
Houve um tempo em que eu conhecia todos os labirintos do Teatro Guaíra. Dominava cada escada, cada corredor, cada segredo. Claro, o artista Edson Bueno nasceu lá dentro. O Curso Permanente de Teatro, em 1982, onde estudei, quando resolvi ser ator, acontecia nas entranhas da maravilha que é o Teatro Guaíra. Em outras palavras, tomava café, almoçava e jantava entre suas paredes. Pode parecer um memorialismo nostálgico, mas não é. Não tenho muita paciência para olhar para trás. O que passou, passou. Mas não posso deixar de comemorar o privilégio que eu tive, privilégio que os novos artistas, diretores e atores de nossa cidade não têm.
Quando me formei, depois de quatro anos de estudo, pode-se dizer, prático, conhecia o palco, fosso, o urdimento, as galerias, a maquinaria e os técnicos daquele teatro como a palma da minha mão. Amava o Teatro Guaíra e seus técnicos com a humildade do aprendiz de feiticeiro. Aprendi com os homens, as mulheres e as coisas, como usar um palco de excelência (como é o Guairinha) para fazer poesia cênica e me comunicar com o tablado italiano. E muitos, muitos anos depois de formado, ainda me deitava no centro daquele palco, com braços e pernas abertos, sentindo-me mais confortável que em minha própria cama.
Até 1994, mais ou menos, fiz meu teatro lá. E não é apenas uma questão de aprendizado e de descoberta, mas também uma questão de colaboração. Porque o Teatro Guaíra era uma instituição que tinha consciência da sua importância na construção de um movimento teatral forte e no aspecto humanístico que isso representava. Era a casa do artista de teatro, simples e naturalmente. Passavam as diretorias e mesmo que acontecesse um retrocesso, aqui ou ali, a próxima se encarregava de preencher lacunas, sempre levando em conta que o apoio à produção teatral e o aparecimento de novos artistas era ponto de honra.
Foi com o apoio do Teatro Guaíra (apoio econômico e de produção), que o Grupo Delírio Cia. de Teatro, minha companhia há 26 anos, produziu seus dois primeiros trabalhos: A Sedução, de Oscar Wilde e Uma Visita para Frieda, de Martin Walser. E quem era eu? Quem eram os atores do Grupo Delírio? Apenas iniciantes apaixonados e românticos. Mas, sem dúvida alguma, alavancado por esse tipo de apoio, que era dado a toda a classe teatral, pude ousar meus primeiros passos. E mais à frente, na recuperação do Teatro de Comédia do Paraná, pude, aí sim, dar o grande salto na direção do profissionalismo. Aquele que desenha um caminho sem volta.
Esse passo chamou-se New York por Will Eisner, em 1990. E é possível dizer aqui que a década de 90 foi grandiosa, o "auge", como se costuma falar. Porque não foi apenas uma questão de produzir espetáculos para novos ou veteranos atores e diretores. Foi na produção própria e no apoio à produção independente que um impressionante movimento artístico floresceu e tem reflexos até hoje, porque estabeleceu um padrão de qualidade artística e técnica que, para quem viveu esse tempo, é de retrocesso inadmissível. Fazíamos teatro apoiados pela melhor equipe profissional técnica do estado e tínhamos a segurança de realizar temporadas num dos melhores palcos do Brasil. E ainda mais, convivemos diariamente, naturalmente, fraternamente, com alguns dos melhores profissionais de teatro do Brasil, como Paulo Autran, Ademar Guerra, Celso Nunes, Rosa Magalhães, Aurélio Di Simoni, Gianni Ratto, só para citar alguns. Que inestimável conhecimento da profissão e da vida esses artistas nos passaram, com generosidade e de igual para igual!
Nossa arte era reconhecida pelo estado e, por consequência, pela população. Fazíamos um teatro comprometido com a beleza, com o conteúdo, com a linguagem e com a técnica e, ainda assim, popular. Não era uma questão de ego, mas de grandeza artística. Ali reinava absoluto o sim e o não, a verdade e a mentira, a ilusão e a realidade, o som e a fúria.
Mas o teatro não é a composição de tudo isso? Fato é que, ao contrário de São Paulo e Rio de Janeiro (mas lá não é tão diferente, embora pareça!), nossa produção (não nossa arte!) está vinculada aos humores estatais. E o Teatro Guaíra é, como sabemos, uma autarquia. Sei lá, creio que, por questões burocráticas, algum tipo de corporativismo, antipatia mesmo porque, como disse uma vez Nelson Rodrigues, apesar de toda a nossa generosa beleza, nós artistas de teatro somos vistos como vigaristas preguiçosos, sempre com a mão estendida pedindo dinheiro e favores , as portas do Teatro Guaíra foram ganhando fechaduras, virando pantográficas de ferro, paredes foram surgindo onde antes havia corredores e percebemos, nós artistas, que deveríamos mesmo é ir saindo de fininho, procurar outros lugares para sonhar nosso sonho. E isso também não tem nada de ressentimento porque também não sou um ressentido. Tem apenas de realidade.
As novas diretorias foram chegando e mesmo quando eram de artistas, cantavam a canção do "não". Lembro de uma vez em que fui pedir um apoio para fazer o cenário de Metamorphosis. Eu só queria a mão de obra e mais nada. A resposta da diretora artística foi a de que não podia por uma decisão interna. "Se ajudo você, tenho que ajudar todo mundo!" Na verdade não me impressionei com a negativa, me impressionei com o fato de ela ter usado o verbo "ajudar" e não "apoiar". Em outras épocas, não só teria tido a colaboração como, por ser uma produção independente, sem dinheiro, receberia até apoio financeiro. Era a nova realidade. O Teatro Guaíra e a classe teatral estavam, com o passar dos anos, rapidamente, se desvinculando. Não cabe aqui julgar se é bom ou ruim, se é certo ou errado, cabe refletir sobre o fato. E, por exemplo, se houve um tempo em que, como eu disse, "tomava café, almoçava e jantava" entre suas paredes, hoje se o produtor quer estrear um espetáculo em um dos auditórios, tem um dia e meio para montar cenário, fazer luz, ensaiar etc. e tal. Procedimento inviável, cruel e descomprometido. Quem perde não é o artista, é a arte. Dificultando ao artista criar a sua beleza em toda a sua exuberância, quem perde é a beleza e quem vai recebê-la, o público.
Alguém pode dizer que tudo se "profissionalizou". Não, não é verdade. A palavra que cabe melhor ao novo tempo é "desvinculou". O processo artístico deixou de ter importância. Em outras palavras, o Teatro Guaíra desumanizou-se. Temo que a oportunidade que eu tive, nunca mais um jovem diretor possa vir a ter, por conta do descomprometimento e da desumanização. Penso que o que fica comprometido é o futuro, o conhecimento, a beleza e a arte. O futuro, porque o dia de hoje já passou. Pode-se dizer que reina um profundo silêncio burocrático.
Mas eu, apesar de tudo, continuo romântico e sei que, como todo vento que sopra, sopra sempre a partir dos humores políticos, então numa próxima ventania a paixão pelo teatro pode muito bem voltar e ocupar uma cadeira relevante, e o Teatro Guaíra pode até recuperar um pouco da sua importância para a ARTE. Por que não? Afinal, ainda não retiraram a palavra "teatro" do seu nome. Vou me assustar mesmo é com o dia em que virar só "Guaíra".
Edson Bueno é dramaturgo e diretor teatral



