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Romance: A Desumanização. Valter Hugo Mãe. Cosac Naify, 160 págs., R$ 34,90. |
Romance: A Desumanização. Valter Hugo Mãe. Cosac Naify, 160 págs., R$ 34,90.| Foto:

Uma prosa de fronteira, que se deixa impregnar e definir pela escrita poética. Uma prosa que é poesia. Talvez essa seja a melhor maneira de definir A Desumanização (Cosac Naify), novo romance do português Valter Hugo Mãe. Uma narrativa que é puro arrebatamento, conduzindo o leitor — empurrando-o — para os limites do êxtase, deixando-o, a cada página virada, fora de si. Impossível ler o romance com serenidade e temperança. A história de Halla, a menina que perde sua irmã gêmea, Sigridur, e com ela morre um pouco, é uma dessas narrativas que não se lê facilmente. Narrado pela própria Halla, o romance provoca sucessivos golpes de admiração em um leitor que se torna cada vez mais prisioneiro do que livro.

"A poesia é a linguagem segundo a qual deus escreveu o mundo", diz o pai de Halla. "Nós não somos mais do que a carne do poema". Valter Hugo Mãe adota a mesma filosofia de seu personagem: não encara a poesia como decoração, ou sedução, mas fundamento. O pai é um homem simples da Islândia — onde se ambienta o livro —, mas um homem que não cede um milímetro de sua humanização, um homem que combate suas feridas desumanas escrevendo versos. "Eu perguntei: posso chamar a vida de poema. E ele respondeu: podes chamar a vida de poema". Para ele, o poema não é uma exceção, o poema é a matéria do mundo. "Ou podes chamar de normalidade. A vida é a normalidade e deus é a normalidade. O poema é normal".

As palavras desse pai filósofo, que coloca versos no lugar de cada coisa, regem a escrita de Mãe, ela também aturdida e submissa à força da poesia. O pai ensina à filha — sozinha e desamparada desde a morte de Sigridur — o amor pelos livros. "Os livros eram ladrões. Roubavam-nos do que acontecia". Mas os livros são também generosos, reconhece: "Oferecem-nos o que não nos acontece". A poesia seria não só um instrumento de nomeação do mundo, do qual nada escapa exceto Deus — aquele que não pode ser nomeado —, mas um meio de construção do próprio mundo.

"Éramos gêmeas. Crianças espelho. Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte". Com a perda da irmã, Halla passa a se sentir violentamente só. Não desgruda do túmulo de Sigridur, pedaço de chão que as pessoas chamavam de "criança plantada" e no qual julgavam que a morta pudesse germinar. Halla se pergunta se, com sua morte, a alma de Sigridur se instalou dentro dela. "Começaram a dizer as irmãs mortas. A mais morta e a menos morta". Aos 11 anos de idade, Halla é, assim, vítima de um discreto assassinato. Passa a ser vista como a parte viva da irmã que se foi — morre um tanto. Passa a sentir como quem habita um inferno e o inferno são os outros — que não a perdoam por ter sobrevivido a Sigridur.

Desmente o pai: "O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal". É a solidão — que ela experimenta de maneira tão radical — que nos desumaniza. Continua o pai filósofo: "Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes". O pai tenta convencê-la de que a solidão não existe, de que ela é só uma ficção que criamos para escapar dos outros. O humano é o revelado — e só nos revelamos para os outros. "E deus era o desconhecido." Arremata: "Cada coisa que nos revelasse tornava-se humana. Apenas o que nos transcendia podia ser deus".

A família não aceita a morte de Sigridur e fala, sem nenhuma piedade, das "irmãs mortas". Mas Halla não se deixa matar. A figura do amor precoce, sinal da humanização, se manifesta na presença estranha e ambígua de Einar, ser de idade e feições indefinidas, que lhe causa repulsa, mas também atração. Halla o vê como "um ogro malcriado", mas isso não impede que se envolvam. Ele vive naquele limite em que a ingenuidade e a monstruosidade se confundem. No mundo de Halla as coisas se dissolvem e se misturam. Quando pensa em deus, por exemplo, pensa na Islândia. Quando estava para morrer, Sigridur, retida na mesma confusão, lhe perguntou: "O que acha que a Islândia quer de mim?" A irmã morta achava que deus "era o corpo deitado da Islândia". Era preciso aceitar essa ausência de limites entre eles, até porque descobrir o nome e o significado de deus "não compete a ninguém". E Halla respeita essa proibição.

Também a linguagem, Halla descobre, está imersa na incerteza e na confusão. "As palavras são objetos magros incapazes de conter o mundo. Usamo-las por pura ilusão. Deixamo-nos iludir assim para não perecermos, de imediato, conscientes da impossibilidade de comunicar e, por isso, a impossibilidade da beleza". O tema da beleza está no centro de "A desumanização". Pode a beleza se guardar na feiúra? Pode o repulsivo ser, ao mesmo tempo, belo? Será a beleza alcançável? A beleza maior estaria na firmeza da linguagem, que não existe. "É o que todos almejamos. Que acreditem em nós. Dizemos algo que se toma como verdadeiro porque o dizemos simplesmente". A beleza não tem segundas intenções. Ela não se guarda nos grandes arroubos, mas na alma de uma menina perdida. Também a verdade só se configura quando é pronunciada por uma menina que não sabe o que diz. Assim se refletem alguns dos alicerces da escrita de Valter Hugo Mãe, que desmentem o mundo prático e arrogante — o mundo de pessoas cheias de si — em que vivemos. Um mundo regido por projetos, interesses e intenções secretas. Indiferente à poesia.

Quanto às palavras, não há como admirar-se de sua fraqueza. "As palavras não são nada. Deviam ser eliminadas. Nada do que possamos dizer alude ao mundo que é". A verdade não se guarda nas palavras, mas em suas entrelinhas. Halla pensa nas pedras: "Nenhuma pedra se entende por caracteres. As pedras são entidades absolutamente autônomas às expressões. As pedras recusam a linguagem". Talvez se possa tomar como pedra, também, o objeto de um romance. Não o tocamos. Só a poesia consegue dele se aproximar. Daí a eficácia da linguagem poética, muito mais potente que a objetiva. Esta fecha caminhos, aquela os abre. Princípios que regem a escrita de Valter Hugo Mãe, agora, de forma não só intensa, mas atordoante.

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