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Rejeitado na Câmara dos Deputados, um dispositivo controverso patrocinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode voltar à proposta de reforma tributária na tramitação do texto no Senado. Trata-se de um artigo que prevê a prorrogação até 2030 de incentivos fiscais para montadoras de veículos instaladas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Em vigor há mais de duas décadas, as chamadas Políticas Automotivas de Desenvolvimento Regional (PADR) custam cerca de R$ 5 bilhões por ano à União, mas, segundo auditoria realizada conjuntamente pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pela Controladoria-Geral da União (CGU), têm baixo impacto socioeconômico e não cumpriram o objetivo de descentralizar a indústria automotiva do país.
Apelidado de “emenda Lula”, o artigo que visa prorrogar o programa foi redigido sob medida para beneficiar a chinesa BYD, que pretende se instalar em Camaçari, na Bahia, e já anunciou investimento inicial de R$ 3 bilhões para a produção de veículos pesados elétricos na antiga fábrica da Ford na cidade.
O segundo parágrafo do artigo, que prevê a extensão do prazo de vigência dos incentivos para projetos aprovados até o fim de 2025, ajudaria a Stellantis, grupo que controla as marcas Fiat, Citroën, Jeep e Peugeot e que planeja ampliar sua operação em Goiana, em Pernambuco.
Os trechos foram incluídos apenas na versão final proposta de emenda à Constituição (PEC) da reforma tributária, apresentada na data da votação do texto pela Câmara dos Deputados, dia 6 de julho, e teriam sido encomendados pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad – na contramão de seu próprio discurso contrário a regimes especiais de tributação.
Poucos dias antes da votação da PEC na Câmara, Stella Li, vice-presidente mundial e presidente da BYD nas Américas, esteve no Palácio do Planalto com Lula, o vice-presidente e ministro de Desenvolvimento, Geraldo Alckmin, e o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), que também procurou deputados para defender a inclusão do benefício no relatório final levado à análise do plenário.
Um voto a mais teria mantido trecho em versão da PEC aprovada na Câmara
Na discussão na Câmara, um destaque supressivo apresentado pelo PL ganhou adesão de representantes de estados do Sul e do Sudeste de diferentes partidos, inclusive da base do governo. Para ser mantido, o trecho precisaria do apoio de 308 deputados, mas conquistou 307 votos favoráveis – um único voto a mais, portanto, teria permitido a manutenção do trecho na PEC.
Entre os 166 deputados que votaram pela retirada do artigo do texto final estão todos os 12 representantes do PSOL, outros 12 parlamentares do próprio PT, além de integrantes de outros partidos aliados de Lula, como Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Tabata Amaral (PSB-SP) e Aliel Machado (PV-PR).
“Isso é concorrência desleal, em especial com os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Trata-se de uma vantagem fiscal sem orçamento”, disse o deputado Antônio Carlos Rodrigues (PL-SP).
“Esse incentivo já foi questionado pelo Tribunal de Contas da União, há 2 meses, por ser ineficaz. Eu recomendo que o pessoal do Sul e do Sudeste vote ‘não’, e do Nordeste também, se quiser”, declarou do plenário.
As lideranças da federação PT/PCdoB/PV, do bloco MDB/PSD/Republicanos/Podemos/PSC e da oposição liberaram suas bancadas, enquanto Novo e federação PSOL/Rede orientaram contra o dispositivo. O líder do PT na Câmara, Zeca Dirceu (PT-PR), não votou.
Senador apresenta emenda para reinserir artigo na reforma tributária
No Senado, o texto encontra-se atualmente na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), onde o relator da matéria, Eduardo Braga (MDB-AM), projeta para o dia 4 de outubro a votação de parecer sobre a proposta.
No dia 4 de agosto, na volta do recesso parlamentar, o senador Otto Alencar (PSD-BA), líder de seu partido na Casa, apresentou uma emenda à comissão para reinserir na PEC o artigo suprimido pela Câmara.
“Sem essa prorrogação, as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste ficam prejudicadas, perdendo investimentos importantes que geram empregos nos respectivos estados”, justifica o senador na proposta de emenda.
Curiosamente o deputado Otto Alencar Filho (PSD-BA), votou contra a medida no plenário da Câmara, decisão que o senador chamou de “engano” do filho à revista “Veja”.
Incentivo criado nos anos 1990 foi sucessivamente prorrogado e vale até 2025
O incentivo fiscal a montadoras das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste foi implantado no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) por duas leis, uma de 1997 e outra de 1999, que garantem crédito presumido de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) às fábricas de veículos e peças das três regiões.
O benefício, que inicialmente duraria até 2010, foi sucessivamente prorrogado pelo Congresso, sem qualquer comprovação de retorno socioeconômico, e agora vale até o fim de 2025.
Segundo a auditoria do TCU e da CGU, entre 2010 e 2021 a União abriu mão de R$ 51 bilhões em impostos de montadoras instaladas nas regiões contempladas, em valores corrigidos pela inflação. Entre 2017 e 2021, a renúncia foi de mais de R$ 5,6 bilhões por ano, em média. “Um custo que é redistribuído para todos os demais pagadores de impostos”, apontam os auditores.
No caso da fábrica Stellantis em Goiana, onde são produzidos os modelos da marca Jeep, a renúncia de impostos equivale a R$ 34,4 mil mensais por emprego gerado, “sem que, com isso, tenham ocorrido alterações significativas na realidade socioeconômica desse município”, conforme o relatório.
Concorrentes agem para impedir prorrogação de benefício à Stellantis
Ao jornal “O Estado de S. Paulo”, cinco fabricantes de veículos concorrentes afirmaram estar agindo para tentar barrar a prorrogação do incentivo que beneficiaria a Stellantis. Duas delas informam ainda que a medida pode influenciar futuras decisões de investimentos, principalmente em um momento em que a transição energética exige elevados aportes das companhias.
Para essas montadoras, seria contraditório incluir a medida em uma reforma tributária que é apoiada pelo setor em razão da expectativa de proporcionar mais competitividade, previsibilidade e isonomia às indústrias, com a simplificação de impostos, redução de entraves para exportações e fim de acúmulo de créditos fiscais retidos, segundo a publicação.
Apesar disso, o grupo seria favorável ao apoio a fabricantes que chegam ao país para desenvolver novas tecnologias, caso da BYD.