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França, Coletes Amarelos
Protesto de 2020 dos “Coletes Amarelos”, um dos movimentos de insatisfeitos com o presidente Emmanuel Macron que pedem mais benefícios sociais e reformas do governo.| Foto: EFE/ Ángel Calvo

A atual crise na França se projeta sobre a Europa — e talvez sobre boa parte do mundo — com uma proximidade maior do que parece. Talvez as transformações tenham começado muito antes da pandemia, mas dessa vez elas vieram à tona com grande força em inúmeros aspectos das relações humanas, trabalhistas e políticas. Uma questão muito concreta, a reforma do sistema público de previdência, serviu de detonador para essa crise profunda. Esboço aqui uma síntese inspirada em dezenas de análises de uma das mais importantes mobilizações populares dos últimos tempos.

1. Complexidade

Edgar Morin, que completou cem anos em julho de 2021, segue intelectualmente ativo. Em um balanço de sua produção escrita, destaca-se o esforço para construir um “pensamento complexo”: analisar as redes da sociedade enquanto sistemas interdependentes de diversos sistemas: o todo é maior que as partes, e cada sistema pode ser bem conhecido, mas a questão maior é entender como eles interagem e contribuem para a evolução do sistema global.

O grande desafio na França dos dias atuais talvez seja como viabilizar a sobrevivência da soberania popular em uma sociedade complexa, de tamanho praticamente incomensurável. O debate sobre as aposentadorias mostra a enorme dificuldade para conseguir uma representação política dos cidadãos capaz de conquistar a confiança da maioria. Diante da complexidade do problema, questiona-se se uma assembleia tem condições para julgar o real em toda a sua complexidade e buscar uma solução a partir de medidas executadas por um governo representante de todos.

2. Populismo

Essas dúvidas são razoáveis, porque o século XX demoliu a crença no progresso científico infalível e, a despeito de tantos avanços, escancarou a vulnerabilidade do humano. Mas o desejo de segurança leva à criação de novos mitos, como o populismo: os cidadãos confiam em um líder que oferece soluções simples e rápidas para problemas complexos. A própria França já conheceu, antes da V República, o fenômeno fracassado do pujadismo.

Os populismos europeus têm diversas facetas, embora na França o termo seja monopolizado pelo partido de Le Pen (Rassemblement National, herdeiro da Frente Nacional), que acolhe a insatisfação e a esperança de uma parcela crescente de cidadãos. Mesclam-se ali a nostalgia de um passado heroico — tantas vezes discutido e definido pelos historiadores — e a exigência de “soluções, já”, algo utópico em uma sociedade complexa.

Na realidade, aquilo que tudo explica nada explica. Os abundantes problemas contemporâneos resistem a soluções unívocas e imediatas. A incerteza e o egocentrismo – agravados pela pandemia – contribuem para o cansaço de uma sociedade acostumada à aceleração técnica com capacidade reduzida de espera, que deseja ansiosamente remédios rápidos para questões nada simples.

A reforma da previdência estava no programa de Macron, mas muitos dizem que a maioria não votou nele por seu programa, e sim para barrar Le Pen.

O despotismo ilustrado de Macron, tão criticado hoje, tem muito de populismo.

3. Jupiterismo

Já em 2017, algum constitucionalista francês utilizou o termo epistocracia, não para atacar a democracia, mas para defendê-la do macronismo jupiterino, que encarnaria uma forma de governo que confia a condução dos problemas públicos aos especialistas. Ao deslegitimar a oposição política, ele representaria um sério risco à participação popular, embora tenha chegado aos Elíseos pela mão de milhões de eleitores.

A França se debateria entre o jupiterismo e o populismo: repete-se que a maioria dos cidadãos, ao voltar a conceder maioria ao atual presidente, não estava votando a favor de seu programa — e muito menos em prol da reforma previdenciária descrita nele —, mas a favor do dique que fecharia as portas do poder para a extrema-direita. Daí a crítica a Macron, que supostamente se julgaria dotado de um poder que o povo não lhe concedeu, e a exigência de que não caia na clássica tentação pós-revolucionária do bonapartismo. Agora, após recorrer mais uma vez ao artigo 49.3 da Constituição — o equivalente a um decreto-lei — para aprovar uma lei muito impopular, veremos se ele realmente é um gigante com pés de barro.

De qualquer modo, o recurso a esse verdadeiro privilégio constitucional mostra a fragilidade e o isolamento político do presidente, que não dispõe de maioria parlamentar para aquela que deveria ser a reforma emblemática da nova França macroniana. Mesmo que as moções de censura contra o governo não prosperem, será difícil apaziguar o mal-estar sindical e popular.

