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O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
Presidente do Senado Federal, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), responsável pela convocação da comissão de juristas que elaborou o anteprojeto do novo Código Civil.| Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senad

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), tem tentado se dissociar das polêmicas sobre o relatório do anteprojeto para o novo Código Civil, acusando de "fake news" quem o vincula às brechas que a proposta abre para uma revolução ideológica em conceitos como família, casamento e pessoa na legislação brasileira.

Há evidências robustas, contudo, de que Pacheco está estreitamente ligado à proposta, não só por ter tomado a iniciativa de abrir o processo de atualização do Código Civil, mas também por seu envolvimento direto, em 2023, na formação da comissão de juristas que elaborou o relatório carregado de viés ideológico.

Pacheco é amigo de infância do principal mentor jurídico do anteprojeto, o advogado Flavio Tartuce. Os dois nasceram no mesmo ano e cresceram na cidade de Passos, no interior de Minas Gerais. "Parabéns ao meu querido amigo de infância Rodrigo Pacheco pela eleição à Presidência do Senado e do Congresso Nacional. Você é um orgulho para Passos e para Minas", declarou Tartuce em uma publicação do dia 1º de fevereiro de 2021 no Instagram, em que os dois aparecem juntos em uma foto.

Embora o responsável oficial pela indicação dos membros da comissão tenha sido o corregedor nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão, a escolha dos nomes tem um componente relevante de negociação política, e a relação histórica com Pacheco pode ter sido decisiva para conduzir Tartuce à relatoria.

Quando foi convidado para integrar a comissão, o advogado chegou a publicar no Instagram uma carta assinada por Pacheco que oficializava sua indicação. O relatório apresentado no dia 26 de fevereiro reflete a preponderância de Tartuce na construção do anteprojeto: várias bandeiras dele como advogado civilista ganharam grande peso no documento.

Além de não poder ocultar a influência na escolha dos membros da comissão, o presidente do Senado também não pode se declarar isento em relação às pautas polêmicas que foram abordadas no relatório. Em agosto de 2023, Pacheco disse que um dos propósitos da atualização do Código Civil seria justamente o de consolidar em lei as interpretações do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em relação ao conceito de família.

"Evidentemente que há uma série de coisas que precisam ser revistas, inclusive também as relações familiares, o conceito de família atualmente, inclusive em função de decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal, que impõem, de fato, uma reflexão sobre essa atualização", afirmou o senador no momento da criação da comissão.

Também no ano passado, em entrevista ao jornal português Diário de Notícias, Pacheco foi explícito em dizer que a renovação do Código Civil tinha como um de seus focos os temas de costumes. Questionado sobre o projeto de lei que veda a equiparação entre casamento e união homoafetiva, ele afirmou: "Não deveria ser discutido, salvo para colocar na lei a regra da união homoafetiva. Não pode haver retrocesso e a lei tem que ser prevista nesse sentido. Para isso, eu instituí uma comissão de juristas no Senado para atualizar o Código Civil e colocar o casamento homoafetivo".

O relatório da comissão convocada por Pacheco acaba indo além de dar eficácia na lei à decisão do Supremo sobre a união estável homoafetiva, chegando a abrir brecha, em seu artigo 1.564-D, para dar legitimidade a uniões paralelas ao casamento – isto é, a reconhecer um concubinato simultâneo a um casamento como digno de ser chamado de "união estável".

A reportagem da Gazeta do Povo entrou em contato com a assessoria de Rodrigo Pacheco e solicitou uma entrevista com o senador, que não respondeu até a publicação deste texto. Em caso de resposta do parlamentar, este texto será atualizado.

Ideia de deixar legado pode ter motivado Pacheco a querer acelerar renovação do Código Civil

No começo deste ano, Pacheco afirmou que a reformulação do Código Civil seria uma das prioridades legislativas de 2024. Este é o último ano do mandato dele como presidente da Casa, e a ideia de deixar um legado pessoal na legislação brasileira pode ser um dos fatores que o motivaram a acelerar a mudança do Código Civil.

Pacheco é formado em Direito pela PUC Minas e atuou como advogado criminalista antes de chegar à política. Ele seguiu um caminho comum na vida pública brasileira: o de galgar posições na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para depois se candidatar a um cargo como parlamentar. Na OAB, quando tinha 35 anos, chegou ao cargo de conselheiro federal por Minas Gerais, em 2012. Dois anos depois, foi eleito deputado federal.

A trajetória política do senador está entrelaçada, portanto, com sua carreira no Direito, e a aprovação de um novo Código Civil seria conveniente para deixar seu nome marcado na história não só diante de seus colegas políticos, mas também no meio jurídico, onde construiu sua trajetória profissional e boa parte da sua rede de relações sociais.

Juristas ouvidos pela reportagem veem nesse interesse de deixar sua assinatura no Código Civil uma explicação plausível para a pressa de Pacheco, com a esperança da aprovação do projeto ainda em 2024. O estabelecimento de um prazo exíguo de 180 dias para a comissão de juristas entregar suas propostas, sem a devida participação da sociedade, é uma manobra atípica. Historicamente, a elaboração desse tipo de documento no Brasil e em outros países é precedida por um período extenso de discussões.

