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Todo mundo que já passou dos 50 costuma brincar com os lapsos de memória, o sinal da passagem do tempo. Mas há outra perda de memória, com a qual não podemos brincar – é a soma de informações históricas e de seus valores morais, éticos e intelectuais, esse conjunto de percepção da realidade que absorvemos pela vida. Numa palavra, a nossa cultura.

Somos de forma tão intensa a expressão de uma cultura que talvez muitos imaginem que ela aconteça por geração espontânea; que basta nascer para tudo aquilo que nossos pais aprenderam seja transmitido pelos genes; ou que toda a memória dos acontecimentos que vêm transformando o homem e a natureza desde que o mundo é mundo se transfira por milagre aos recém-nascidos. Se uma grande área da cultura é mesmo absorvida pela simples convivência, há outra área, a da História – e de tudo que se escreveu e deu ao homem moderno a cara que ele tem hoje –, que precisa começar de novo a cada geração. Com relação ao tempo histórico, a condição humana é sempre a de uma tabula rasa – começamos sempre de novo. E a História não é apenas um arrolar neutro de fatos – ela exige uma resposta ética.

O tema da memória me veio ao ler na Gazeta a inacreditável notícia de uma reunião de jovens neonazistas que redundou em duas mortes. Não na Berlim dos anos 30, ou em algum evento de saudosistas na década de 50, mas em nossos dias, aqui perto, como no pesadelo de um filme trash. Fiquei pensando o que levaria universitários brasileiros a se juntarem em torno de uma suástica em homenagem ao führer, elevado à condição de um herói pagão de uma história em quadrinhos, e se autorrepresentarem como um exército promotor de limpezas étnicas e sexuais. Há algo de terrivelmente sinistro nesse espetáculo, por mais isolado que seja: a caricatura ridícula do evento está sempre a um passo da produção da morte, que é a alma nazista. Há muitas explicações psicológicas e sociais, mas vou reforçar apenas uma delas: a profunda ignorância da História de uma geração letrada que parece ter perdido os laços com o próprio tempo. E a sua correspondente anomia moral.

Só o desconhecimento completo sobre a Segunda Guerra (e essa é a hipótese boa), em que o delírio de uma nação militarizada e mesmerizada por um líder messiânico produziu um rastro de milhões de mortes, nas câmaras de gás e nos campos de batalha, pode explicar, talvez, o ritual da insanidade. A outra hipótese é a simples escolha. Como a do governo brasileiro, que decidiu receber com todas as honras o presidente do Irã, para quem o Holocausto é uma lenda, entre outros desvarios de um chefe de um Estado que se confunde com uma religião. Sim, Estados não têm amigos, têm interesses; e a diplomacia é a arte da paciência histórica – mas há limites éticos e simbólicos que não podem ser ultrapassados, se queremos que o Brasil vá além do que foi até agora.

Cristovão Tezza é escritor.

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