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Tudo vale a pena…
| Foto: Oleksandr Pidvalnyi/Pixabay

É provável que muita gente tenha espontaneamente completado este verso, tão conhecido. Nem todo mundo sabe, porém, que é do poeta Fernando Pessoa, no livro em que homenageou os grandes feitos do povo português, dos varões corajosos que deixavam a terra firme em direção à imensidão do desconhecido, desbravar o que nunca fora desbravado, e navegar mares nunca dantes navegados. Eles tinham casa, comida, esposa e filhos; tinham um comércio, uma paróquia, uma tasca para frequentar, uma vida, enfim. Valia aquele risco tamanho, todo aquele sacrifício, de fazer-se ao mar pelo bem de quem estivesse além? Responde o poeta: “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. Mas o que é isso – grandeza de alma –, que dá valor às penas?

Se nós nos deixarmos guiar pelas vozes de comando da cultura de hoje, que soam na mídia, nas universidades, e – é preciso dizer – também nas escolas, rapidamente estaremos curvados, transformados em súditos de um “império da trivialidade”. Os estudantes são orientados a subordinar seus estudos e sua vida profissional não a ambições nobres, sejam intelectuais ou mesmo sociais, mas apenas às exigências do mercado de trabalho, querendo dizer, com isso, às exigências do que vai lhes garantir mais dinheiro, e dinheiro para o consumo de bens supérfluos e para todas as satisfações rudimentares; em suma, para anestesiar a sua vida sem sentido, que é apenas trabalho voltado ao prazer, num curto-circuito existencial, que, de circuito fechado, transforma-se rapidamente numa depressiva espiral descendente.

Uma rotina dessas pode até ser suportável, e os clorofórmios podem funcionar bem; mas é impossível ser feliz assim. Não é difícil: é simplesmente impossível, porque está inscrita na nossa própria natureza, no próprio ser do homem, uma abertura para algo que está, assim como o mar português, para além deste mundo. O homem é um ser pessoal, e uma pessoa é, por definição, um ser aberto, que não se fecha em si mesmo, mas que só se completa numa relação, num movimento para fora de si.

O homem é mais do que aquilo que pode ser só por si mesmo, pois há nele um vetor que o puxa, desde o seu coração, para além de si mesmo – que o transcende, que o transpassa até o infinito

O ser humano tem, dentro do peito, um chamado à vastidão do mar: uma sede do absoluto, de algo que está para além da relatividade dos nossos pequenos negócios. Num dos muitos Pensamentos que deixou anotados, o filósofo Blaise Pascal disse que “o homem ultrapassa infinitamente o próprio homem”. Essa frase, aparentemente contraditória, sintetiza algo muito simples, mas muito fundamental: o homem é mais do que aquilo que pode ser só por si mesmo, pois há nele um vetor que o puxa, desde o seu coração, para além de si mesmo – que o transcende, que o transpassa até o infinito.

Eu sei, é muito fácil nós nos enganarmos com a aparência das coisas. E não estou falando de quem se engane deliberadamente, dos voluntariamente materialistas, ateus fiéis, ou dos empenhados por livre e espontânea vontade a ser uma só carne com o gozo imediato. Estou falando dos que buscamos e nos esforçamos por escapar disso. E por quê? Porque, simultaneamente, há algo em nós que nos confunde, que nos puxa para baixo, como uma âncora. Contudo, neste caso, trata-se de algo difícil de lidar, sim, mas não impossível. Na verdade, a nossa felicidade verdadeira depende dessa busca, desse esforço incessante por olhar através das coisas. Nós não temos outra opção a não ser declarar guerra aos impulsos que querem nos apequenar e, como grandes navegadores, fazer o que pudermos para engrandecer a nossa alma mais e mais.

O nome tradicional dessa virtude, magnanimidade, pode soar incomum para os nossos ouvidos hoje em dia, mas ela tem uma etimologia fácil: vem do latim, da união entre magno, “grande”, e anima, “alma”. Antes ainda, no grego, é a mesma coisa: μεγαλοψυχία (megalopsykhia) é a união de megalo, “grande”, e psique, “alma”. Aristóteles dizia (a propósito, em grego) que “a magnanimidade parece ser uma espécie de coroa das virtudes, porquanto as torna maiores e não é encontrada sem elas. Por isso é difícil ser verdadeiramente magnânimo, pois sem possuir um caráter bom e nobre não se pode sê-lo”. Reparem bem: não se encontra alguém magnânimo que já não possua todas as outras virtudes, e a grandeza da alma é como uma coroa, que as engrandece ainda mais. Isto é, não é possível almejar grandeza sem antes ter dado duro na conquista de perfeições menores. Por isso o filósofo completa: “Diz-se que é magnânimo o homem que com razão se considera digno de grandes coisas; pois aquele que se arroga uma dignidade a que não faz jus é um tolo, e nenhum homem virtuoso é tolo ou ridículo”.

