Jair Bolsonaro durante visita à Catedral de Brasília, em 23 de agosto de 2020.| Foto: Sérgio Lima/AFP
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O presidente Jair Bolsonaro encerrou de forma abrupta seu período mais “paz e amor”, distante de arroubos e respostas atravessadas que marcavam sua participação em atos de apoiadores e no famoso “cercadinho” do Palácio do Alvorada, uma prática que chegou a abandonar. Neste domingo, perto da Catedral de Brasília, logo depois de ouvir um repórter do jornal O Globo perguntar sobre depósitos que Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, teria feito na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, o presidente afirmou que tinha “vontade de encher tua boca com porrada”, acrescentando ainda um “safado!”. A cena foi registrada por outros jornalistas e pessoas que se aglomeravam em torno de Bolsonaro, e gerou indignação mais que justa – mesmo assim, o presidente voltou à carga na segunda-feira: em evento ligado ao combate à Covid-19, Bolsonaro, falando dos jornalistas, afirmou que “quando [o coronavírus] pega num bundão de vocês a chance de sobreviver é bem menor”.

Nenhum dos vídeos que circulam pela internet confirma a narrativa, espalhada por vários apoiadores do presidente, de que no domingo ele teria sido provocado com alusões a uma visita à filha (ou da filha, dependendo da versão) na cadeia – uma situação em que a resposta continuaria a ser completamente inadequada vinda do chefe da nação, mas até poderia ser tolerada como uma reação imediata, de cabeça quente, a uma menção à família do presidente. Ao que tudo indica, a “provocação” foi mesmo o questionamento do repórter, motivado por recente publicação da revista Crusoé, que teve acesso à quebra de sigilo bancário de Queiroz.

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“Provocação” realmente entre aspas, pois o repórter estava apenas fazendo o seu trabalho. E mais: ele não se baseava em apuração própria – que, na qualidade de jornalista, também poderia muito bem realizar –, mas em dados coletados durante uma investigação realizada pelo Ministério Público, que apura as denúncias de “rachadinhas” quando Flávio Bolsonaro era deputado estadual no Rio de Janeiro. Questionar o presidente da República, dando-lhe a oportunidade de apresentar sua versão, era o procedimento mais básico do jornalismo. Era o que qualquer repórter faria; mais ainda: era o que muitos bolsonaristas teriam aplaudido com gosto se o questionado fosse algum petista mensaleiro ou encrencado na Lava Jato, com direito a apelido na lista do departamento de propinas da Odebrecht.

Se não chega a ser uma ameaça propriamente dita, a resposta de Bolsonaro demonstra uma completa incapacidade de lidar com a discordância e o questionamento de outra forma que não seja a da agressão

Diante do questionamento incômodo, Bolsonaro poderia ter dito que não falaria com a imprensa, ou poderia ter desconversado – e, aparentemente, ele também fez isso quando ouviu a pergunta pela primeira vez. Como o repórter insistia, o presidente poderia simplesmente tê-lo ignorado e seguido adiante com seu passeio pelos arredores da Catedral. O que não podia ter feito de maneira alguma foi o que acabou acontecendo: a resposta que, se não chega a ser uma ameaça propriamente dita, demonstra uma completa incapacidade de lidar com a discordância e o questionamento de outra forma que não seja a da agressão.

Não é possível tratar a rispidez deste domingo como mera força de expressão (afinal, dirão defensores do presidente, nem ele, nem ninguém efetivamente agrediu o repórter), nem como mais uma manifestação de “sinceridade” ou “espontaneidade”, descritas como “qualidades” de Bolsonaro. Essa falta de civilidade que se manifesta em palavras é sintoma de um ressentimento que brota apenas em quem não aceita críticas – venham ou não da imprensa.

Tal ressentimento surge quando se enxerga a vida pública não como espaço de construção do bem comum, mas como uma arena de combate, quase invertendo a famosa máxima de Clausewitz. Quem enxerga a política como “a continuação da guerra por outros meios” se vê sempre na obrigação de lutar “contra tudo e contra todos”. É uma mentalidade daninha, pois impede completamente a convivência pacifica. Afinal, na guerra não existem adversários que se tenta vencer pela persuasão ou pela exposição da verdade, mas apenas inimigos que é preciso aniquilar. E para vencer a guerra vale tudo – até “encher de porrada” a boca de quem se revela uma “ameaça”.

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Precisamos rejeitar enfaticamente esta noção. Ela só serve para dar continuidade ao esgarçamento do tecido social brasileiro iniciado com o “nós contra eles” do petismo. A divergência de ideias não é um mal que precisa ser erradicado; é uma riqueza que ajuda a construir a democracia. Propomos ao leitor um exercício, pois é impossível que todos nós não tenhamos na família, ou no círculo de amigos, pessoas que discordem de nós, às vezes veementemente, sobre temas que nos são muito caros. Ou que, em determinado momento, tentem nos advertir sobre determinada conduta que consideram errada. Como reagimos? Qual é o desejo que nos move em tais momentos? O de “encher-lhes a boca de porrada” por considerar a todos como “inimigos”, ou o de convencer o parente ou amigo pela argumentação? Não há dúvidas de que escolhemos a segunda opção, e o fazemos não apenas porque se trate de alguém por quem temos afeto, mas simplesmente por se tratar de um outro ser humano, que merece respeito. E o que vale para nossas relações privadas também se aplica à vida pública.

Diante da crítica, os verdadeiramente humildes a recebem com alegria, pois veem nela a oportunidade de melhorar. Essa grandeza de espírito é altamente desejável em um governante, mas reconhecemos que anda em baixa entre a elite política (em qualquer lugar do planeta). Já estaremos muito satisfeitos se Bolsonaro aprender a dar a resposta dos autênticos democratas, que, mesmo incomodados, entendem o lugar que a contestação tem dentro do mercado de ideias e respondem no mesmo campo. Afinal, só os autocratas (e os há nas duas pontas do espectro político) veem algum mérito em “encher de porrada” a boca de quem discorda ou incomoda.