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"O Túnel", assim como "A Vida dos Outros" e "Adeus, Lênin!", é uma das melhores produções alemãs recentes a retratar a tragédia do Muro de Berlim.
“O Túnel”, assim como “A Vida dos Outros” e “Adeus, Lênin!”, é uma das melhores produções alemãs recentes a retratar a tragédia do Muro de Berlim.| Foto: Divulgação

Em cima de uma parte ainda não demolida da estrutura de concreto, o repórter Sílio Boccanera, hoje aposentado, fala à câmera: “Poucas vezes é possível testemunhar um acontecimento e ter certeza de que a História com H maiúsculo está sendo escrita diante de seus próprios olhos. (...) As pessoas estão aqui comemorando a abertura do Muro de Berlim. Há poucos dias, uma pessoa que tentasse atravessar o outro lado do Muro, de Berlim Oriental para cá, poderia ser fuzilada pelos guardas de fronteira. Hoje, isso aqui parece uma rua de pedestres (...). O Muro de Berlim em si ainda está aqui, mas, em espírito, ele já desapareceu”.

É uma matéria para o Jornal Nacional de 10 de novembro de 1989, um dia após ocorrer, como o próprio repórter enfatiza, um dos fatos colossais da história recente: a queda do Muro de Berlim, o maior emblema da Guerra Fria. Faz 30 anos.

Aquele 1989 assistia a “um momento maravilhoso na história, do tamanho da Revolução Francesa e da Revolução Russa”, declarou Paulo Francis na época, em comentário no qual parodiava a frase inicial do Manifesto Comunista, escrito por Marx e Engels em 1848: “O espectro do anticomunismo ronda o Leste Europeu”.

Chegava ao fim o processo desencadeado pelas reformas liberalizantes de Mikhail Gorbachev na União Soviética. Como soluções para o cada vez mais visível apodrecimento do regime totalitário, o então líder soviético propôs, em 1984, a Glasnost, abertura política, e a Perestroika, reestruturação econômica. Ele só não imaginava que, por essas pequenas brechas no sistema, vazariam décadas de insatisfação represada. Com as medidas, os países que compunham a União Soviética passaram a atuar com mais autonomia e até a reivindicar separação. Em setembro de 1989, a Hungria abriu a fronteira com a Áustria e, com isso, milhares de pessoas começaram a deixar a Alemanha Oriental, para, atravessando a então Tchecoslováquia, chegar à Hungria e, de lá, ao território austríaco, do qual tinham livre acesso ao Ocidente.

Diante da fuga em massa e das passeatas nas ruas, o governo da Alemanha Oriental, que resistia às mudanças nos países comunistas, enfim cedeu. Na noite de 9 de novembro, meio que de improviso, anunciou a abertura dos postos de fronteira com a Alemanha Ocidental. Milhares de pessoas saíram de suas casas para celebrar e transitar livremente pela cidade, e o Muro perdeu a razão de existir.

Os berlinenses orientais, naquele novembro, demonstraram estar fartos de 28 anos de separação de familiares e amigos, cerceamento do direito de ir e vir, prisões e mortes de quem tentasse vencer a barreira de 43 quilômetros de extensão, erguida em três dias de agosto de 1961, pelo governo do lado oriental, para impedir o êxodo cada vez maior em direção ao lado ocidental.

Feito uma ferida ainda não de todo cicatrizada, o período da existência do Muro de Berlim é constantemente lembrado e comentado pela sociedade alemã, o que se reflete em parte nas produções culturais do país. O tema aparece em livros, peças de teatro e trabalhos de arte visual, e muito também naquela que talvez seja a arte em que os alemães mais têm se destacado nas últimas décadas: o cinema.

