Marcelo Odebrechet, então presidente da empresa, em depoimento a deputados, em 2017| Foto: Arquivo Gazeta do Povo
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Parece que foi há séculos, mas quando a Lava Jato vivia seu auge, entre 2016 e 2018, uma pergunta sempre aparecia nas discussões sobre o caráter político das investigações. “Mas por acaso a corrupção surgiu agora? Antes não havia corrupção?”

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A resposta mais honesta parece ser aquela dada pelo próprio Emílio Odebrecht, o patrono da empresa, em sua delação premiada firmada com o Ministério Público Federal. “O que nós temos no Brasil, não é um negócio de cinco anos, dez anos atrás. Nós estamos falando de 30 anos atrás. Então, tudo que está acontecendo era um negócio institucionalizado. Era uma coisa normal."

A corrupção, portanto, como atesta o senso comum, não surgiu com a Odebrecht. No país, o pagamento de propina a funcionários públicos para a obtenção de vantagens remete ao Brasil Colônia e é assunto para historiadores e sociólogos. Fato é que nos anos recentes, em especial a partir do regime militar, as empreiteiras passaram a ser parceiras de primeira hora de boa parte da classe política.

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Já em 1979, Norberto Odebretch, pai de Emilio, sentava-se numa cadeira do Senado para dar explicações a uma CPI que investigava irregularidades na construção do complexo nuclear de Angra. Com a redemocratização, a relação das empresas com o poder político tornou-se simbiótica. Elas passaram a ser as principais doadoras de campanhas eleitorais, por dentro e por fora, e dividiam em um pequeno clube as grandes obras públicas do país.

A relação promíscua acabava, de tempos em tempos, sendo colocada à prova. Em 1993, houve o escândalo do orçamento. Já à época ficava claro que o dinheiro das empreiteiras, além de financiar campanhas, servia para enriquecimento de deputados e senadores. Uma CPI chegou a ser instalada no Congresso para investigar 37 parlamentares. Seis acabaram cassados.

Em 2009 as empreiteiras voltariam à berlinda. A Polícia Federal e o Ministério Público deflagraram a Operação Castelo de Areia, uma investigação que apontava a relação ilícita de uma série de políticos com a empreiteira Camargo Correia. A operação acabaria anulada por três votos a um pela 6.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), com o argumento de que a operação teria se iniciado a partir de uma denúncia anônima.

Arte do método

Se não nasceu nos governos petistas e nem era uma exclusividade da Odebrecht, a corrupção praticada pela empreiteira nos governos Lula e Dilma Rousseff alcançou grau de refinamento inédito, de acordo com a investigação do Ministério Público Federal.

E o que tornou essa corrupção única era o método. No que era uma espécie de código de conduta interno, a empresa tinha como regra principal a fidelização do seu cliente. “Aquilo que o cliente quer e precisa, aquilo que esse cliente considera valioso, é o decisivo.” O cliente, no caso, não era esse ente distante e impessoal chamado contribuinte. Era, sim, o próprio político em questão.

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A fidelização odebrechtiana era um processo longo e complexo. A empresa monitorava políticos promissores e se aproximava deles. Executivos e lobistas da empresa eram escolhidos para a tarefa de acordo com o perfil. No caso do presidente Lula, como narra a jornalista Malu Gaspar em seu livro 'A Organização' (Companhia das Letras, 2020), a tarefa coube ao próprio Emílio. Os dois se conheceram em 1985, por intermédio do ex-governador de São Paulo Mário Covas. À época Lula era apenas um líder metalúrgico do ABC Paulista que havia despontado com a campanha pelas Diretas. Emílio precisava de ajuda para lidar com uma greve em uma das suas plantas e recebeu do tucano a dica para procurar o sindicalista. “Tanto Emílio como Lula gostavam de boa comida, de boa bebida e de boa conversa. Tiveram empatia imediata”, descreve a jornalista. A relação dos dois seria ampla e duradoura.

A Odebrecht, porém, nunca rifou ninguém. Mesmo nos governos petistas, a empresa também financiava os rivais tucanos. O mesmo acontecia nos estados. Políticos importantes e “promissores” tinham seus desejos atendidos, independentemente de partido. O cliente tinha sempre razão, e o investimento dava retorno.

Turbinado pela bonança da economia, pelo PAC e pelos investimentos dos estados, o volume de negócios da empreiteira decolava. As velhas planilhas de excel utilizadas para a contabilidade dos pagamentos aos políticos eram ao mesmo tempo disfuncionais e nada seguras. Era preciso uma modernização do sistema.

Linha de produção da corrupção

Ela veio com o pomposo nome de Departamento de Operações Estruturadas. Com o Departamento, foi criado um sistema próprio de pagamentos, independente da rede principal da empreiteira. O sistema, batizado de My Web Day do B, dava acesso a número limitado de funcionários, todos escolhidos a dedo por Marcelo Odebrecht, filho de Emílio e já nessa época homem forte da empresa. Na sequência, veio o Drousys, uma versão ainda mais moderna que permitia a troca de mensagens criptografadas entre os usuários, identificados por apelidos, por meio de chats e e-mails.

Com ele, a equipe do Departamento visualizava a “conta” de cada político, identificado por um codinome, e o centro de custos dos pagamentos, isto é, a área de negócios da empreiteira responsável pela negociação. O servidor que hospedava o sistema foi tirado do Brasil e levado primeiro para Angola e depois para a Suíça.

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Os sustos tomados anteriormente, em experiências como a CPI do Orçamento e a Operação Castelo de Areia também aperfeiçoaram o fluxo do dinheiro. Os pagamentos passavam por uma intricada rede de contas e offshores espalhadas por diferentes países. A linha de produção da corrupção envolvia uma série de processos, intermediadores e gestores.

A mudança iniciada em 2005 seria finalizada em 2010. Nesse meio tempo, a magnitude dos pagamentos continuaria a exigir soluções engenhosas da burocracia que tocava a máquina de corrupção da Odebrecht. A empreitaria iria adquirir um banco em Antígua, no Caribe, e se aliar uma cervejaria, em uma parceria que envolvia sonegação de impostos e lavagem de dinheiro.

Em seu acordo de leniência e nos acordos de colaboração premiada dos seus executivos, a empresa admitiu os crimes e inclusive forneceu acesso ao sistema de pagamento da propina. A negociação dos acordos ocorreu em um hotel de luxo em Brasília, com a maioria dos executivos soltos e auxiliados por uma tropa de choque que contava com alguns dos mais bem pagos criminalistas brasileiros.

Na última semana, porém, o ministro Dias Toffoli anulou o acordo e considerou todas as provas obtidas com ela como imprestáveis. O ministro recuperou uma tese surgida com a chamada Vaza Jato, de que os HDs da empreiteira teriam sido transportados em sacolas, “sem qualquer cuidado quanto à sua adequada preservação”.  Afirmou ainda que os acordos de colaboração firmados com autoridades estrangeiras não teriam seguidos os trâmites necessários. Não há menção ao mérito dos crimes admitidos pela empreiteira.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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