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“É preciso relembrar que o mercado de trabalho brasileiro carrega consigo um conjunto de problemas estruturais e que, desde meados de 2016, vem sustentando a taxa de desemprego em patamares elevados e acima de dois dígitos”.
“É preciso relembrar que o mercado de trabalho brasileiro carrega consigo um conjunto de problemas estruturais e que, desde meados de 2016, vem sustentando a taxa de desemprego em patamares elevados e acima de dois dígitos”.| Foto: Marcelo Andrade/Arquivo/Gazeta do Povo

Nos últimos meses, o ritmo de recuperação do mercado de trabalho brasileiro vem superando as expectativas. Apesar das dificuldades em garantir a qualidade estatística durante a pandemia, tanto o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) quanto a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad) Contínua seguem como fontes que melhor apresentam os recursos para entender a dinâmica do desemprego no país.

Chama a atenção o fato de as duas pesquisas apontarem para um cenário significativamente melhor do que se previa inicialmente. Nosso objetivo, no entanto, é deixar claro que o problema de fato não parece estar na recuperação do emprego, mas na baixa qualidade da maioria dos postos de trabalho gerados, que remuneram menos e intensificam problemas de desigualdade, subocupação e informalidade no mundo pós-pandemia.

A possibilidade de que nem todas as falências estivessem sendo reportadas ao Caged e a alteração da dinâmica de coleta dos dados da Pnad em 2020 e parte de 2021, que passou do ambiente presencial para o remoto, inseriram entre os analistas a desconfiança de que a aparente melhora apresentada pelos dados não estivesse refletindo a realidade do mercado de trabalho brasileiro. No entanto, em meio às estratégias implementadas para reduzir os problemas amostrais, a dinâmica positiva apresentada por ambas as fontes parece reforçar o entendimento de que o mercado de trabalho tem se mostrado menos fragilizado pela pandemia do que se estimava a princípio.

De acordo com o Caged, por exemplo, mesmo em meio à pandemia, cerca de 280,5 mil empregos formais foram criados em 2020, enquanto cerca de 2,5 milhões já foram criados entre janeiro e setembro de 2021. Nessa mesma direção, a taxa de desemprego medida pela Pnad Contínua, que na série ajustada sazonalmente chegou a atingir elevados 15,2% no segundo trimestre do ano passado, atingiu a marca de 13,8% no trimestre encerrado em agosto desse ano. Esta é uma redução bem maior do que normalmente se observa em períodos pós-crise.

Boa parte do mérito é do conjunto de medidas acertadamente implementadas para reduzir os impactos da pandemia sobre o mercado de trabalho brasileiro. De acordo com o Ministério do Trabalho, o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e Renda (BEm), por exemplo, chegou a contar com mais de 10,5 milhões de acordos de suspensão e redução de carga horária e salário, ajudando a conter significativamente o número de demissões especialmente nos setores mais fragilizados pelas medidas de distanciamento social.

Em suma, ainda que os números recentemente reportados pelo Caged e pela Pnad venham surpreendendo as expectativas, existem problemas qualitativos que permeiam o mercado de trabalho brasileiro que não podem ser ignorados.

Outra parcela do mérito vem da melhora gradual da pandemia, com o avanço da vacinação no país e o ganho gradativo de confiança dos agentes empresariais em (re)admitir funcionários, ainda que em regime de trabalho parcial.

É fácil, portanto, concluir antecipadamente que o mercado de trabalho tem caminhado bem, trazendo consigo dinâmicas positivas que devem ajudar a manter o ritmo de recuperação acelerado adiante. Torna-se essencial, por outro lado, relembrar que o mercado de trabalho brasileiro carrega consigo um conjunto de problemas estruturais e que, desde meados de 2016, vem sustentando a taxa de desemprego em patamares elevados e acima de dois dígitos. E, ainda que a geração de empregos esteja acima do esperado, esse cenário não parece ter se revertido. A pandemia, inclusive, parece ter potencializado muitos desses desafios.

