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Enquanto milhões de pessoas em todo o mundo debatiam a tradução de um conjunto de papiros antigos que afirma que Judas Iscariotes não teria traído Jesus e, além disso, seria seu principal apóstolo, o Vaticano preferiu o silêncio. O anúncio do manuscrito que foi chamado de "O Evangelho de Judas", porém, fez fervilhar a imaginação de cristãos e não-cristãos, apesar de ser considerado por especialistas uma versão fantasiosa, mas que teria grande importância para a análise de movimentos esotéricos que existiram lado a lado com o incipiente cristianismo dos primeiros séculos da nossa era.

Além da Santa Sé, as conferências de bispos dos países católicos não mencionaram o tema. Da mesma forma, importantes publicações católicas — como o britânico "Tablet" e o americano "National Catholic Reporter" — não citaram o suposto "Evangelho de Judas", apesar da extensa cobertura da imprensa mundial. Enquanto isso, o site de compras Amazon registrava que os dois livros lançados pela National Geographic Society sobre o assunto estavam entre os quatro mais vendidos, um deles em primeiro lugar.

Entre as grandes correntes cristãs, apenas o Patriarcado da Igreja Ortodoxa Russa fez um comunicado.

— Não se pode esperar que a descoberta de um texto atribuído a um conhecido personagem do início do cristianismo ou a algum dos discípulos de Cristo mude a composição da Escritura — disse ontem o padre Mikhail Dudko, porta-voz do Departamento do Patriarcado, em Moscou.

A posição é similar à da maioria dos teólogos. Segundo "O Evangelho de Judas", Jesus teria escolhido o discípulo para ser o único a conhecer a verdadeira natureza de sua missão. Cristo teria conversado a sós com o discípulo por uma semana e pedido para ser entregue aos romanos: "Você sacrificará o homem que me recobre."

— Isso é contrário a 20 séculos de ensinamentos da Igreja. Imagina se Jesus iria querer ser morto. Isso não fazia parte da cultura judaica, à qual Jesus estava inserido — disse a teóloga Maria Clara Bingemer, da PUC-RJ. — A narrativa da Escritura afirma que a morte de Jesus é uma conseqüência de Sua vida. Por ser fiel ao Pai, Ele vai a Jerusalém e enfrenta o destino.

Segundo ela, o perigo residiria na interpretação da revelação dos papiros por parte da população em geral:

— É perigoso quando se começa a achar que a Igreja aceita este tipo de visão. E se as pessoas pensarem que foi assim que as coisas aconteceram.

Nem santo nem demônio para Igreja

A existência em si do "Evangelho de Judas" não foi uma surpresa, apenas seu conteúdo. Santo Irineu, que combateu crenças consideradas heréticas no século II, escreveu no ano 180 sobre a existência do livro. Era um dos evangelhos apócrifos, textos não reconhecidos pela Igreja que davam versões mais ou menos distintas da aceita pelo Vaticano (como os evangelhos de Madalena, Tomé e Tiago).

— Todos os evangelhos apócrifos são mais ou menos dessa época. Foram traduções que depois foram escondidas — disse a arqueóloga Fernanda Carvalho-Moro, que escreveu um livro sobre o Evangelho de Maria Madalena. — A ortodoxia da Igreja foi envernizando, arrumando os evangelhos que entraram na Bíblia.

Versões da história de Judas também são freqüentes, mas sem interferir em dogmas cristãos. Uma interpretação diz que ele teria entregado Jesus para provocar um levante popular que derrubaria o governo romano e colocaria Cristo no trono.

Por outro lado, a demonização de Judas nunca foi aceita pela Igreja.

— Judas não é um demônio. A Igreja Católica nunca afirmou que ele está no inferno — disse Bingemer.

Sobre o documento, teólogos não discutem sua autenticidade. Mas uma coisa é reconhecer que os papiros foram escritos no ano 300. Outra é dizer que o conteúdo deles é verdadeiro.

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