O lado engraçado de uma tragédia humana

Dirigido por Wolfgang Becker, 'Adeus, Lênin!' talvez seja o mais criativo dos filmes que têm o Muro de Berlim como tema. Comédia dramática de ótimo texto, é uma trama familiar temperada com os fatos de 1989. Após os créditos de abertura, inseridos sobre fotos da Alemanha Oriental nas quais se notam os carros Trabants e Ladas, a arquitetura construtivista dos prédios e as estátuas do revolucionário e posterior ditador russo Vladimir Lênin, vemos que, em 1978, na Berlim Oriental, um pai abandona a mulher e o casal de filhos pequenos para viver no lado ocidental. Baqueada pela separação, a mulher toma um remédio (psicológico) comum a muita gente: emprega política como amparo emocional, preenchimento do vazio. “Como essa relação não era sexual, havia muita energia e vigor sobrando para nós, filhos, e para o cotidiano da pátria socialista”, diz em off Alex, o filho, personagem-narrador da história, sobre a mãe tornada ativista.

Onze anos mais tarde, em outubro de 1989, o mesmo Alex (já interpretado pelo ator Daniel Brühl) assiste à mãe enfartar ao vê-lo ser levado por policiais que reprimiam a manifestação por liberdade de que ele participava. Em coma, a socialista ferrenha não testemunha a queda do Muro em novembro, nem a subsequente eleição livre que levou à presidência Helmut Kohl, nem as filiais do Burger King se instalando e os caminhões de Coca-Cola correndo pra cá e pra lá nas ruas sedentas da Berlim totalmente aberta ao consumo capitalista.

Ela acorda em 1990, quando a Alemanha já se reunificava. Para evitar que ela sofra um novo ataque cardíaco devido à emoção forte, Alex decide ocultar que o Muro caiu e o comunismo faliu. Ajudado pela irmã e amigos, esforça-se, às raias do patético, para recriar no apartamento da família o ambiente pré-1989, em decoração (o retrato de Che Guevara volta à parede), roupas e costumes. O local vira o “clube dos socialistas veteranos”, como sintetiza a irmã.

'Adeus, Lênin!' utiliza imagens reais da abertura do Muro e de atos com a presença de Gorbachev e o então líder alemão oriental, Erich Honecker. Mostra, por meio de Alex, a corrida para trocar o dinheiro velho da Alemanha Oriental pelo novo, os apartamentos vazios de quem tinha fugido para a Hungria e não voltou, os resmungos dos comunistas-das-antigas (“Nos traíram e nos venderam. Foi pra isso que trabalhamos por 40 anos!”), a vitória da Alemanha (já reunificada) na Copa do Mundo de 1990 – vista em televisores modernos, recém comprados –, o fim de produtos com que os alemães do leste estavam acostumados e a enxurrada de novos (“De um dia pro outro, nossas lojas cinzentas viraram um paraíso colorido de produtos. E me tornei um rei como consumidor”, comenta o novato em liberdade econômica Alex).

Aparecem também as feirinhas em que alemães orientais vendiam itens para os curiosos do ex-lado oeste, nas quais “Os mais disputados são as camisas azuis da Federação da Juventude Comunista e a bandeira do partido, para ser usada como echarpe. Vale exibir tudo: bolsas de feira em nylon, cigarros Karo, louça que segue os padrões dos anos 50, fabricada pela estatal Plaste un Elaste, cadernos escolares à venda nas lojas de departamento da Alexanderplatz e, até, os antiquados automóveis Trabant, agora chamados Trabby”, conforme relata uma matéria da revista IstoÉ de 27 de dezembro de 1989, sobre a Berlim que era novamente uma só.

A explicação fajuta que Alex dá à mãe para o imenso banner “Beba Coca-Cola” pendurado no prédio vizinho é das mais engraçadas, e a escapulida que a mãe faz para, na rua, ver incrédula uma estátua de Lênin ser removida por um helicóptero rende uma das mais esdrúxulas das, aí sim, fake news que Alex e um amigo gravam para rodar na TV do quarto dela (o país estava passando por mudanças, sim: os ocidentais, não suportando mais as agruras do capitalismo, é que pediam asilo à Alemanha Oriental!...).

Toda essa carga política, porém, está ali a serviço do drama dos personagens. 'Adeus, Lênin!' mostra a política entrando na vida de seres humanos, e não seres humanos entrando para a política. Ainda que com alguns incômodos de roteiro (a inclusão de um dado personagem, ao final, não é bem desenvolvida), é um filme que tem muito a ensinar a certo cinema feito em um país sul-americano.

