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Ex-procurador e ex-deputado federal Deltan Dallagnol
Ex-procurador e ex-deputado federal Deltan Dallagnol| Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

Apesar de todo o esforço de parte do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso para desmontar e desgastar a Lava Jato, a maioria da sociedade compreende que a maior operação anticorrupção da história do país foi positiva. Essa é a opinião de Deltan Dallagnol, ex-chefe da força-tarefa de Curitiba, relatada em entrevista à Gazeta do Povo na semana em que a primeira fase da operação completa 10 anos.

“Ela abriu os olhos da sociedade brasileira. Pela primeira vez na história, a Lava Jato mostrou que o monstro sangra. O monstro do abuso. O poder da corrupção política sangra”, diz o ex-procurador e ex-deputado federal (Novo-PR).

Nesse período, um dos legados da operação, em sua visão, foi provar que é possível vencer a impunidade, que sempre imperou na política brasileira para proteger os poderosos corruptos. Mas uma nova operação assim não será possível, para Dallagnol, enquanto Luiz Inácio Lula da Silva ocupar a Presidência da República. Ele foi condenado por corrupção, mas teve o processo anulado pelo Supremo Tribunal Federal.

“Não adianta você querer combater a corrupção com Lula no poder. Quem Lula vai escolher como ministro do STF? Gente que não vai apoiar a prisão em segunda instância, que não vai apoiar o fim do foro privilegiado. Sem um bom presidente, não teremos bons ministros do STF que combatam a corrupção”, diz.

Deltan Dallagnol deixou o Ministério Público Federal em 2021, num momento de ocaso da operação. O procurador-geral da República à época, Augusto Aras, era um inimigo declarado dos métodos da Lava Jato. Além de acabar com as forças-tarefa, fez uma devassa nas investigações que corriam em Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo. No comando do Conselho Nacional do Ministério Público, deixou correr processos disciplinares movidos por políticos investigados para punir os procuradores, sobretudo Dallagnol, sancionado com advertência e censura.

Candidato mais votado no Paraná para uma cadeira na Câmara dos Deputados em 2022, Dallagnol não ficou um ano no mandato. Foi cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sob a acusação de ter deixado o MPF para escapar de processos disciplinares – que, no entanto, já não existiam. No Tribunal de Contas da União (TCU), foi condenado a pagar pelas diárias que os colegas procuradores recebiam para ir a Curitiba, e no Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi obrigado a indenizar Lula por expor à imprensa, na forma de um PowerPoint, a denúncia do caso triplex.

Nesta entrevista, Dallagnol aponta que o retrocesso no combate à corrupção parte principalmente do STF, com decisões mal fundamentadas, em sua visão, que têm apenas uma “conta de chegada”: livrar novamente os poderosos de responsabilização por corrupção, como sempre ocorreu na história do Brasil.

Com isso, para Dallagnol, a Corte manda uma mensagem de que o risco de corromper é baixo, o que é reforçado pela anulação da condenação de Lula e sua volta à Presidência. “A mensagem é: ‘roube pouco e você vai para a cadeia, roube muito e você vira presidente da República’”, resume o ex-procurador. Além disso, ele avalia que o STF comete abusos no inquérito das fake news e nos processos sobre o 8 de janeiro de 2023.

Confira a entrevista completa com Deltan Dallagnol:

Qual é o significado da Lava jato na história do Brasil? O país mudou com a operação?

Deltan Dallagnol: Na Lava Jato, pela primeira vez na história, nós fomos capazes de colocar os poderosos do Brasil debaixo da lei. Ao longo de 500 anos, nós vimos os poderosos roubarem o Brasil, aquilo que alguns pesquisadores chamam de elites extrativistas. É o que dizem Daron Acemoglu e James Robinson no livro “Por que as nações fracassam”. Parte das elites política e econômica se uniram para roubar o Brasil, para roubar a população brasileira e sempre articularam a própria impunidade, que sempre foi a cereja do bolo.

Quem tem o poder [no Brasil] não rouba para ser punido, rouba para punir. O padre António Vieira já falava isso em 1650, que o verdadeiro ladrão do Brasil era o governante. Diferentemente do ladrão de galinhas que era enforcado, o governante rouba e manda enforcar. Temos um complexo de vira-lata de 500 anos, de país de bananeiras, em que alguns poucos poderosos fazem o que querem e subjugam toda uma nação.