Em outras palavras: não vale a pena, se a alma é pequena. O homem magnânimo se considera digno de grandes coisas, e realmente faz jus a essa consideração que ele tem de si próprio. Quem se considera digno de grandes coisas, mas não o é, é alguém que vive sem o devido senso das proporções – sem razão –, alguém que é um pouco megalomaníaco, que não corresponde à estima que tem de si mesmo – e este louco é engolido pelo mar. O magnânimo não: ele tem, por assim dizer, uma justificada “autoestima”; confia em si mesmo porque se conhece, confia que pode ir além de onde está, do que faz e do que é, e busca sempre galgar alturas maiores, fazer coisas maiores – e de fato consegue. Ele nunca dá “um passo maior que a perna”, mas aumenta sempre o passo na proporção em que aumenta a perna. Por isso a magnanimidade é a “coroa das virtudes”, porque se apoia sobre todas elas, que estão equilibradas e equilibrando-se umas às outras na alma dessa pessoa, compondo uma harmonia. Mas o que ordena essa harmonia, qual seu centro ou seu princípio?

Quando se trata da magnanimidade, que é uma virtude e um ideal, costuma-se associá-la tradicionalmente ao seu correspondente simbólico em nosso corpo, onde essa grandeza se reflete: o nosso coração, que sentimos arder, abrir-se, ou apertar, doer. Em quase todas as culturas de que se tem notícia, o coração sempre foi símbolo do centro da pessoa, e por isso a sede de algo que é mais do que o corpo: ele é o vaso, a copa que contém a alma. Os egípcios, por exemplo, tinham a crença de que, ao fim da vida, a pessoa era julgada colocando-se o seu coração numa balança. Teria algum peso o que foi guardado naquele coração? Quanto pesa o que aquela pessoa realmente aprendeu e sabe, e o amor que ela praticou? Não apenas as emoções que ela sentiu, e que passaram, mas o amor que ficou delas – em outras palavras, se eram apenas emoções, ou se, assumidas pelo amor, tornaram-se afetos ordenados: se a pessoa viveu aquela vida com o coração, ou de coração. Ou, por outro lado, quantas mesquinharias praticou, quantos pensamentos e desejos condenáveis endossou? Que coisas fez apenas por fazer, sem pôr nelas o coração? Em suma, será que sua vida... valeu a pena?

O que encolhe os nossos corações é, fundamentalmente, a recusa de amar. Aquela âncora em nós nos pede, nos tenta a pensarmos que a doação de nós mesmos é uma ingenuidade, algo distante da realidade, um devaneio pueril, um exagero e uma loucura; que o mais sensato, o mais prudente, o mais seguro, é garantir o seu e ficar quieto – é ter mesmo uma vida mole, egoísta, aburguesada. O nome, também tradicional, que se dá a essa doença espiritual é tibieza, estado em que a alma fica morna e se satisfaz com o mínimo obrigatório. Mas ocorre que, nesse estado, nem sequer cumprimos com os nossos deveres, e reclamamos das obrigações. Quando começamos a viver assim, e aceitar como normal esse critério para os nosso dias, é preciso soar um alerta, porque isso significa que nossos corações estão diminuídos e fechando, pouco a pouco.

Na educação que lhes damos, devemos conduzir nossos filhos de modo a gostarem de fazer o bem, e gostar quer dizer saborear, acessar os bens imateriais

Há quem prefira se contentar com o fato de que somos, mesmo, imperfeitos, e que pensar desse modo causa apenas ansiedade, cobranças e neuroses. Mas não tem razão. Existem dois tipos de imperfeição, a involuntária e a voluntária. A primeira é fruto das limitações humanas – somos realmente limitados, por natureza. Por mais que tentemos ter um grande coração, agir magnanimamente e nos sacrificar pelos demais, sempre esbarramos em nossas limitações. E não há problema nenhum nisso: devemos aceitar humildemente que somos limitados e não nos assustar com isso (e a própria humildade será grande em nós). Mas essa condição não pode ser um freio à nossa vida. Pelo contrário, deve ser motivo para buscarmos aprimoramento.