4. Tecnocracia

Muitas pessoas pensam de boa fé que o atual sistema previdenciário é insustentável em diversos países ocidentais. Poderia ter sido uma grande oportunidade para a elaboração de uma reforma convincente, mas a tecnocracia não soube listar satisfatoriamente as vantagens e inconvenientes da fórmula, nem as peculiaridades relativas a diferentes grupos de trabalhadores (jovens e idosos, urbanos e rurais, mulheres e mães).

Além disso, as oscilações mais ou menos contraditórias nas aparições públicas dos membros do governo francês acabaram criando um clima de grande desconfiança na opinião pública: eles destacaram diversos aspectos, como o financiamento do conjunto das reformas sociais necessárias, a salvação do atual regime de distribuição ou exigências genéricas de justiça social e igualdade.

Contudo, apesar da abundância de dados e números, não souberam explicar quem seria beneficiado e quem deveria se sacrificar pelo bem comum. A tecnocracia falhou mais uma vez em sua narrativa: não soube construir um relato que ressoasse no coração do público.

5. Estados Gerais

Macron sempre quis passar a imagem de alguém que conta com o apoio de todos. Utilizou, no primeiro semestre de 2018, a figura dos “estados gerais” para abordar a reforma da lei bioética, sob a batuta do comitê nacional de ética. Mais tarde, após a pandemia, lançou outra fórmula para tentar demonstrar interesse na opinião pública a respeito de temas mais delicados, como as mudanças climáticas ou a eutanásia: a constituição de uma convenção cidadã — sempre nomes que remetem à Revolução —, corpo com cerca de duzentas pessoas de condições diversas, eleitas por sorteio, para opinar sobre um tema em voga.

Os sindicatos franceses, que estavam em declínio, viram na reforma previdenciária uma oportunidade para recuperar o protagonismo perdido

Entretanto, no caso da reforma da previdência — fruto, talvez, de uma fraqueza hoje nitidamente visível —, ele optou por conversas pessoais e pequenas reuniões com os agentes sociais. Parecia temer a ação sindical e o debate com os representantes diretos da soberania popular. De fato, estabeleceu um prazo máximo de cinquenta dias para apreciação das câmaras legislativas, em uma provocação às obstruções promovidas, sobretudo, pela esquerda insubordinada de Mélenchon. As 16.500 emendas ao projeto de lei foram a versão parlamentar, mais ou menos flibusteira, da oposição que suscitava a reforma. Os esforços para conquistar no Senado o voto do LR (os Republicanos) pareceram mero oportunismo. Até entrar em cena a utilização do 49.3.

Com as aposentadorias não houve estados gerais, nem um ápice do processo legislativo parlamentar.

6. Sindicatos

Os sindicatos franceses estavam tão integrados ao sistema que foram perdendo influência no debate político ano após ano, ao passo que ganhavam presença no que podemos chamar de uma gestão mutualista. Não era difícil prever que eles aproveitariam a ocasião para jogar lenha na fogueira e recuperar o protagonismo perdido. Isso aconteceu muito cedo, quando Macron apresentou limites excessivamente rígidos em sua reunião com a CFDT (Confederação Francesa Democrática do Trabalho), a organização de representação trabalhista mais representativa e, ao mesmo tempo, mais aberta ao diálogo — talvez por ser de origem cristã, e não marxista como a da CGT (Confederação Geral do Trabalho). Sem dúvidas, a importância do setor público na França — um grande reduto sindical — facilita o trabalho dos líderes, que são capazes de praticamente parar o país com greves de transporte ou distribuição de combustíveis.

O afinco de Macron, empenhado em aprovar uma reforma sem consenso sindical, levou-o a perder também o apoio reformista da CFDT e favoreceu a união dos sindicatos, inclusive a antiga CGT, que exigem a derrogação da reforma aprovada por decreto.

7. Desconfiança

Vista globalmente, a progressiva abstenção eleitoral vinha denotando uma desconfiança crescente não só em relação aos políticos, em primeiro plano, mas também em relação às instituições e, mais concretamente, à Constituição da V República. Um país acostumado ao debate desde a escola sente mal-estar com a impossibilidade prática de estabelecer acordos racionais. A peculiar distribuição de poderes no regime presidencialista pode até ter sido necessária nos tempos do general De Gaulle, que enfrentava o caos da IV República, mas hoje ela afasta os cidadãos do poder.

É difícil pedir sacrifícios da população, pois quanto maior o nível de desenvolvimento, maior a capacidade de reivindicação e menor a de renúncia

As palavras de Macron ao prometer grandes debates, como nos já citados estados gerais ou convenções cidadãs, são insuficientes. Por outro lado, o ceticismo se dissemina, fruto desta desconfiança frente às medidas propostas por alguns constitucionalistas, como voltar a separar os mandatos da presidência e das câmaras legislativas, a introdução de sistemas eleitorais proporcionais ou a correção do centralismo político excessivo — encarnado na própria figura do chefe de Estado — em detrimento da soberania popular.