Mas, pela primeira vez na história, nós conseguimos fazer a lei valer para os poderosos. Nós vencemos a sina da carteirada no Brasil, do país do ‘você sabe com quem você está falando?’. Pela primeira vez em história, nós vimos a lei realmente valer no nosso país.

Essa é a mensagem central da Lava Jato, do marco do império da lei, do Estado de Direito, e que precisa ser resgatado mais do que nunca. Não só porque o combate à corrupção passou a ser destruído, porque houve uma reação, mas porque nós vimos outros tipos de abusos de poderosos emergirem desde a Lava Jato, abusos praticados especialmente pelo Supremo Tribunal Federal.

Essa é a grande nota comum entre os abusos que nós vemos hoje, praticados na mais alta Corte do Brasil, e a corrupção política e empresarial da alto escalão que nós vimos na Lava Jato. A nota em comum são os abusos praticados impunemente pelos donos do poder. Nós precisamos recuperar o espírito central da Lava Jato.

Uma pesquisa recente, do instituto Quaest*, sugere que hoje a sociedade está dividida em relação à Lava Jato. 50% dos entrevistados acham que ela fez mais bem ao país, mas para 28%, fez mais mal. 49% acham que ela ajudou a combater a corrupção, 37% acham que não. 40% aprovam o trabalho de Moro, mas 44% desaprovam. O apoio já não foi maior? A dura reação do mundo político e do STF contra a operação fez as pessoas desacreditarem na operação e perdessem a esperança de que é possível acabar com esse mal no país?

Deltan Dallagnol: A Lava Jato nunca trabalhou com o objetivo de conseguir apoio da sociedade. Esse era apenas um instrumento para que a Lava Jato pudesse avançar, para blindar a Lava Jato da reação da classe política. Não era um valor em si mesmo para a Lava Jato. Foi consequência de um trabalho feito, que faríamos independentemente de apoio.

Qual era o objetivo? Lutar por integridade, pelo respeito ao dinheiro público, pelo respeito aos brasileiros, lutar para que as pessoas não sofressem os danos que a corrupção gera no nosso país, danos em falta de saúde, educação, saneamento, em segurança. A corrupção é uma âncora que segura e atrasa o Brasil. O combate à corrupção é o único o caminho que temos para um país melhor.

E esse trabalho, feito de modo consistente, reflete, sim, no amplo apoio da sociedade. Assim que a Lava Jato encerrou, uma pesquisa da Exame/Ideia** apontou que 80% da sociedade apoiava a Lava Jato. E mesmo hoje, se você se debruçar sobre essa pesquisa da Quaest, verá que entre aquelas pessoas que realmente acompanhavam a operação, 64% entendem que ela fez mais bem do que mal, 67% dizem que ela ajudou a combater a corrupção e 59% acham que ela acabou por causa da ação dos políticos.

Quando olhamos para o cenário atual, apesar de todas as narrativas do governo e do STF – de pessoas como Dias Toffoli, que dão decisões de caráter político, dizendo que a Lava Jato foi um "pau de arara do século 21", sem apresentar uma prova, um dado concreto, um caso em que isso aconteceu – apesar de tudo isso, a sociedade segue compreendendo o significado da Lava Jato, o que ela fez e que foi boa para o Brasil.

A pesquisa apontou, na amostra geral, que para 74% dos entrevistados, o STF incentiva a corrupção ao cancelar punições das empresas. Como você descreve a oposição que existe hoje à Lava Jato?

Deltan Dallagnol: No Congresso se faz a política pública contra a corrupção. É lá que se acabou e se mudou a lei de improbidade administrativa, derrubando mais de 30 ações de improbidade que buscavam recuperar mais de 40 bilhões de reais para os cofres públicos, especialmente de partidos políticos. É lá que se mudou a lei da delação premiada e as regras de prisão preventiva, tornando mais difícil fazer acordos de delação premiada. É lá que podem avançar medidas concretas contra a corrupção, como aquelas 10 medidas que a gente propôs.

Além disso, nós vimos o Supremo Tribunal Federal passar a mudar regras do jogo. Além de mandar os processos de corrupção para a Justiça Eleitoral, aplicou essa regra para o passado, permitindo a anulação de condenações em série. É lá que se criou uma regra, que não existe em nenhum lugar do mundo, dizendo que o réu delatado deveria falar depois do réu delator, também aplicando para o passado e anulando outra série de casos criminais.

