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Alexandre de Moraes, presidente do TSE, discursa na inauguração do Ciedde.
Alexandre de Moraes, presidente do TSE, discursa na inauguração do Ciedde.| Foto: Luiz Roberto/Secom/TSE

O “Ministério da Verdade” instituído em conjunto por Executivo e Judiciário no Brasil acaba de ganhar mais uma repartição. O Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (Ciedde) funcionará na sede do Tribunal Superior Eleitoral, com membros do Ministério da Justiça, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), e foi oficialmente inaugurado na última terça-feira, dia 12, com a fanfarra habitual, os clichês habituais e as ameaças habituais. O presidente do TSE, Alexandre de Moraes, promete um “salto de eficiência” com o trabalho do Ciedde, e é aí que está o grande problema para a democracia – a democracia real, não aquela que o tal novo centro se propõe a defender.

O principal objetivo do centro é botar em prática as novas resoluções do TSE a respeito da campanha eleitoral na internet, e que transformam em regra vários dispositivos previstos no PL 2630/20, apelidado “PL das Fake News” ou “PL da Censura”. Como até agora os congressistas não decidiram o que fazer com o texto, que está parado, o TSE resolveu, por conta própria, colocar em prática o que o Legislativo teima em não aprovar – na prática, interferindo mais uma vez nos atributos de outros poderes, legislando no lugar de quem foi escolhido pelo povo para esse papel. E, se é verdade que em alguns aspectos é preciso haver uma fiscalização atenta e uma resposta rápida, como no caso dos chamados deepfakes, em outros o risco para a liberdade de expressão na internet só cresceu.

A lei define o trâmite para que publicações sejam removidas, mas cada vez mais órgãos e entidades querem o poder de atropelar esse trâmite e decidir ou que fica ou sai do ar, ou pelo menos o poder de dizer o que é “desinformação”

Um caso emblemático é o uso recorrente do conceito de “desinformação”, que ninguém, muito menos o TSE, pretende explicar em detalhes, deixando a expressão da forma mais ampla possível para, assim, poder nela incluir tudo o que, no fim das contas, a autoridade eleitoral assim o desejar. E isso vale inclusive para informações indubitavelmente verdadeiras, como no célebre caso da “desordem informacional” invocada pelo ex-ministro do TSE e do STF Ricardo Lewandowski para, durante a campanha de 2022, banir um vídeo que não trazia uma única mentira.

Lewandowski, agora ministro da Justiça, também esteve na inauguração do Ciedde, e afirmou que o novo órgão não seria “censório”. Promessa difícil de aceitar, especialmente à luz de outra afirmação, a do presidente da Anatel, Carlos Baigorri. “A Anatel irá usar a plenitude de seu poder de polícia junto às empresas de comunicações para retirar do ar todos os sites e aplicativos que estejam atentando contra a democracia por meio da desinformação e do uso de inteligência artificial para deepfakes”, afirmou, atribuindo à agência os mesmos superpoderes que a Justiça Eleitoral já se havia concedido no passado e que reforçou recentemente, com aval do STF.

O Marco Civil da Internet afirma, em seu artigo 2.º, que “a disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão”; em seu artigo 3.º, diz que “a disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: I – garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento”. A mesma lei ainda prevê, no seu artigo 19, que a remoção de conteúdos depende de decisão judicial específica. Evidentemente, há uma série de nuances a considerar. Ninguém questiona que uma plataforma de mídia social não precisa esperar por uma decisão judicial para remover por conta própria publicações claramente criminosas, contendo, por exemplo, racismo ou pornografia infantil. Mas não são esses tipos de conteúdo que estão em jogo aqui: estamos falando da crítica a candidatos ou partidos, de questionamentos de toda ordem sobre o processo eleitoral e de todo tipo de afirmação “desagradável” que possa ser enquadrada como “desinformação” ou “discurso de ódio”.

Eis aqui o problema: a lei define o trâmite para que essas publicações sejam removidas, mas cada vez mais órgãos e entidades querem o poder de atropelar esse trâmite e decidir ou que fica ou sai do ar, ou pelo menos o poder de dizer o que é “desinformação”, fazendo letra morta do Marco Civil da Internet e colocando-se acima dele. E usarão tais poderes, inclusive, com a conivência (no mínimo) de instituições que deveriam estar cerrando fileiras pelo respeito à lei, e não por sua revogação tácita, como é o caso da OAB e do Ministério Público, incapazes de perceber que o Ciedde não é uma iniciativa louvável desde que mantido dentro de certos limites, mas algo que nasce torto desde sua concepção e ao qual ambas as instituições estão emprestando credibilidade.

O Brasil inteiro já viu como a campanha de 2022 aconteceu sem um “Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia”: censura prévia, instituição de tabus sobre vários temas, proibição da menção a certas posições e amizades de um candidato, direitos de resposta mentirosos sendo veiculados com a bênção da autoridade eleitoral, e tudo claramente em benefício de um candidato e prejuízo de outro. O novo órgão não vem para resolver este problema, mas para intensificá-lo, agregando ainda mais atores institucionais ao processo de sufocamento da liberdade de expressão em curso já há alguns anos.

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