O primeiro que vale a pane ser estudado mais de perto é a desigualdade que permeia a criação de vagas no Brasil. O desemprego feminino, por exemplo, é significativamente superior ao masculino desde o início da série histórica da Pnad em 2012, com uma taxa média de 12,3% contra 8,9% no caso dos homens. A pandemia parece ter agravado ainda mais esse cenário. Enquanto a taxa de desemprego de homens reduziu 0,8 e 0,4 pontos porcentuais nos dois primeiros trimestres de 2021, o desemprego feminino aumentou 0,1 e caiu 0,1 ponto porcentual no primeiro e no segundo trimestres desse ano, respectivamente. De acordo com os dados da Pnad trimestral, o desemprego masculino encontra-se “apenas” 1,4 ponto acima do nível pré-pandemia (primeiro trimestre de 2020), em 11,7%, enquanto o feminino encontra-se 3,2 pontos acima, em elevados 17,1% na série ajustada sazonalmente. A mesma discrepância é evidenciada nos dados de rendimento médio, que continuam reduzindo no mercado de trabalho feminino e já começam a esboçar alguma recuperação no masculino.

Temos o mesmo cenário quando analisamos as diferenças entre o desemprego de brancos, pardos e negros, que também parecem ter sido intensificadas no mundo “pós-Covid” (embora a pandemia ainda não tenha sido vencida em sua totalidade). Rodando uma regressão simples para tentar estimar de forma preliminar o efeito negativo de cada unidade adicional de desemprego no PIB potencial, percebe-se que o impacto de um acréscimo no desemprego de pardos chega a ser 52% superior ao de um acréscimo de mesma magnitude no desemprego de brancos – o que preocupa, uma vez que negros e pardos foram justamente os mais fragilizados pela pandemia.

Os níveis recordes de subocupação por insuficiência de horas trabalhadas, a trajetória de alta das medidas de informalidade e a concentração do emprego em grandes empresas (uma vez que as menores foram as mais prejudicadas pela pandemia) também são alguns dos fatores que exemplificam esse ambiente de piora qualitativa da geração de empregos. Somado a isso, preocupa também o impacto da pandemia sobre a educação e, consequentemente, sobre o PIB potencial. De acordo com levantamento feito pelo Inep, o Brasil teve um período expressivo de suspensão das atividades presenciais, com uma média de 279 dias de suspensão durante o ano letivo de 2020, contra 199 no Chile e Argentina, 180 no México, 163 no Canadá, 43 na França e 67 em Portugal.

Nas palavras do Inep, a “realização de reuniões virtuais para planejamento, coordenação e monitoramento das atividades foi a estratégia mais adotada pelos professores para dar continuidade ao trabalho durante a suspensão das aulas presenciais”. Mas o fato de o Brasil ser um país tão desigual, com a presença de inúmeros estudantes (especialmente na rede pública) que não possuem os instrumentos necessários para acompanhar as aulas remotamente, apenas intensifica a probabilidade de que os efeitos da pandemia para muitos dos estudantes tenham sido, infelizmente, irreversíveis.

Em suma, ainda que os números recentemente reportados pelo Caged e pela Pnad venham surpreendendo as expectativas, existem problemas qualitativos que permeiam o mercado de trabalho brasileiro que não podem ser ignorados. Apesar de ainda ser cedo para estimar com exatidão o impacto da pandemia e sem menosprezar os efeitos positivos que as medidas de proteção social de fato trouxeram para esse cenário, a conclusão que fica é de que, apesar das surpresas de curto prazo, o mercado de trabalho brasileiro deve continuar se recuperando de forma gradual, defasada e heterogênea, com problemas qualitativos de efeitos duradouros que colocam em xeque a capacidade de crescimento produtivo do Brasil nos próximos anos.

Fica clara a mensagem de que o foco agora não deve ser apenas a ampliação do número de vagas geradas, mas o aumento da qualidade de cada uma delas. Temos um mercado de trabalho cada vez mais desigual. Como ter uma “recuperação em V” que não negligencie os mais vulneráveis?

Lisandra Barbero é formada em Economia e faz parte do time de economistas do Banco Original.

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