O espião que descobriu a Beleza

A mesma qualidade de explorar o peso dos fatos políticos na vida de pessoas comuns tem 'A Vida dos Outros', de Florian von Donnersmarck, um drama denso sobre a patrulha da Stasi, a eficiente e terrível polícia secreta da Alemanha Oriental. “Sua força de 100 mil funcionários e 200 mil informantes garantia a ditadura do proletariado. Seu objetivo declarado: saber de tudo”, informa a tela que abre o filme.

Em 1984, num tempo ainda sem Glasnost e Perestroika, um agente que dá aulas de técnicas de interrogatório de “inimigos do socialismo” na Academia da Stasi vai assistir a uma peça do dramaturgo Georg Dreyman, de quem desconfia, embora o sujeito seja aparentemente dócil ao governo (“Ele sabe que o Partido precisa de artistas, mas que os artistas precisam muito mais do Partido”, diz um colega). Ele recebe, então, a tarefa de monitorar Georg e a esposa dele, a atriz Christa, o que faz por meio de instalação de escutas no apartamento e permanente encalço pelas ruas.

Georg, aos poucos, vê a mulher e os amigos sofrerem, alguns até morrerem, por causa da repressão política. Toma consciência e escreve um artigo de denúncia para uma revista da Alemanha Ocidental.

A iniciativa, contudo, só se cumpre com a omissão proposital do espião, cuja vida também vai se transformando, num sentido mais íntimo. Ao acompanhar as conversas daquelas pessoas, o agente começa a refletir sobre suas decisões e hesitar em sua missão. Até lê um livro de Bertold Brecht, roubado da casa de Georg, e se emociona ouvindo o espionado tocar uma sonata de Beethoven ao piano.

Ao contrário de 'Adeus, Lênin!', 'A Vida dos Outros' aborda de frente a brutalidade que predominava no leste. As melhores cenas são as que mostram a degradação de Christa, que se submete aos burocratas (“E pensar que gente como você já governou um país!”, lamenta Georg, no final, a um ex-ministro). Em que pese a inverossimilhança do protagonista, um espião comunista que protege seus vigiados, o filme oferece um retrato cru do Estado paranoico-opressor que era a Alemanha Oriental. Ele reproduz muito bem o aparato da Stasi, a máquina de vigilância e produção sistemática de dados sobre os cidadãos que não poupava nem os próprios integrantes – é simbólico o personagem do sargento que conta uma piada boba sobre Honecker, desaparece da narrativa e só reaparece no final, dando a notícia da queda do Muro para os colegas do setor de trabalho forçado a que ele havia sido rebaixado em função da piada boba.

A cena em que o agente da Stasi comove-se ao ouvir Georg tocar Beethoven ao piano remete, indiretamente, a um evento ligado à abertura do Muro em 1989 que diz respeito ao grande compositor alemão. Para marcar o fim de um dos maiores símbolos da tirania no século XX, no primeiro Natal em 28 anos que os berlinenses orientais e ocidentais poderiam passar juntos, o maestro e compositor americano Leonard Bernstein regeu um concerto em comemoração à queda do Muro, em frente ao Portão de Brandemburgo. Seus músicos e coristas executaram a Nona Sinfonia de Beethoven com a letra levemente modificada, a pedido do próprio Bernstein: o poema Ode à Alegria, de Friedrich Schiller, naquela ocasião virou Ode à Liberdade.

O desespero da fuga

A Berlim Oriental também é uma das ambientações de 'O Túnel', filme de Roland Suso Richter originalmente feito para a TV alemã, em 2001, com versão expandida para os cinemas lançada em 2005. A narrativa, inspirada em uma história real, começa em 26 de agosto de 1961, quando o nadador campeão Harry Melchior, ex-preso político, se lembra do dia em que viu o muro ser construído, duas semanas atrás, e tomou a decisão de abandonar a opressão socialista da Alemanha Oriental. Seu amigo Matthis (vivido pelo mesmo ator que interpreta Georg em 'A Vida dos Outros', Sebastian Koch) fugira dias antes, pela rede de esgoto. Melchior consegue atravessar o posto de fronteira com um passaporte falso, dado por um colaborador.