É lá que se acabou com a prisão em segunda instância, jogando para as calendas gregas [data inexistente] a possibilidade de punição efetiva de pessoas condenadas por corrupção no Brasil. Basta ver Sérgio Cabral, condenado a mais de 400 anos de prisão, que agora vive fazendo rolê no Rio de Janeiro, livre, leve e solto, apesar das grandes condenações, por culpa do STF. Condenações vêm sendo anuladas no STF sem nenhum fundamento concreto que justifique.

Recentemente, o ministro Dias Toffoli suspendeu os pagamentos dos acordos de leniência da Odebrecht e da J&F, dizendo que existiria um suposta "coação". Quando são empresas defendidas por um exército de advogados, os mais bem pagos do país. O argumento parece uma piada de mau gosto. E mais: estende esse argumento para a J&F, que nem foi um caso tratado em Curitiba. E em favor de uma empresa da qual a esposa dele mesmo é advogada, não nesse caso, mas em outro, numa situação evidente de conflito de interesses.

Vimos ainda o ministro Dias Toffoli anular as provas da Odebrecht, alegando que não existiria uma cooperação internacional formalizada. Depois de muita pressão da imprensa, o Ministério da Justiça surge confirmando que existia essa cooperação internacional formalizada. E ele simplesmente não volta atrás, mantém a anulação.

Ainda vimos Dias Toffoli decidindo como juiz universal. Numa reclamação oferecida pelo Lula, que tinha objetivo de tratar um assunto muito específico, ele está expandindo para tratar todos os assuntos da Lava Jato. Agora, anulou casos relacionados ao Beto Richa no Paraná, inclusive operações do Ministério Público estadual tocadas na Justiça estadual, alegando um suposto conluio com juiz que não só nunca existiu, mas não tinha nem como acontecer na Justiça Estadual e no Ministério Público estadual. Ou seja, as medidas de anulação não têm nem correspondência.

O que a gente vê hoje é o imenso desmonte da Lava Jato. É difícil a gente buscar referências para comparar na realidade, mas talvez a gente possa comparar com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Em primeiro lugar, porque essa invasão foi ato absolutamente injusto, injustificado, a título de pretexto se invadiu a Ucrânia. Em segundo lugar, essa invasão tem um custo caro, ela está matando uma série de pessoas. E a destruição do combate à corrupção, como a população bem percebeu, fomenta a corrupção, o que vai matar as pessoas em todo o Brasil.

Em terceiro lugar, nós vemos que essa invasão não é contestada por muitos países, porque a Rússia é muito poderosa. Então várias pessoas se aproximam da Rússia e não contestam a absurda injustiça que está fazendo. A gente vê o mesmo fenômeno em relação ao STF. Muitas pessoas não criticam o STF pelos absurdos que está cometendo por receio de ficar mal com o STF, mesmo por medo de retaliação.

A Lava Jato começou a ser demolida em 2019. Para você, o governo Bolsonaro teve participação nisso?

Deltan Dallagnol: Bolsonaro cometeu um imenso erro ao colocar Augusto Aras como chefe da Procuradoria-Geral da República, que desmontou a força-tarefa da Lava Jato, extinguindo esse importante órgão no começo de 2021 e acabando precocemente com uma série de investigações e processos que poderiam levar à recuperação de milhões, senão bilhões de reais aos cofres públicos. Mas o palco central de todo o retrocesso no combate à corrupção foi o Poder Legislativo e o Supremo Tribunal Federal.

Que consequências advêm desse desmonte da Operação Lava Jato?

Deltan Dallagnol: Existem três bastante relevantes. A primeira é que a destruição das condenações manda uma mensagem de incentivo à prática de corrupção, uma mensagem de impunidade. Estudos de teoria econômica do crime dizem que a pessoa pratica e se sente mais incentivada a praticar os crimes quando o benefício é maior do que o risco. E nós vemos uma diminuição drástica do risco com a destruição das condenações.

Em segundo lugar, está em curso uma destruição dos instrumentos de combate à corrupção. Mudaram a lei da colaboração premiada, acabaram com a prisão em segunda instância e com a competência da Justiça Federal para processar os casos de corrupção política, enviados para a Justiça Eleitoral, que nunca mandou ninguém para a cadeia. Como a imprensa noticiou nesta semana, lá agora há risco de prescrição dos casos de Eduardo Cunha e de Sérgio Cabral. Então, existe uma destruição dos instrumentos, que mais uma vez baixa a percepção de risco.

