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 | Cristina Graeml/Arquivo/RPC-TV
| Foto: Cristina Graeml/Arquivo/RPC-TV

Na semana passada, depois de uma verdadeira maratona de 125 quilômetros percorridos em 32 horas insones, o norte-americano Colin O’Brady alcançou a linha de chegada, no sopé da Geleira Leverett, completando a primeira travessia solo e sem assistência da Antártida, desafio que batizou de “The Impossible First” (“A Primeira Vez Impossível”, em tradução livre). Dois dias depois, culminando uma rivalidade que os analistas compararam à disputa entre Robert Falcon Scott e Roald Amundsen para alcançar o Polo Sul, em 1911-12, o britânico Louis Rudd concluiu a mesma jornada árdua de mais de 1.480 km através do continente gelado, tendo sobrevivido aos ventos brutais, às nevascas pesadas, às “finas” nas fendas no gelo e às temperaturas de -40 °C. Sua expedição foi inspirada, em parte, como homenagem ao amigo e mentor, Henry Worsley, que morreu de peritonite depois de percorrer quase 1.290 km tentando conquistar a mesma façanha, três anos antes.

Perdida nas comemorações das esplêndidas conquistas de O’Brady e Rudd ficou a realização de outro explorador polar, o norueguês Borge Ousland, concluída mais de duas décadas antes. Ou, se sua travessia foi mencionada de forma superficial e anônima, foi marcada por um senão, já que os aventureiros atuais foram enaltecidos pela tentativa da travessia sem a ajuda de cães ou velas.

Não é surpresa que, em 2018, a tentativa de concluir a suposta primeira travessia solo sem apoio da Antártida tenha se tornado uma disputa explícita entre dois competidores; afinal, para aventureiros profissionais patrocinados que sentem a necessidade de se conectar em tempo real com seus seguidores nas redes sociais, a verdadeira exploração se torna um fator secundário à necessidade de estabelecer “recordes”, fazer “conquistas inéditas”, mesmo que estas sejam definidas com a maior arbitrariedade.

Em 1996, quando ainda não havia dispositivos com GPS confiáveis, Ousland se guiou pela bússola e pelo sol

Entre novembro de 1996 e janeiro de 1997, Ousland tocou sozinho um trenó que, a princípio, tinha quase 187 quilos de mantimentos e equipamentos, durante 64 dias, cruzando a Antártida a partir da borda oceânica da plataforma de gelo até o Estreito de McMurdo, no litoral abaixo da Plataforma de Gelo Ross – a mesma base da qual Scott partiu rumo ao polo, em 1911. Ao longo da jornada, não recebeu nenhuma ajuda ou suprimentos de ninguém, nem mesmo uma xícara de café na bem-equipada Estação Polo Sul Amundsen-Scott. Na fase da “descida”, do polo para a costa, de vez em quando Ousland içava uma “vela de esqui” de sua própria invenção: segundo suas próprias palavras, “um simples pedaço quadrado de pano” que captava o vento e ajudava a impulsioná-lo enquanto esquiava pela neve. Esse auxílio mínimo, em relação aos recursos dos exploradores mais novos, como O’Brady, Rudd e Worsley, desqualificou a épica incursão solo de Ousland no quesito “sem apoio”.

Depois da chuva de cumprimentos, elogios e felicitações para o norte-americano e o britânico, alguns observadores mais veteranos do cenário antártico questionaram se suas façanhas também não mereciam ser marcadas por um “mas”. Isso porque ambos começaram e terminaram suas travessias não na costa, mas na cabeceira das duas enormes plataformas de gelo – ou seja, a distância que percorreram, 1.488 km, foi só metade dos 3.000 km que Ousland cobriu em 1996-97. No tuíte em que anunciava sua chegada, O’Brady escreveu: “Ao cruzar com meu trenó essa linha invisível, realizei o sonho de me tornar a primeira pessoa na história a atravessar o continente antártico, de costa a costa, sozinho, sem apoio e sem ajuda.”

