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“O Corcunda de Notre Dame” (1996)
“O Corcunda de Notre Dame” (1996)| Foto: Reprodução

“Esse é o filme com classificação livre e mais conteúdo impróprio para menores que você vai ver na vida”. Não é como se a maioria dos contos de fada adaptadas pelos estúdios Walt Disney não tivessem nascido como histórias tenebrosas, para depois serem transformadas em musicais da Broadway animados com franquias milionárias de bonecas, souvenires e até vestidos de noiva, mas o desenho ao qual o roteirista Tab Murphy se refere na frase em destaque é, mesmo, um caso à parte

A história em questão não é inspirada nas coletâneas dos Irmãos Grimm ou de Hans Christian Andersen, e, embora ambientada na Idade Média, não foi gestada entre os povos que viveram imersos em um imaginário profundamente religioso e mágico. Ao contrário: seu criador, nascido na França de Napoleão Bonaparte, foi um republicano anticlerical que, diante da iminente demolição da imensa catedral datada do século XII e sobrevivente dos saques da Revolução Francesa, decidiu escrever um romance para salvá-la - sem poupar nenhuma crítica à Igreja da época.

Mais de 150 anos separam “Notre Dame de Paris”, popularmente conhecido como “O Corcunda de Notre Dame”, o consagrado romance de Victor Hugo, do desenho de 1996, roteirizado por Murphy e dirigido por Gary Trousdale e Kirk Wise. E é deveras impressionante que o teor profundamente adulto da história não tenha suscitado debates mais densos, especialmente em tempos nos quais o gambá cafajeste dos Looney Tunes é “cancelado” porque, em tese, crianças e adolescentes não têm condição de entender ironia, e outros clássicos da Disney ganham avisos politicamente corretos pois, caso vejam os gatos siameses de “Os Aristogatas” sem supervisão, os pequenos podem aprender por osmose que asiáticos são todos maus.

Ao que a adaptação da obra nada encantada de Victor Hugo indica, a criançada de 25 anos atrás era infantil a ponto de não pescar um enredo calcado em temas como luxúria, pecado, pureza e redenção - sem nenhuma encrenca por parte dos pais - ou esperta o suficiente para compreender a oposição evidente entre o desejo ressentido e descontrolado e o amor que brota da amizade ou de um relacionamento romântico. Fica o questionamento, portanto: ser “cringe” (ou “cafona”, para os desentendidos) é ser capaz de lidar com o que é complexo?

Para quem não se lembra do enredo, vale o resumo: Quasímodo, o corcunda, vive escondido na Catedral de Notre Dame, sob os “cuidados” do juiz Claude Frollo. Em sua primeira “empreitada” no mundo exterior, na qual é quase torturado por conta da aparência, Quasímodo é salvo pela cigana Esmeralda. Reproduzir o trágico destino original da dupla seria demais para o padrão Disney “felizes para sempre”; por isso, a mocinha se apaixona por um bonitão de olhos azuis e o protagonista segue sua vida pacata com as gárgulas da Igreja (precisamos falar sobre a crueldade da “friendzone” - mas não agora).

Uma interessante reportagem do New York Times conta os bastidores da decisão de manter a cena na qual Frollo, um sacerdote transformado em magistrado para evitar problemas com a Igreja (permanecem a batina e o discurso religioso - de modo que a crítica continua evidente), canta sobre seu desejo incontrolável e não-correspondido pela moça, que o leva a perseguir implacavelmente uma comunidade de ciganos.

Não vou me alongar na descrição da cena da canção “Hellfire” - literalmente, “Fogo do inferno”, em português. Os versos já dão conta do recado: “Sei que é mais puro o meu dom/Do que a plebe fraca e tão vulgar/Me diga, Maria/Por que eu a vi dançar?”. Ou: “Cigana do inferno, você vai escolher/Meu beijo tão terno, ou no inferno arder”. Tudo isso em meio a labaredas e figuras encapuzadas. Leve, não? Pois é. E o Pepe Le Gambá agarrando a gata é que é abusado.

A saga dos criadores para emplacar um enredo tão complexo diz muito sobre a forma como a arte era encarada na Era de Ouro da Disney, a safra de animações que marcou a retomada do estúdio após as décadas de marasmo que se seguiram à morte do fundador. Segundo Murphy, foram os próprios executivos da Disney (um deles, irmão do fundador) que lhe disseram: “você escreve a história que quer contar e deixa com a gente a preocupação com a nossa marca”. Duas décadas de “progresso” depois e, hoje, há gente graúda no estúdio afirmando negar histórias bem escritas que não cumpram a cota de diversidade.

“Mas ‘O Corcunda de Notre Dame’ bateu e dobrou a meta da diversidade”, pode-se pensar. O protagonista, afinal, é portador de deficiência, a personagem feminina é forte e independente e pertence a uma minoria étnica perseguida por um fundamentalista religioso. Uma receita de bolo woke do século XXI à frente de seu tempo, não fosse por um pequeno detalhe. “O Corcunda de Notre Dame” é um clássico, e clássicos não são clássicos por seguirem modinhas, mas por sobreviverem ao teste do tempo. Clássicos não dão palestrinha: dão conta do complexo. Ainda que recorram às caixinhas, dão-lhes algumas nuances.

Não por acaso, Victor Hugo não é Gregório Duvivier, que ninguém lembra que escreve justamente porque, quando o faz, lasca logo que Jesus seria socialista. Amalgamado ao antimonarquismo e aos ímpetos revolucionários, o francês, um típico romântico, guardava um profundo senso estético, bem como uma admiração genuína pela religiosidade popular e pela misericórdia cristã. Não uma mera “empatia” hippie, mas a consciência da própria pequenez e da presença divina que confere ao outro a dignidade.

Ainda que não professasse, Victor Hugo entendia - pelo menos um pouquinho - a alma cristã. Por isso, se, por um lado, imprimiu em alguns de seus maiores vilões o ímpeto proselitista, deu a outras personagens declaradamente religiosas o papel de redenção: é um padre que salva o pequeno Quasímodo da morte no começo do Corcunda; é um padre que salva Jean Valjean da condenação e da pobreza em “Os Miseráveis”. Na versão da Disney, a dramaticidade da trama fica a cargo do compositor Alan Menken (o veterano de “A Pequena Sereia” e “A Bela e a Fera”) que, em contrapartida ao “Fogo do Inferno” do vilão, coloca na voz da cigana a oração de qualquer cristão ao “Deus dos fracos” (que, aqui, traduzo direto do inglês - a versão brasileira é bem fraquinha:

“Eu não sei se você pode me ouvir
Ou se está mesmo aí
Não sei se você ouviria a oração de uma cigana
Sim, eu sei que sou excluída
Eu não deveria falar com você
Mesmo assim, eu olho para o seu rosto e imagino
Se você já foi excluído também”.

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