E, além disso, vimos ascensão à Presidência da República de uma pessoa multicondenada na Lava Jato, em três instâncias, por corrupção e lavagem de dinheiro. Faço a ressalva de que Lula, como qualquer pessoa acusada por crime que teve seu processo anulado, é inocente, presumido inocente até a prova em contrário, segundo a Constituição. Mas existiram três condenações, que nunca foram desfeitas no mérito, e todo mundo sabe disso.

Mas nós sabemos, a partir de estudos de psicologia comportamental, que o mau exemplo vem de cima, que quando você vê uma pessoa multicondenada conseguir afastar as consequências do seu crime e alcançar a posição de presidente da República, a mensagem é: ‘roube pouco e você vai para a cadeia, roube muito e você vira presidente da República’.

A corrupção sistêmica descoberta pela Lava Jato pode estar sendo reerguida?

Quando alguém consegue ascender à Presidência, apesar de tudo que fez, segundo as condenações, essa pessoa se sente altamente livre para fazer o que quiser. Agora ele se sente com um salvo-conduto, inclusive para colocar em posições de relevância pessoas investigadas em esquemas e corrupção, como é o caso do ministro das Comunicações [Juscelino Filho, que segundo a PF integrava organização criminosa que desviou recursos da Codevasf].

Ele se sente à vontade para derrubar a lei das estatais, que impediu o aparelhamento delas, e colocar cupinchas, companheiros, políticos que evidentemente não vão fazer um bom trabalho, porque não têm conhecimento técnico nem experiência para dirigir uma estatal. A consequência a gente está vendo nesta semana, com a Petrobras perdendo R$ 50 bilhões em um dia, por conta de decisões desastrosas, e a Vale, que é privada, perdendo 50 bilhões de reais em valor de mercado, por interferência política na escolha do CEO.

Vemos mais uma vez aquilo que a gente cansou de ver na Lava Jato, que é uma promiscuidade entre o poder político e o poder econômico para direcionar empresas de negócios e estatais para benefícios político-partidários e não necessariamente benefícios para a sociedade.

Ao mesmo tempo em que o STF desmonta a Lava Jato, investiga e processa pessoas comuns, sob a acusação de que fariam parte de uma suposta organização criminosa para ofender e ameaçar autoridades, no caso do inquérito das fake news, e de tentar um golpe no 8 de janeiro de 2023, caso da Operação Lesa Pátria. Como você compara esses casos?

Deltan Dallagnol: O que existe em comum entre a Lava Jato e a Lesa Pátria é que a Lava Jato combateu o mesmo tipo de abuso de poder que o Supremo Tribunal Federal está praticando agora. A Lava Jato combateu poderosos, que roubavam o país, praticavam corrupção e saíam impunes. E hoje nós precisamos combater abusos praticados pelo Supremo Tribunal Federal por pessoas poderosas, mais uma vez, e que estão praticando abusos impunemente.

A comparação acaba aí. Na Lava Jato, nunca houve reclamação de falta de acesso aos autos por advogados. Na questão da competência, o STF está mantendo todos esses casos sem ter uma pessoa com foro privilegiado, uma violação absurda de competência.

Na Lava jato existia justificativa legal para a competência, casos de conexão, em que isso foi revisado e confirmado por três instâncias independentes. Na Lava Jato, existia a revisão por três instâncias. No Supremo, ninguém revisa e não existe para quem recorrer. São aplicadas penas desproporcionais para crimes impossíveis. Nunca ninguém alegou isso em relação à Lava Jato. O que era desproporcional na Lava Jato era a gravidade dos crimes. E as penas eram até abaixo daquilo que a gente esperava, razão pela qual a gente recorreu de 45 condenações.

As prisões preventivas também não se comparam. A Lava Jato nunca prendeu pessoas por mais de 40 dias, que é o prazo legal, sem acusação criminal. O STF está prendendo por seis meses [sem denúncia]. Se alguém fizesse isso na Lava Jato, ia sofrer um processo disciplinar e ser punido, expulso do Ministério Público, do Judiciário. Mas o Supremo faz isso de modo impune.