Os dois amigos, no entanto, angustiam-se por terem deixado mulher, no caso de Matthis, e irmã e sobrinha, no caso de Melchior, para trás – eles haviam prometido tirá-las de lá também. A solução que encontram é das mais ousadas e difíceis, mas aparentemente a única possível, uma vez que o governo do leste fechara todas as potenciais rotas de fuga para o oeste: construir, com a ajuda de dois ativistas, um túnel de mais de 100 metros por baixo do muro. Eles fazem um acordo com a emissora americana NBC, que lhes garante ajuda financeira em troca de cobrir a operação. A Stasi, contudo, toma conhecimento do plano. Entre os seus informantes, está a ex-mulher de Matthis, chantageada por um agente da polícia política.

Apesar de ser um thriller quadradinho, que lança mão até do recurso do casal-que-se-apaixona-em-meio-às-adversidades e da trilha sonora de acordes fortes para sublinhar uma cena de perigo, 'O Túnel' recria com fidelidade, ainda que em breves tomadas, a construção do Muro pelos soldados berlinenses orientais e o jeito camuflado, com uso de códigos e bilhetes, com que gente de um lado passou a se comunicar com o outro. Ele também expõe, como 'A Vida dos Outros', prisões e assassinatos de dissidentes e o discurso intimidatório, recheado com hipocrisia e quixotismo, dos burocratas (“Nosso trabalho é útil, mira o futuro. Um pequeno passo na direção de um mundo melhor”), para os quais deixar o Leste era um ato de traição política.

O que o filme traz de novo em relação a 'A Vida dos Outros' e 'Adeus, Lênin!' é a reprodução da disputa de narrativas da Guerra Fria, especialmente acentuada na Alemanha cindida. Vemos personagens dos dois lados da cidade assistindo a cinejornais panfletários e ouvimos, numa cena ambientada nas imediações da então cerca de arame farpado, alto-falantes do lado oeste emitirem uma estação de rádio, o “Estúdio Ao Pé do Arame Farpado”, com que o exército ocidental mandava mensagens de desestímulo ao povo do leste – prontamente revidadas pelos alto-falantes de lá: “Vocês não vão nos calar, seus ridículos que ficam caluniando nosso povo!”.

Desse pequeno grande detalhe dá conta o publicitário Roberto Menna Barreto, em um artigo do livro Deixa Eu Falar: Arquivos de Comunicação e Criatividade no qual recorda uma passagem pela Berlim murada: “Durante a construção do paredão e nos anos subsequentes, Berlim Ocidental armou-se de estação especial de rádio, munida de poderosos alto-falantes instalados em torres fixas e também em kombis e caminhões que percorriam toda a extensão do Muro, martelando seus construtores com mensagens ensurdecedoras sobre a ‘vergonha’ do dito cujo. Era o ‘estúdio ao pé do arame farpado’ (Studio am Stacheldraht). Nunca resultou em nada prático, que se saiba”.

A arte como possibilidade de cura

'Um Amor Além do Muro', de 2006, e 'Querido Muro de Berlim', de 2009, também são produções que, como os títulos entregam, se passam no período de construção ou vigência da barreira. Mas, pouco comentados, são bem mais difíceis de encontrar.

O tema não se esgotará tão cedo. Em processo similar ao que cinematografias de outros países fazem com fatos históricos dolorosos – o cinema argentino com a Guerra das Malvinas (1982) e o americano com a Guerra do Vietnã (1965-1975), para citar dois –, o cinema alemão aborda o período de 1961 a 1989 também como uma tentativa de elaborar um trauma, de entender, para superar, o tempo em que famílias foram separadas e o direito de ir e vir, brutalmente cerceado.

A arte, é claro, contribui para esse acerto de contas com o passado. Quando revela feridas de uma sociedade e mostra questões políticas reverberando ali, na vida das pessoas, ela cumpre uma de suas tarefas mais bem-vindas e salutares.

“A ficção”, observou o escritor argentino Julio Cortázar, “é a história secreta das sociedades”. Pois no caso da ficção cinemtográfica alemã sobre aquele período, esse papel tem sido executado com senso de liberdade e visão complexa de mundo. Tudo o que faltou a quem ergueu o Muro em 1961, tudo o que moveu quem o derrubou há 30 anos.

Conteúdo editado por:Paulo Polzonoff Junior
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