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Artigo

Era a casa do artista de teatro

“O processo artístico deixou de ter importância. Em outras palavras, o Teatro Guaíra desumanizou-se. Temo que a oportunidade que eu tive, nunca mais um jovem diretor possa vir a ter, por conta do descomprometimento e da desumanização. Penso que o que fica comprometido é o futuro, o conhecimento, a beleza e a arte. O futuro, porque o dia de hoje já passou. Pode-se dizer que reina um profundo silêncio burocrático.” Edson Bueno, diretor, ator e dramaturgo | Marcelo Elias/Gazeta do Povo
“O processo artístico deixou de ter importância. Em outras palavras, o Teatro Guaíra desumanizou-se. Temo que a oportunidade que eu tive, nunca mais um jovem diretor possa vir a ter, por conta do descomprometimento e da desumanização. Penso que o que fica comprometido é o futuro, o conhecimento, a beleza e a arte. O futuro, porque o dia de hoje já passou. Pode-se dizer que reina um profundo silêncio burocrático.” Edson Bueno, diretor, ator e dramaturgo (Foto: Marcelo Elias/Gazeta do Povo)

Houve um tempo em que eu conhecia todos os labirintos do Teatro Guaíra. Dominava cada escada, cada corredor, cada segredo. Claro, o artista Edson Bueno nasceu lá dentro. O Curso Per­ma­nente de Teatro, em 1982, onde estudei, quando resolvi ser ator, acontecia nas entranhas da ma­­ra­­vilha que é o Teatro Guaíra. Em outras palavras, tomava café, al­­moçava e jantava entre suas pa­­redes. Pode parecer um memorialismo nostálgico, mas não é. Não tenho muita paciência para olhar para trás. O que passou, pas­­sou. Mas não posso deixar de co­­memorar o privilégio que eu tive, privilégio que os novos artistas, diretores e atores de nossa cidade não têm.

Quando me formei, depois de quatro anos de estudo, pode-se di­­zer, prático, conhecia o palco, fos­­so, o urdimento, as galerias, a ma­­quinaria e os técnicos daquele teatro como a palma da minha mão. Amava o Teatro Guaíra e seus técnicos com a humildade do aprendiz de feiticeiro. Aprendi com os homens, as mulheres e as coisas, como usar um palco de excelência (como é o Guairinha) para fazer poesia cênica e me comunicar com o tablado italiano. E muitos, muitos anos depois de formado, ainda me deitava no centro daquele palco, com braços e pernas abertos, sentindo-me mais confortável que em minha própria cama.

Até 1994, mais ou menos, fiz meu teatro lá. E não é apenas uma questão de aprendizado e de descoberta, mas também uma questão de colaboração. Porque o Teatro Guaíra era uma instituição que tinha consciência da sua importância na construção de um movimento teatral forte e no aspecto humanístico que isso representava. Era a casa do artista de teatro, simples e naturalmente. Passavam as diretorias e mesmo que acontecesse um retrocesso, aqui ou ali, a próxima se encarregava de preencher lacunas, sempre levando em conta que o apoio à produção teatral e o aparecimento de novos artistas era ponto de honra.

Foi com o apoio do Teatro Guaíra (apoio econômico e de produção), que o Grupo Delírio Cia. de Teatro, minha companhia há 26 anos, produziu seus dois primeiros trabalhos: A Sedução, de Oscar Wilde e Uma Visita para Frieda, de Martin Walser. E quem era eu? Quem eram os atores do Grupo Delírio? Apenas iniciantes apaixonados e românticos. Mas, sem dúvida alguma, alavancado por esse tipo de apoio, que era dado a toda a classe teatral, pude ousar meus primeiros passos. E mais à frente, na recuperação do Teatro de Comédia do Paraná, pude, aí sim, dar o grande salto na direção do profissionalismo. Aquele que desenha um caminho sem volta.

Esse passo chamou-se New York por Will Eisner, em 1990. E é possível dizer aqui que a década de 90 foi grandiosa, o "auge", como se costuma falar. Porque não foi apenas uma questão de produzir espetáculos para novos ou veteranos atores e diretores. Foi na produção própria e no apoio à produção independente que um impressionante movimento artístico floresceu e tem reflexos até hoje, porque estabeleceu um padrão de qualidade artística e técnica que, para quem viveu esse tempo, é de retrocesso inadmissível. Fazíamos teatro apoiados pela melhor equipe profissional técnica do estado e tínhamos a segurança de realizar temporadas num dos melhores palcos do Brasil. E ainda mais, convivemos diariamente, naturalmente, fraternamente, com alguns dos melhores profissionais de teatro do Brasil, como Paulo Autran, Ademar Guerra, Celso Nunes, Rosa Ma­­galhães, Aurélio Di Simoni, Gianni Ratto, só para citar alguns. Que inestimável conhecimento da profissão e da vida esses artistas nos passaram, com generosidade e de igual para igual!