E não existia prisão para forçar delação. A imensa maioria das delações da Lava Jato foram feitas com pessoas soltas, que não estavam presas. Nós temos números para demonstrar isso. E as pessoas não ficavam presas sem razão. Havia revisão por três instâncias, com razões concretas, demonstradas em habeas corpus, em instrumentos infindáveis para os réus contestarem, e isso pelos advogados mais bem pagos do país.

Agora, a gente está falando de pessoas simples, presas por meses sem os requisitos da prisão preventiva. Porque se não ofereceu acusação criminal, significa que não podia ter prendido, porque o mesmo requisito para a prisão preventiva é o requisito da acusação, que é a prova de existência do crime e indícios de autoria.

Mais ainda, na Lava Lato, você não tinha um juiz que é vítima. Quando o juiz é vítima, há causa de impedimento, demonstra uma evidente falta de imparcialidade. Nós não tínhamos juiz vítima dos crimes da Lava Jato. Então, quando você olha para Lava Jato e quando olha para o Supremo Tribunal Federal, o modo de gestão de casos é completamente diferente.

Não existe comparação, a não ser o fato de que a Lava Jato combateu abuso de donos do poder como aqueles abusos que hoje o STF está praticando e que precisam ser combatidos.

Como você avalia a Vaza Jato, que também contribuiu para a destruição da Lava Jato?

Deltan Dallagnol: A Vaza Jato foi uma grande fofoca querendo bancar de escândalo. Foi uma série de fofocas distorcidas, deturpadas, sobre um material roubado. A Polícia Federal atestou que era impossível comprovar a integridade, ainda mais porque o material vinha de estelionatários, de pessoas investigadas com uma larga ficha criminal.

O único caso da Vaza Jato submetido a uma investigação formal envolvia a alegação de que a Lava Jato teria investigado indevidamente ministros do Superior Tribunal de Justiça. E era fácil investigar, porque a alegação era de que nós teríamos entrado no sistema da Receita Federal para investigar ministros. Todo acesso a esse sistema da Receita fica identificado. E o STJ, de modo ilegal e abusando de seu poder, investigou.

Mas foi bom, porque concluiu que não existia nenhum tipo de investigação indevida. Ou seja, o contrário do que aquelas reportagens da Vaza Jato alegavam. No único caso investigado se comprovou aquilo que a gente sempre disse, que a atuação foi legal, legítima e ética.

Tínhamos 20 procuradores da República na Lava Jato. Se qualquer um constatasse qualquer coisa ilegal e antiética, bastava dizer tchau. Voltaria para o Rio Grande do Sul, para São Paulo, para o estado em que ela morava e de onde vinha toda semana trabalhar. Não ia ter uma perda sequer de remuneração, pelo contrário, ia se livrar de trabalho. Mas os procuradores da Lava Jato, para lutar por justiça, pelo que é certo, ficaram unidos do começo até o fim.

Quando olhamos as anulações que estão acontecendo, a maior parte delas não tem qualquer base nessas supostas mensagens. A imensa maioria tem por base mudanças de regra pelo Supremo Tribunal Federal. Algumas que aconteceram mais recentemente, com base nessas supostas mensagens, envolvem Beto Richa, com a anulação das provas decorrentes da Odebrecht. Mas elas foram feitas sem nenhuma investigação, com base em alegações de que existiria suspeita de pressão, de cooperação internacional fora do canal. Mas nada foi investigado, não ouviram procuradores e juízes, nem os réus buscaram provas e documentos.

O que parece é que existe uma grande vontade, ou melhor, uma determinação de se anular os casos debaixo de pretextos. E as mensagens são usadas como um grande pretexto, com o objetivo de produzir um resultado dentro de uma conta de chegada. É isso que essas decisões, sem fundamentos adequados, mandam de mensagem para a sociedade.

Qual a consequência disso para o combate à corrupção?

Deltan Dallagnol: Isso desestimula procuradores e juízes, porque eles sabem que o seu trabalho vai continuar a ser destruído. Sempre houve anulações de todos os grandes casos de corrupção ao longo da história. E quando você sabe que o teu trabalho vai ser anulado, por que que você vai fazer? Por que vai se dedicar, como os "trouxas" da Lava Jato, que investiram finais de semana, noites, feriados, trabalhando arduamente nos casos? Vai ser tudo destruído.