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E insistiu: “A cabeceira das Plataformas Ross e Ronne é onde a massa terrestre da Antártida termina e o gelo do mar começa.” Ou, como o historiador antártico e montanhista Damien Gildea alega em uma postagem no site ExplorersWeb: “As plataformas são extensões de gelo maciço e, portanto, parte do continente. O fato era aceito já pelos primeiros aventureiros polares que as atravessaram, ou pelo menos tentaram atravessá-las.” Scott e Amundsen, é claro, não tiveram escolha a não ser começar suas expedições a partir da costa verdadeira, e, no retorno do polo, Scott e seus quatro companheiros morreram na Plataforma de Gelo Ross, sem condições de levar seus trenós adiante um centímetro sequer.

O ExplorersWeb também menciona o fato de que, a partir do Polo Sul até a “linha de chegada”, no fundo da Geleira Leverett, tanto O’Brady como Rudd esquiaram ao longo da Travessia Terrestre do Polo Sul, “uma trilha nivelada por tratores puxando trenós pesados” para reabastecer a estação polar. “Uma bandeira a cada 100 metros facilita muito a navegação durante as nevascas mais fortes.” Além disso, os veículos removem o rebordo mais duro dos sastrugi – os sulcos irregulares formados pela erosão do vento – que são o pior pesadelo de quem se movimenta com trenós, e o caminho foi projetado para que se evitem as ravinas. Não se sabe em que condições ele estava quando esquiou por ali, mas na foto que tirou no 50.º dia (22 de dezembro), a apenas quatro de cruzar a linha de chegada, as marcas de tratores eram claramente visíveis, e não havia nem sinal dos sastrugi.

Em 2018, os exploradores polares puderam contar com a ajuda inestimável do GPS

Em 2018, os exploradores polares puderam contar com a ajuda inestimável do GPS, do telefone por satélite e das equipes de resgate equipadas com aviões e helicópteros, capazes de aterrissar horas depois de um chamado de emergência. O’Brady postou tuítes e fotos no Instagram para dar detalhes de seu progresso diário e falava com a mulher, no Oregon, com frequência, graças ao telefone por satélite. Quando Worsley, machucado, pediu ajuda em janeiro de 2016, um avião o levou para o Chile. Ele não morreu no gelo, mas sim em um hospital de Punta Arenas.

Em 1996, quando ainda não havia dispositivos com GPS confiáveis, Ousland se guiou pela bússola e pelo sol, traçando sua rota em mapas traiçoeiros na proporção 1:250.000. Os telefones por satélite ainda não eram portáteis e o próprio silêncio e a solidão representavam desafios psicológicos. Como mais tarde ele escreveu: “Geralmente, são precisos de dez a 14 dias para encontrar a harmonia interna necessária para sobreviver em um mundo tão implacável, mas, quando tudo se encaixa, ver-se tão absolutamente sozinho não deixa de ser uma boa experiência.”

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Logo no início, ele caiu de uma ponte de neve em uma ravina escondida, sendo salvo apenas pelas barras resistentes de titânio que o prendiam ao trenó, e que serviam como uma âncora de peso morto. Se precisasse de resgate, poderia ter ativado um sinalizador Argos, que enviaria um simples pontinho com sua localização a um colega na Noruega. E a única esperança de evacuação seria um avião Twin Otter estacionado no acampamento de base Patriot Hills, na Antártida, a mais de 1.600 km de distância do fim da viagem.

Quando a notícia do feito “inédito” de O’Brady começou a pipocar na imprensa, Ousland comentou em sua página do Facebook, magnânimo: “Parabéns a Colin O’Bradly [sic] por sua conquista na Antártida.” Entretanto, não deixou de acrescentar que “foi a primeira pessoa a atravessar a Antártida sozinha, de esquis”. Mais tarde, ele me disse por e-mail: “Eu não devia ter de me manifestar e disputar minha ‘honra’. Acho que eu tinha, sim, de receber os créditos por ser a primeira pessoa a atravessar a Antártida sozinho e sem assistência, de uma ponta a outra. E ponto final.”

David Roberts é autor, mais recentemente, de “Limits of the Known”.
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