Nossa arte era reconhecida pelo estado e, por consequência, pela população. Fazíamos um teatro comprometido com a beleza, com o conteúdo, com a linguagem e com a técnica e, ainda assim, popular. Não era uma questão de ego, mas de grandeza artística. Ali reinava absoluto o sim e o não, a verdade e a mentira, a ilusão e a realidade, o som e a fúria.

Mas o teatro não é a composição de tudo isso? Fato é que, ao contrário de São Paulo e Rio de Janeiro (mas lá não é tão diferente, embora pareça!), nossa produção (não nossa arte!) está vinculada aos humores estatais. E o Teatro Guaíra é, como sabemos, uma autarquia. Sei lá, creio que, por questões burocráticas, algum tipo de corporativismo, antipatia mesmo – porque, como disse uma vez Nelson Rodrigues, apesar de toda a nossa generosa beleza, nós artistas de teatro somos vistos como vigaristas preguiçosos, sempre com a mão estendida pedindo dinheiro e favores –, as portas do Teatro Guaíra foram ganhando fechaduras, virando pantográficas de ferro, paredes foram surgindo onde antes havia corredores e percebemos, nós artistas, que deveríamos mesmo é ir saindo de fininho, procurar outros lugares para sonhar nosso sonho. E isso também não tem nada de ressentimento porque também não sou um ressentido. Tem apenas de realidade.

As novas diretorias foram chegando e mesmo quando eram de artistas, cantavam a canção do "não". Lembro de uma vez em que fui pedir um apoio para fazer o cenário de Metamorphosis. Eu só queria a mão de obra e mais nada. A resposta da diretora artística foi a de que não podia por uma decisão interna. "Se ajudo você, tenho que ajudar todo mundo!" Na verdade não me impressionei com a negativa, me impressionei com o fato de ela ter usado o verbo "ajudar" e não "apoiar". Em outras épocas, não só teria tido a colaboração como, por ser uma produção independente, sem dinheiro, receberia até apoio financeiro. Era a nova realidade. O Teatro Guaíra e a classe teatral estavam, com o passar dos anos, rapidamente, se desvinculando. Não cabe aqui julgar se é bom ou ruim, se é certo ou errado, cabe refletir sobre o fato. E, por exemplo, se houve um tempo em que, como eu disse, "tomava café, almoçava e jantava" entre suas paredes, hoje se o produtor quer estrear um espetáculo em um dos auditórios, tem um dia e meio para montar cenário, fazer luz, ensaiar etc. e tal. Procedimento inviável, cruel e descomprometido. Quem perde não é o artista, é a arte. Dificultando ao artista criar a sua beleza em toda a sua exuberância, quem perde é a beleza e quem vai recebê-la, o público.

Alguém pode dizer que tudo se "profissionalizou". Não, não é verdade. A palavra que cabe me­­lhor ao novo tempo é "desvinculou". O processo artístico deixou de ter importância. Em outras palavras, o Teatro Guaíra desumanizou-se. Temo que a oportunidade que eu tive, nunca mais um jovem diretor possa vir a ter, por conta do descomprometimen­­to e da desumanização. Penso que o que fica comprometido é o futuro, o conhecimento, a beleza e a arte. O futuro, porque o dia de hoje já passou. Pode-se dizer que reina um profundo silêncio bu­­rocrático.

Mas eu, apesar de tudo, continuo romântico e sei que, como todo vento que sopra, sopra sempre a partir dos humores políticos, então numa próxima ventania a paixão pelo teatro pode muito bem voltar e ocupar uma ca­­deira relevante, e o Teatro Guaíra pode até recuperar um pouco da sua importância para a ARTE. Por que não? Afinal, ainda não retiraram a palavra "teatro" do seu nome. Vou me assustar mesmo é com o dia em que virar só "Guaíra".

Edson Bueno é dramaturgo e diretor teatral

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