Mais ainda, infunde um temor nos agentes públicos, porque eles sabem que o sistema reage, que estarão sujeitos à atuação de criminosos, que não vão apenas ameaçar a sua vida e de suas famílias, como vão aplicar todo tipo de método ilegal para invadir a intimidade das pessoas e depois deturpar as informações que colherem, com recortes e distorções.

Em terceiro lugar, existe uma reação de vingança contra quem combateu a corrupção, uma vingança do sistema. Nós vemos procuradores e juízes sendo ameaçados, punidos em processos absolutamente ilegais. Fica o recado: não ouse enfrentar os poderosos do Brasil.

Três evidências mostram esse temor. Primeiro: nenhum procurador e nenhum juiz dá mais entrevista. É uma evidência clara de que eles têm medo de ser punidos, simplesmente por exercer a sua liberdade de expressão.

Segundo: não vemos mais grandes operações de combate à corrupção que se sucediam em 10, 20, 30 fases. A Lava Jato fez 79 fases. Não tem mais nada disso. Quando você tem uma operação avançando, como a Hefesto, envolvendo o presidente da Câmara dos Deputados, o que acontece é que o Gilmar Mendes enterra com um argumento que não se sustenta e coloca sigilo sobre os autos, quando deveria ser público, pois se trata de processo criminal.

Por fim, vemos ainda que mudou o discurso da cúpula do Ministério Público Federal, de combate à corrupção para outros temas. Virou tabu falar de combate à corrupção.

Você faria algo diferente do que foi feito? 

Deltan Dallagnol: A minha vontade é responder que eu faria tudo igual e mais forte, com mais firmeza, de modo mais amplo, investindo mais tempo. Só que a gente fez tudo o que estava ao nosso alcance. A gente investiu noites, finais de semana, usou todos os instrumentos. Ali tinham pessoas que se formaram em Cornell, em Coimbra, em Sevilha, pessoas que trouxeram as melhores técnicas nacionais e internacionais de combate ao crime para atuar nessa operação.

Claro que quando você faz as coisas pela primeira vez, está inovando e não tem um caminho traçado a seguir. Você está desbravando um novo campo. Ninguém tinha feito acordos de colaboração premiada como nós fizemos. Fizemos mais de 180, quando o caso que mais fez havia sido o Banestado, com menos de 20, e era um caso em que nós mesmos atuamos.

Ninguém fez cooperação internacional como a gente fez, com mais de 600 pedidos, quando o caso que mais fez tinha sido também o do Banestado, com 185 aproximadamente, em que nós mesmos tínhamos atuado no passado. Mas fizemos tudo o que estava ao nosso alcance, até mesmo propusemos mudanças na lei para aperfeiçoar o combate à corrupção.

Nós inovamos, adotamos novas estratégias dentro da lei de investigação. Buscamos o apoio da opinião pública, porque sabíamos que sem isso, jamais conseguiríamos avançar contra as pessoas mais poderosas do nosso país, que nunca se submeteram à lei.

Ninguém nos cobrou isso. Foi por amor, por compaixão, por valores. Então, mesmo vendo tudo o que aconteceu, mesmo vendo toda a perseguição, todas as consequências negativas que a gente sofreu e sofre até hoje por ter combatido a corrupção e os desmandos dos mais poderosos do Brasil, eu faria igual porque é uma questão de princípios, é uma questão de valores, é uma questão de lutar pelo que é certo e é uma questão de amor pelas pessoas e compaixão de cumprir aquilo que eu entendo como propósito da vida humana na Terra, que é de amar e de servir. E por amor vale a pena todo o sacrifício.

Fora dos autos, a forma como a força-tarefa se comunicava externamente, na imprensa e nas redes sociais, trouxe problemas, inclusive processos disciplinares. Se arrepende?

Deltan Dallagnol: Eu respondo pelo que eu fiz, não pelo que falam que eu fiz, pelo que interpretam. O que nós fizemos foi uma coletiva em relação a Lula, em que expusemos tecnicamente as provas que existiam, o contexto que existiam, os fatos que existiam com base em teorias de evidência.

Se você olhar aquele gráfico em relação ao Lula, existem gráficos parecidos em teoria sobre provas, e nós fizemos o nosso melhor. Agora, se alguém vem, anos depois, em um contexto de reação e reinterpreta o que aconteceu, para dizer que tinha qualquer conotação que não era aquela, eu não posso responder pela interpretação e pela imaginação alheia.

