente, essas cartas descreviam assuntos corriqueiros, e que mostram o bom relacionamento que existia entre as duas coroas: pedidos de pedreiros, padres, roupas, armas, farinha, vinho, viagens da realeza do Congo até Lisboa para aprenderem a ciência e costumes europeus, como lemos na carta de 17 de maio de 1517 catalogadas na Monumenta Missionaria Africana, documentos primários disponíveis na Torre do Tombo em Lisboa.

Nesse ínterim, o comércio de escravos já tinha se iniciado: vemos isso através da carta de 5 de março de 1516, na qual o rei congolês comunicava o envio de 400 “peças” ao rei português. Até aí, tudo bem: se analisarmos as cartas diacronicamente, nada parecia incomodar esse relacionamento e tudo fluia na mais perfeita ordem no ponto de visto dos dois reinos. Contudo, 10 anos depois, vemos uma carta reveladora enviada pelo velho aliado dos portugueses, Afonso I. Na carta de 6 de julho de 1526 o rei congolês se queixa ao Rei D. João III que os portugueses no Congo estavam fazendo comércio “paralelo” com outros nobres e comerciantes do reino, e que por isso muitos 'vassalos que eles tinham sob sua obediência começavam a se rebelar contra o rei', causando desordens no reino, e que muitos "homens livres estavam sendo capturados e vendidos" como escravos. Ele concluiu a carta pedindo que o Rei português tome medidas para acabar com esse comércio paralelo.

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Ao lermos essa carta podemos testemunhar o protagonismo africano no comércio de escravos sendo disputado não só pelo monarca africano, mas por outros nobres mercadores que também tinham seus interesses em controlar uma fatia daquele comércio, por menor que ela fosse. Os nobres africanos viam nos europeus e sua influência uma oportunidade única de alcançarem um poder político que eles nunca podiam imaginar.

O monarca africano não era apenas um fantoche nas mãos portuguesas, ele era protagonista nesse comércio e deixou isso muito claro nas suas exigências

Portanto, para não correr riscos de ter nobres poderosos disputando sua autoridade, o rei Afonso pede a D. João III que ordene aos portugueses que parem de negociar com esses nobres. Poucos meses depois, em 18 de outubro de 1526, ele envia outra carta pedindo físicos, médicos e cirurgiões e aproveita para colocar regras sobre como o comércio de escravos deveria acontecer em seu território: “Por lei, todo homem branco que em nossos reinos estiver e comprar peças de qualquer maneira que seja, que primeiro se dirijam aos três fidalgos oficiais de nossa corte que confiamos: Dom Pedro Manjpunzo, Dom Manuel Manjssaba e Gonçalo Pirez, que verão as ditas peças.” O monarca africano não era apenas um fantoche nas mãos portuguesas, ele era protagonista nesse comércio e deixou isso muito claro nas suas exigências à coroa portuguesa.

Entretanto, as cartas de Afonso nos mostram que outro reino rival crescia nesse comércio paralelo com os portugueses: Angola, que na época envolvia os territórios dos reinos do Ndongo e Matamba, estava fornecendo uma quantidade de escravos que deixou o monarca do Congo incomodado e preocupado. Ele próprio sentira o poder que aquela cooperação trouxe para si e para o seu reino: uma vantagem militar e tecnológica que fazia seu reino se destacar em meio às demais tribos da África Subsaariana. Portanto, para evitar que seus arqui-inimigos angolanos crescessem e representassem risco ao seu poder, Afonso I estaria disposto a brigar para que o comércio das “peças” não saísse das suas mãos. Estava disposto até mesmo a invadir o território dos angolanos, destruí-los e escravizá-los para ter o controle total desse comércio.

Referências Bibliográficas:

BRÁSIO, António. Monumenta Missionaria Africana. Volume 1. África Ocidental (1471-1531). Agência Geral do Ultramar, 1952.

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LOVEJOY, P. E. (2011). Transformations in slavery: a history of slavery in Africa (Vol. 117). Cambridge University Press.