8. Bem-estar

Antes de realizar a reforma por decreto, Macron evocou como razão principal os riscos financeiros excessivos apresentados pela situação atual: “ou reforma, ou falência”, repetiu em seu nome o Ministro do Orçamento; a sobrevivência do sistema atual exigiria no mínimo 500 bilhões de dívida suplementar, em um cenário de juros crescentes.

De certo modo, era quase uma chantagem com os representantes cidadãos, que não estão dispostos a renunciar ao Estado de bem-estar social, por mais que opiniões sérias alertem para as adequações econômicas necessárias para a manutenção do atual nível de auxílios e serviços públicos.

Mas a experiência mostra que, quanto maior o nível de desenvolvimento, maior a capacidade de reivindicação e menor a de renúncia. Ninguém parece disposto a abrir mão de direitos adquiridos, nem mesmo em nome de um futuro melhor. Prevalece o carpe diem, mesmo que isso implique renunciar ao amanhã. As mudanças de paradigma do trabalho e do bem-estar após a pandemia chegaram às novas gerações, como mostra a chamada grande demissão. Mas jovens e velhos concordam quanto ao problema da aposentadoria.

9. Preço

Macron deve ter se arrependido de usar diversas vezes a expressão “a qualquer preço” durante a pandemia. Com a suspensão das exigências do pacto de estabilidade autorizada em caráter extraordinário pela União Europeia, cresceu a capacidade de endividamento para atender às urgências que surgiram em setores essenciais.

O tempo do monarca presidencial acabou, e a exigência de participação cidadã é irreversível, segundo o cientista político Jean Garrigues.

Esse critério prático acentuou a tendência cidadã de esperar tudo do Estado provedor, atitude indissociável da defesa do próprio bolso. As pessoas podem até se inquietar um pouco com os problemas das mudanças climáticas, mas — até porque é impossível agradar a todos — não se engajam de forma tão pessoal e imediata como fazem ao ver seus meios de vida quando começam a minguar. Os cidadãos querem viver bem, com uma boa aposentadoria e parando de trabalhar muito antes que a artrose ou doenças crônicas associadas à idade os impeçam disso. Não estão dispostos a pagar o preço, nem mesmo quando a demografia põe em dúvida o modelo de financiamento das aposentadorias, da redução de trabalhadores em atividade e do aumento da expectativa de vida.

Os economistas falam cada vez mais em sobriedade, especialmente a partir da perspectiva ecológica. Mas, de fato, como apontava Anne Bory, socióloga da Universidade de Lille, as classes populares já pagam uma pena ecológica: vivem na sobriedade energética e na austeridade de consumo, além de serem penalizadas por seus veículos (antes fomentados pelos poderes públicos), com as restrições das zonas de baixa emissão, que não representam nenhum problema para as pessoas abastadas...

10. Insegurança

A situação provoca um aumento do desespero dos cidadãos. Como se a complexidade dos problemas tornasse impossível sua solução. Como se a França não fosse “reformável”, na opinião dos correspondentes da BBD. Na realidade, se compararmos a idade de aposentadoria obrigatória com a de outros países europeus, não há motivo para tanto alarde, pelo contrário. Mas é o iceberg do mal-estar social que provoca insegurança e medo do futuro, em detrimento de apostas puramente democráticas.

É compreensível que Jean Garrigues, presidente do comitê de história parlamentar e política, tenha escrito em um artigo de opinião do Le Monde, em 19 de março, que o tempo do monarca presidencial está completamente encerrado, e a exigência de participação cidadã é irreversível. O conflito atual seria o enésimo sintoma de uma crise de legitimidade política que exige uma nova prática.

Nada parece garantir que uma solução virá por uma eventual mudança de governo: a moção de censura segue sem triunfar desde 1962. Por ora, não haverá novas eleições. Mas, sem uma reforma da lei eleitoral, muitos temem que, no atual clima cívico, os comícios serviriam apenas para aumentar a insegurança e o medo do futuro: provavelmente se consolidaria um cenário fragmentado e polarizado, que fortaleceria a coalizão esquerdista da Nupes e o RN da extrema-direita de Le Pen. Talvez o isolamento de Macron provocasse uma coabitação que dificultaria ainda mais a governabilidade da França.

A Europa também sofreria as consequências, pois a coalizão que governa a Alemanha tampouco vive seu melhor momento. E o eixo Paris-Berlim ainda é muito importante na UE.

©2023 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol.

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