A Lava Jato não paga por eventuais erros. A Lava Jato paga, sim, pelos seus acertos, pelo que ela fez de certo ao submeter os grandes poderosos do Brasil à lei.

Muitos dos grandes poderosos investigados continuam no poder, foram eleitos ou reeleitos, enquanto a Lava Jato é demolida. O que é preciso fazer para limpar a política?

Deltan Dallagnol: Não adianta você querer combater a corrupção com Lula no poder. Quem Lula vai escolher como ministro do STF? Gente que não vai apoiar a prisão em segunda instância, que não vai apoiar o fim do foro privilegiado. Se queremos mudar o cenário de corrupção alastrada, precisamos começar mudando os agentes políticos, especialmente o presidente da República.

Sem um bom presidente, não teremos bons ministros do STF que combatam a corrupção. Como disse o professor de Harvard Matthew Stephenson, quando veio ao Brasil: se você não tem uma cúpula do Judiciário que combata a corrupção, você não vai ter uma iniciativa forte de saneamento da grande corrupção política de um país.

As coisas todas se resolvem na Justiça, especialmente na cúpula do Judiciário. Enquanto a gente não tiver ministros do STF comprometidos com o combate à corrupção, nada vai mudar. E como que você faz para ter ministros comprometidos com combate à corrupção? Mudando o presidente da República e mudando os ministros no médio e longo prazo.

A segunda coisa que a gente precisa é mudar as leis e a Constituição. Precisamos de iniciativas do Parlamento para frear a corrupção: prisão em segunda instância, fim do foro privilegiado, restabelecimento da competência da Justiça Federal para processar a corrupção política. Precisamos mudar as regras de prescrição e de nulidades, que são usadas casuisticamente, para anular todos os grandes casos de corrupção e derrubar as penas dos grandes corruptos.

Precisamos de uma grande reviravolta no Congresso. Em última análise, a gente volta para a questão do voto. Enquanto a gente não votar bem, num bom presidente, que vai escolher bons ministros, e num bom Congresso, que faça reformas anticorrupção, como ocorreram em vários lugares do mundo que conseguiram vencer esse problema, nós não vamos ter de fato novamente o combate à corrupção florescendo.

Dá para ter esperança de uma nova Lava Jato? 

Deltan Dallagnol: Para nós termos uma nova Lava Jato, nós precisamos mudar a política, precisamos mudar os representantes e existe, sim, esperança de que isso aconteça. Por quê? Porque a Lava Jato, pela primeira vez, fez um diagnóstico da grande corrupção, não existia isso. Ela trouxe uma conscientização, ela abriu os olhos da sociedade brasileira. A Lava Jato, pela primeira vez na história, mostrou que o monstro sangra. O monstro do abuso. O poder da corrupção política sangra. Nós conseguimos colocar gente na cadeia e recuperar bilhões para os cofres públicos.

Nós podemos acreditar, porque existe a percepção das pessoas de que a Lava Jato contribuiu para o combate à corrupção, porque ela aumentou o risco para quem se corrompe. E isso renovou as nossas esperanças, nos mostrou que é possível vencer. O monstro sangrou pela primeira vez em 500 anos de história.

E como fruto de tudo isso, a gente teve um aumento do envolvimento político. Junto com outros fatores, [a Lava Jato] contribuiu para o surgimento de uma direita engajada politicamente, como a gente nunca teve na história. E a gente só vai ter uma mudança, uma renovação do Parlamento e do presidente da República se a gente tiver um aumento da conscientização e engajamento público da sociedade.

Eu acredito que a Lava Jato, de alguma forma, contribuiu para esse fortalecimento, ainda que a gente tenha muito que caminhar. A mensagem que fica para mim desses 10 anos da Lava Jato é que nós chegamos aonde jamais havíamos chegado. Houve uma grande reação, mas existe um espírito de império da lei, de Estado de Direito, de que é possível vencer a grande corrupção brasileira com o aumento do engajamento político, e isso ninguém vai apagar.

Metodologia

*A pesquisa da Quaest ouviu 2 mil pessoas presencialmente entre os dias 25 e 27 de fevereiro de 2024 em 120 cidades brasileiras. A margem de erro é de 2,2 pontos percentuais e o nível de confiança é de 95%.

**A pesquisa da Exame/Ideia ouviu 1.200 pessoas entre o 9 e 11 de fevereiro de 2021. A margem de erro é de 3 pontos percentuais para mais ou para menos.

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