Caso o novo Código Civil seja aprovado em 2024, como quer Pacheco, o Brasil poderia ser o primeiro país do mundo a promulgar dois novos códigos do tipo no século 21. O primeiro Código Civil do país, de 1916, foi elaborado a partir de 1899 sob o comando do jurista Clóvis Beviláqua (1859-1944). O segundo, de 2002, começou a ser discutido em 1969; no começo da década de 1970, o jurista Miguel Reale comandou uma comissão encarregada de elaborar o documento. Após quase três décadas de debates, ajustes e revisões, o Código Civil foi finalmente aprovado pelo Congresso Nacional em 2001, sancionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 2002, e entrou em vigor somente em 11 de janeiro de 2003.

Em outros países, a situação tende a ser semelhante. Na Alemanha e na França, reformas recentes de menor envergadura que a que deve tramitar no Senado brasileiro foram debatidas por mais de dez anos. Há vários países em que o Código Civil em vigor ainda é do século 19 – é o caso, por exemplo, de nações sul-americanas como Colômbia (onde o documento em vigor é de 1873), Equador (1858) e Chile (1855) – o que evidencia quão raro é discutir uma renovação deste documento em tão pouco tempo.

Tartuce, amigo de infância de Pacheco, é preponderante no relatório

Embora não seja um defensor explícito de pautas radicais da extrema-esquerda – ele não costuma apoiar abertamente, por exemplo, a legalização do aborto –, o relator Flavio Tartuce sustenta, tal como Pacheco, a visão de mundo média da intelectualidade do establishment jurídico progressista.

Em palestras e publicações, ele tem na ponta da língua um discurso que busca dar brecha aos caprichos progressistas da moda, agradando ao beautiful people, ao mesmo tempo em que é cuidadoso com a linguagem para evitar o repúdio imediato dos conservadores e do senso comum.

Tartuce fez questão, por exemplo, de advogar pelo uso do termo "Direito das Famílias" no novo Código Civil – a outra relatora, Rosa Nery, prefere a expressão "Direito de Família", como consta no Código atual. Para alguém mais desavisado sobre as nuances da guerra cultural no campo da linguagem, pode passar despercebida a motivação para o uso do plural nesse caso, que é a de ressaltar que o conceito de família seria aberto a praticamente qualquer tipo de relação afetiva entre pessoas.

Esse tipo de estratégia sorrateira no uso da linguagem também se encontra em dispositivos como o que dá "autonomia progressiva" a crianças e adolescentes, no emprego de expressões mal definidas como "sociedade convivencial" e "família não conjugal", na definição do bebê em gestação como "potencialidade de vida humana" e na previsão de que os animais "compõem o entorno sociofamiliar da pessoa". Possíveis consequências disso já foram explicadas pela Gazeta do Povo.

Tartuce é membro do IBDFAM, uma instituição especializada no tema de família com viés aberto à ideologia de gênero. Em um de seus artigos publicados no site da associação, de 2021, ele afirma:

Penso que o futuro reserva uma forma ainda mais nova de pensar as famílias, e que, em breve, serão admitidos juridicamente os relacionamentos plúrimos, seja a concomitância de mais de uma união estável, seja a presença desta em comum com o casamento. Acredito que o futuro, além dos modelos tradicionais, também é das famílias paralelas – com mais de um vínculo familiar, entre pessoas distintas, uma ou mais delas comum aos relacionamentos –, e das famílias poliafetivas – com um vínculo único, entre mais de duas pessoas. Se a família é plural, os vínculos plúrimos podem ser opções oferecidas pelo sistema jurídico ao exercício da autonomia privada, para quem desejar tal forma de constituição.

Na comissão de juristas que prepara o anteprojeto, alguns membros têm se sentido marginalizados no processo de construção do documento, em uma dinâmica interna em que sugestões importantes tendem a ser ofuscadas. Evidência disso é o quadro comparativo entre o texto original e as propostas de emenda, que mostra como o relatório praticamente ignorou o trabalho das subcomissões, onde muitas sugestões para barrar o viés ideológico haviam sido dadas. Além disso, a outra relatora, Rosa Nery, não tem sido capaz de conter a preponderância de Tartuce, ainda que fosse vista inicialmente como alguém capaz de exercer um contrapeso importante.

Contribui para tudo isso, é claro, o prazo muito apertado, que torna praticamente inviável uma análise adequada dos pontos em discussão até mesmo para quem está dentro da comissão. As milhares de páginas com os relatórios das subcomissões, o relatório geral e as propostas de emenda deixam claro que há dissensos importantes dentro da comissão de juristas sendo ignorados.

Acusação de fake news tem sido banalizada para calar opositores

Ainda que os motivos para o pé atrás em relação ao trabalho da comissão sejam evidentes, Pacheco e Tartuce reagiram em uníssono contra os críticos do relatório geral publicado no dia 26 de fevereiro, acusando-os de "fake news".

"Disseram que sou a favor de poligamia, de mudança de sexo de crianças e outras coisas mais. Isso é, evidentemente, uma mentira completamente sem eira nem beira", afirmou Pacheco.

Tartuce, por sua vez, comentou superficialmente a reação da sociedade ao relatório geral em uma palestra por videoconferência para a OAB-SP, acusando de superficialidade quem viu ameaças à família, ao casamento e ao nascituro no documento. "Cuidado com essas fake news. São notícias mentirosas", afirmou. No mesmo evento, ele chamou a Gazeta do Povo pejorativamente de "tabloide".

Como já observou a Gazeta do Povo em editorial, "chamar de fake news uma afirmação da qual se discorde passou a ser muleta conveniente para escapar do debate enquanto se desmoraliza um opositor".

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