As imperfeições voluntárias, por sua vez, acontecem porque dizemos a nós mesmos: “Chega, cansei. Vou me preocupar somente comigo mesmo, com meus prazeres, meu bem-estar, e ser egoísta; afinal, todo mundo está fazendo isso, e não tem por que eu ficar para trás”. Essa atitude, que parece um ganho, se mostrará, em não muito tempo, um beco sem saída. A satisfação egoísta vai, dia após dia, revelando sua verdadeira face: mesquinhez, que deixa tudo opaco, as alegrias amargas, os relacionamentos falsos, a vida vazia de sentido. Quem busca alargar seu coração, ao contrário, escapa da mesquinhez, ao tentar se livrar dos cálculos egoístas. Às vezes “perdemos” algo, sim; mas algo que vale muito menos: basta estarmos atentos para saborear os bens espirituais, e a proporção ficará patente para nós. E assim poderemos, sobretudo, ensinar os nossos filhos a fazê-lo.

Na educação que lhes damos, devemos conduzir nossos filhos de modo a gostarem de fazer o bem, e gostar quer dizer saborear, acessar os bens imateriais. Acaso queremos que se tornem pessoas mesquinhas, tacanhas e que fazem o mínimo possível, ou que sejam nobres, capazes de sacrifícios e renúncias, de ações admiráveis? Ora, não basta ensiná-los somente a evitar o mal – ou a dizerem, como se ouve por aí: “Sou uma boa pessoa, afinal, não roubo e não mato!”. Devemos mirar lá no alto. É nossa responsabilidade, principalmente quando os nossos filhos são pequenos, cuidar para que tenham um ambiente afetivo saudável, de modo a regular tudo quanto entra em seus corações, mas também ajudá-los a orientar as suas emoções, e ensiná-los a compreender o que sai do seu coração, para que posam regulá-lo, e, aos poucos, apurá-lo, trocá-lo por algo melhor.

E de modo algum quero dizer, com tudo isso, que as coisas menores e materiais não tenham seu valor. É claro que têm importância o gosto e o cuidado com as próprias coisas, os próprios brinquedos, os próprios objetos e o próprio espaço, por exemplo. Vejam um caso, uma anedota breve, que aconteceu em minha casa recentemente: Dois dos meus filhos haviam ganhado de presente, cada um, um kit com escova e pasta de dentes, e ambos estavam cuidando dele com todo o esmero. Um dia, porém, sumiu a capinha protetora da escova de um deles, que ficou extremamente triste e decepcionado. Que fez o irmão? Ofereceu a sua a ele. Ora, manter intactos aqueles objetos também não era importante para ele? Com toda a certeza, era, muito. Mas ele foi capaz de perceber a sua importância relativa: alargou seu coração, e sacrificou um bem, seu por direito, por um bem maior, a alegria do outro. Preservar o bem material tornou-se, imediatamente, menos importante em comparação com o sofrimento do irmão, que ele era capaz de aliviar. Dar o que é nosso por direito para o bem do próximo é a pura definição de generosidade, e a generosidade é uma virtude que só cabe num grande coração. Aristóteles o notou: “É também característico do homem magnânimo não pedir nada ou quase nada, mas prestar auxílio de bom grado”. No ápice da virtude, da magnanimidade, e que corresponde à nossa verdadeira felicidade, está uma doação de si para outro: um serviço, e não um ser servido.

É isso o que nós devemos ensinar aos pequenos, em primeiro lugar com nosso exemplo, mas também com nossa amorosa orientação. Devemos encorajá-los a alargar os seus corações diante desses pequenos impasses, de modo que eles próprios comecem a ser capazes de ultrapassar o valor relativo das coisas – das coisas que passam, que perdem a graça, que quebram, que ninguém vai levar consigo depois desta vida –, e consigam alçar-se a uma altura maior, experimentando, muito concretamente, um bem invisível – sutil, mas que não passa.

Não há muito mais que devamos ensinar aos nossos filhos; ou, melhor dizendo, as muitas facetas e os muitos ensinamentos que nós ministramos a eles se resumem neste – ele é, como se diz no Evangelho, “toda a lei e os profetas” –, todos os outros servem a esse grande ensinamento, que é ensinar a amar. Trata-se de escolher o melhor, e escolher o que é melhor é dar-se, gastar-se, entregar-se a si mesmo e o que se tem generosamente pelo próximo, e receber por isso uma compensação invisível, mas que, embora escondida aos olhos do mundo, não tem comparação com nada mais. É dilatar o nosso coração até abrir-se para o infinito. Assim eles poderão dizer, ao fim de sua vida, juntamente com o poeta: “Valeu a pena? Tudo vale a pena / se a alma não é pequena... Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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