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Homero Marchese

Tagliaferro precisa ajudar o país a passar a limpo sua história recente

Eduardo Tagliaferro no TSE
Eduardo Tagliaferro chefiou chefiou a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED), do TSE, entre agosto de 2022 e maio de 2023 (Foto: Alejandro Zambrana/Secom/TSE)

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Entre 2022 e 2023, quando eu era deputado estadual no Paraná, fui censurado nas redes sociais por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). A decisão partiu de um relatório elaborado pelo perito criminal Eduardo Tagliaferro, antigo chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – uma espécie de agência montada na Corte para espionar a internet brasileira. Outros relatórios assinados por Tagliaferro levaram à censura de diversas outras pessoas no país. Tagliaferro prejudicou muita gente, mas agora ele pode ser a melhor opção para o Brasil passar a limpo sua história recente.

Tagliaferro caiu em desgraça com Moraes no ano passado, após o jornal Folha de S. Paulo dar publicidade a mensagens que comprovavam que auxiliares do ministro no STF e no TSE combinavam o jogo dos relatórios elaborados pelo perito. Os documentos, por exemplo, anunciavam apurar casos levados ao conhecimento do TSE por denúncias anônimas, mas eram feitos, na verdade, a pedido de Moraes e de seu gabinete. Foi exatamente o que aconteceu no meu caso.

Vilão de muitos brasileiros no passado, Tagliaferro pode agora ajudar o Brasil a passar a limpo a história desse mecanismo inaceitável de sistemática violação de direitos humanos montado por Moraes nos últimos anos

As reportagens foram um divisor de águas no revolto mar dos abusos do ministro. Muita gente já chamava a atenção para as violações cometidas no STF e TSE, outros seguiam dormindo o sono da "democracia inabalável", mas a demonstração do estilo "freestyle" do ministro vítima-promotor-delegado-juiz, que por vezes surpreendia até os seus auxiliares, levantou uma onda de choque geral. Talvez não por acaso, a fábrica de censura comandada por Moraes teve uma desaceleração após as reportagens.

O ministro, é claro, ficou bravo. Suspeitando de que a Folha de S. Paulo havia obtido as mensagens diretamente de Tagliaferro, Moraes mandou a Polícia Federal (PF) investigá-lo. O inquérito foi concluído recentemente, e o perito, indiciado pelo crime de violação de sigilo funcional com dano à administração pública. Fizeram parte do inquérito e foram publicadas conversas de caráter privado que Tagliaferro manteve com sua mulher, assim como mensagens trocadas entre ele e seu advogado – ainda que a exibição dos conteúdos violasse nitidamente a intimidade dos envolvidos e a proteção do sigilo profissional, respectivamente.

Se o Ministério Público Federal resolver denunciar Tagliaferro, ele será julgado por... Alexandre de Moraes. É claro que não terá qualquer chance. Tudo indica que Moraes, depois de "dar uma lição" para a direita brasileira, para a parte honesta de nossa imprensa e agora até mesmo para países estrangeiros, deixará claro que não admitirá "traições" na própria equipe – ainda que o vazamento das mensagens seja apenas uma hipótese. Vilão de muitos brasileiros no passado, Tagliaferro pode agora ajudar o Brasil a passar a limpo a história desse mecanismo inaceitável de sistemática violação de direitos humanos montado por Moraes nos últimos anos.

Em algumas das mensagens trocadas por Tagliaferro com sua mulher veiculadas no inquérito, o perito diz que tinha medo do ministro mandar prendê-lo ou matá-lo. A parte da prisão todo mundo que viveu no Brasil nos últimos anos entende, mas por que o receio da morte? Por que ele se sentiria ameaçado a tal ponto? Há algum fato que ele poderia compartilhar com a sociedade a respeito?

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Tagliaferro também diz que tem vontade de "contar tudo de Brasília" antes de morrer. O que há para contar sobre a capital, Tagliaferro? Qual era o alcance e o nível das ações, digamos, heterodoxas praticadas pelo ministro? O perito saberia informar, por exemplo, quais pessoas abasteciam Moraes de elementos para que ele pudesse ir atrás de desafetos em comum e atribuir tudo a denúncias "anônimas"?

Como esta Gazeta do Povo defendeu corretamente em editorial publicado há alguns dias, é hora de Tagliaferro contar tudo o que sabe. Que o Congresso Nacional faça a sua parte convocando Tagliaferro para depor, e que a parte séria da imprensa nacional busque mais informações sobre o que o perito, afinal, tem conhecimento.

A equipe de Moraes tem tido baixas importantes nos últimos meses. Três juízes auxiliares, por exemplo, deixaram o STF para voltar ao Tribunal de Justiça em que estão lotados. Não se sabe se voltaram para casa por saudades, porque concordam com Moraes e deram a missão por cumprida, porque discordam dele e estão desgostosos com o tratamento dado a um antigo integrante do time ou se querem tentar evitar serem alcançados pela Magnitsky nos EUA, após terem ajudado Moraes a botar para quebrar. O retorno silencioso dos juízes (que também deveriam ser chamados a depor no Congresso), de qualquer forma, é muito menos virtuoso do que a possível ação de Tagliaferro – e muito menos patriótico também.

Ao menos no caso de Tagliaferro, o Brasil tem a oportunidade de se reconciliar com a justiça e tirar a Constituição da boca de quem não merece falar em seu nome. Contar direito a história do passado é o primeiro passo para a responsabilização no futuro de quem um dia ousou tomar o Estado brasileiro para si.

Homero Marchese é advogado, mestre em Direito e ex-deputado estadual do Paraná. Entre 2022 e 2023, esteve sob censura na internet por cerca de seis meses, por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF. Marchese processou a União pelo episódio e teve o direito a danos morais reconhecidos pela Justiça Federal do Paraná, mas o próprio ministro cassou a sentença e determinou ao Conselho Nacional de Justiça que instaurasse um procedimento disciplinar contra o juiz responsável pela decisão.

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